Aenigma Aenigmatum


Em sua câmara de estudos, o sábio, a voz rouca e o corpo trêmulo, chama seu fiel discípulo para lhe passar um importante ensinamento: teme que a velhice e a doença logo o levem. Cansado mas resoluto, o ancião busca inspiração para construir o que seu seguidor pensa ser uma alegoria inteligente, uma parábola, um símbolo para as futuras gerações de pensadores; sua mente, entretanto, está sobrecarregada com os anos e anos de trabalho intelectual, e o peso da idade lhe afeta a sanidade. As palavras saem com dificuldade, seu sentido misterioso inebriando o jovem ouvinte com uma sensação irracional de nobreza e divindade. Uma charada. Um desafio surreal e blasfemo, mas que, se decifrado, possivelmente revelaria uma rota direta para a iluminação; só que era tarde demais: na última sílaba, a voz do mestre falha pela vez derradeira, seu peito explode numa dor lancinante, suas mãos se erguem ao vazio como que tentando agarrar a vida que lhe escapa. Está morto, e seu enigma vive.
Por séculos, então, outros sábios se debruçam sobre o mistério, tentando arrancar-lhe ao menos um rasgo de significado. Há aqueles, fanáticos, que tomam as palavras literalmente, e se lançam em estranhas aventuras tentando comprová-las na prática; outros, mais imaginativos, buscam nelas deuses, almas e demônios. O enigma vira profecia, sátira, revelação mística; alguns chegam a suspeitar que o mestre fosse simplesmente maluco. Cada época, enfim, acha um modo de interpretar a charada, encaixando-a em seus próprios problemas, suas sutilezas particulares: cada um, em sua pena ou sua boca, pensa ter não uma interpretação, mas a interpretação.
E eis que se deve perguntar: tivesse o velho pensador sobrevivido àquela noite fatídica, o enigma haveria mesmo sido resolvido?

Verdade


Conta-se que existiu, em algum ponto no espaço e no tempo, uma civilização neste mundo que vivia e respirava sua espiritualidade e crença na transcendência como nenhuma outra que jamais houve ou haverá. Entre eles, o conceito que hoje nossos doutores traduziriam como “verdade” supostamente cobria pelo menos três ideias que reconhecemos como distintas: a existência dos deuses (vistos não apenas como personificações de fenômenos naturais, mas, em uma elaboração de tal mitologia, como pilares próprios do mundo, penetrando e trespassando a essência de toda coisa que pudesse ser percebida e considerada como real), os textos que relatavam a experiência divina e, finalmente, a noção mais próxima de um oposto a “mentira” que eles de fato possuíam.
Ocorreu então, de certa feita, que um homem da ciência entre eles fez uma descoberta que contrariava os textos sagrados. A Terra não era cúbica, afinal de contas; ele sabia, no fundo de sua alma, que isso era correto e havia provas abundantes como suas testemunhas. Entretanto, o próprio ato de evocar suas ideias o traía: simplesmente por divergir da “verdade”, o que dizia nunca poderia ser levado a sério por seus compatriotas. Uma criativa peça de ficção, e nada mais; o sábio não encontrava, nem nunca encontraria, meios para reclamar à sua descoberta algo de credibilidade. Morreu repetindo, balbuciante, que sempre esteve certo, mas não conseguiu convencer a ninguém (quiçá nem a si mesmo).
É dito também, e isso é digno de nota, que os únicos deste povo que chegavam a desafiar a norma eram os poetas marginais, palhaços e desocupados, ignorados pela população em geral e perseguidos pelos clérigos mais conservadores; esses que, em seus delírios, talvez sem compreender totalmente o que faziam, falavam de “mentirosas verdades” e “verdadeiras mentiras”...

