Inspiração

O videogame Ivory Tower (象牙の塔 Zōge no Tō, também conhecido pelo katakana アイボリータワー Aiborii Tawā), criado pelo desenvolvedor autônomo Ichirō Yamada (山田 一郎, Yamada Ichirō), foi despretensiosamente lançado para download gratuito em março de 2018; e, como com a maioria do jogos independentes de sucesso, vagarosamente passou de um pequeno cult following à atenção mainstream através do boca-a-boca, tendo pouca ou nenhuma publicidade. De fato, o aumento drástico em sua popularidade, pode-se afirmar, deve mais às ações de seus fãs do que a quaisquer suas qualidades (por numerosas que sejam).
Tendo sido frequentemente comparado ao aclamado jogo Yume Nikki (ゆめにっき, lit. Diário de Sonhos) devido a certas similaridades (ambos se originaram no Japão, se utilizam amplamente de gráficos surrealistas e são geralmente classificados como “horror psicológico”, apenas para nomear algumas), Ivory Tower acumulou, entretanto, críticas positivas por sua atmosfera única, assim como suas características inovadoras. A mais notável das quais, possivelmente, é o fato de que todo o texto do jogo é escrito em uma conlang (apelidada ivoriano ou アイボリー aiboriigo por fãs), a qual abrange uma importante parte de seu gameplay: o jogador começa no recinto mais alto da epônima torre, sozinho e sem qualquer backstory ou explicação; e conforme vai encontrando um caminho que desça até a saída, é confrontado com intrincadas inscrições, não tendo praticamente pista alguma de como decifrá-las, de forma que o único modo de resolver os enigmas, e portanto de ganhar o jogo, é comparar cada pedaço de informação que se pode coletar sobre a linguagem desconhecida, assim (juntamente com uma generosa porção de adivinhação) “aprendendo-a”. Repleto de inesperados plot twists (como o caso do último lance de escadas, teoricamente localizado ao nível do solo, que leva direto de volta para a primeira sala), IT se metamorfoseia de uma aparentemente inócua aventura a uma sisuda viagem filosófica conforme seus mistérios sombrios vão sendo revelados.
E talvez tenha sido sua natureza críptica a responsável por desencadear a controvérsia por que ele agora é conhecido.
Uns poucos meses depois de ser lançado, os fãs de Ivory Tower já haviam estabelecido uma wiki a ele dedicada. Apesar de ser oficialmente um guia para o complexo plot do jogo assim como uma reunião de seus muito procurados segredos, o site e sua comunidade logo passaram a se focar primariamente (se não exclusivamente) no ivoriano e suas possíveis interpretações. Após uma afirmação de Yamada, postada em seu blog pessoal depois de ser continuamente questionado, de que “os escritos têm apenas significado suficiente pra que o jogo seja jogável; de 50 a 60% deles é gibberish total”, a busca por supostas “mensagens secretas” apenas se fortaleceu.
Não demorou para que os rumores começassem. Quanto mais teorias alucinadas eram ideadas, mais pessoas se juntavam ao debate; e quanto mais pessoas se juntavam debate, mais alucinadas as teorias se tornavam. Lendas de salas secretas cheias de imagens perturbadoras e eventos sinistros varreram a internet, e logo se tornaram a principal fonte para os escritores de creepypastas daqueles dias. De fato, o jogo principiou a alcançar notoriedade pública (especialmente entre audiências ocidentais) quando certos grupos passaram a criticá-lo duramente pelo que viam como “inequívoco conteúdo satânico”, o que, irônica mas obviamente, apenas contribuiu para sua popularidade.
O conflito foi apenas agravado por um post no site 4chan de janeiro de 2019, no qual um usuário anônimo apresentou sua própria análise dos textos, sugerindo que algumas das mais obscuras frases ivorianas seriam na verdade corrupções do japonês. Apenas alguns exemplos foram dados, como “karrga kyrrköt övakjö kass ryna”, o qual foi explicado como 彼らが来ることは許可するな (Karera ga kuru koto wa kyoka suru na, lit. “não permita que eles venham”; entretanto, era consenso entre jogadores na época que “-ö” e “-öt” eram respectivamente os sufixos genitivos singular e plural, e que “ryna” representava o verbo “cair”, assim tornando tal interpretação impossível); contudo, a teoria popularizou-se imensamente, devido ao novo nível de profundidade que garantia a IT. Para os crédulos, essa era a prova de que havia mistérios ainda mais escuros