Vitória


(...) e foi basicamente por acaso que eu ouvi do cacique um conto que muito me intrigou, por sua semelhança com o mito grego de Fidípides (o soldado ateniense que morreu após correr vários quilômetros para anunciar a vitória a seus compatriotas). Entre os waistalavdurra, entretanto, o conto possui algumas diferenças importantíssimas.
Seu protagonista é Feispalmurutaki, um grande guerreiro que, após conduzir seu povo a um estrondoso triunfo sobre um inimigo mais numeroso, volta correndo, animado, muito à frente do exército, para dar a notícia às mulheres e anciãos.  Quando, contudo, chega à taba, ao tentar anunciar seu prodígio em um único Grito, a plenos pulmões, tudo que consegue dizer é “palaluru’andmeisnagafturr...”, e então cai morto de asfixia.
A análise da palavra que Feispalmurutaki provavelmente tentou pronunciar, “palaluru’andmeisnagafturramusi”, é muito interessante. A raiz aí é o verbo “nagafta”, vencer. A ele são adicionados prefixos muito formais, que o guerreiro líder não poderia mesmo ter deixado de pronunciar: “pal” vem sempre no começo do termo, é o início do Grito, e é chamada, quando o falante pede atenção a seus ouvintes; “aluru” é a garantia de que aquilo que ele diz é a mais completa verdade, quaisquer que seja a situação especificada (seguida do prefixo “mirr”, por exemplo, significaria que aquilo a ser descrito foi visto por quem fala em uma alucinação induzida por algum chá alucinógeno, mas que ele está sendo perfeitamente fiel ao que viu); “meis” indicaria a procedência onírica do discurso, mas acoplada à partícula “and” tem seu sentido invertido, entendendo-se que o falante não viu aquilo num sonho (este detalhe é importante para nosso comentário posterior). Só então vem o verbo propriamente dito, com suas desinências “urra” para a primeira pessoa do plural inclusiva e “musi” para o passado imediato.
Esse mito, para os waistalavdurra, é usado até hoje em debates filosóficos entre aldeias sobre a utilidade, os limites e as peculiaridades do idioma, não só do waistalavarri, mas da linguagem humana em geral. Dizem que foi ele, inclusive, que desencadeou a criação da chamada “língua compacta”, o iawaitot (sendo o seu próprio nome uma aplicação prática do código), cuja utilidade declarada é a de que, na eventualidade de a mensagem chegar quebrada ou truncada ao receptor, o máximo de conteúdo seja transmitido.
A minha interpretação (e não pude evitar compartilhá-la com o cacique), entretanto, é um pouco mais profunda, e se refere à intenção percebida na ambiguidade da fala do guerreiro mitológico. Ora, não tendo Feispalmurutaki chegado às desinências verbais, ele bem poderia ter querido dizer “palaluru’andmeisnagaftorrenemusi’urras”, com “orren” sendo a desinência da terceira pessoa do plural, “e” a vogal temática e “urras” o objeto direto, o acusativo da primeira pessoa do plural inclusiva. Ou seja, eles nos venceram. Se fosse esse o caso, o prefixo “andmeis” estaria ali por uma diferente razão: em vez de uma garantia enfática de que sua fabulosa vitória não fora (como seria de se esperar) um sonho irreal, o poderoso líder estaria admitindo que a vitória inimiga não fora (como seus companheiros gostariam que fosse) um triste pesadelo. Aos que não foram para a guerra, restou apenas a angústia da dúvida, até o resto do exército chegar e contar que a conquista, enfim, foi realmente deles. Um detalhe minúsculo, mas crucial.
(...)

Trecho do blog do britânico Damon Searight (“Os waistalavdurra”, Glossa Amazonica, 12 de janeiro de 2015), antropólogo, linguista e romancista que conviveu com os índios da América do Sul entre os anos de 2001 e 2013. Dadas as suas quatro ocupações (e seu hábito de intercalá-las sem nenhum escrúpulo científico, por pura diversão), é impossível determinar se o diálogo, o mito, o idioma ou mesmo o povo aqui descritos são reais.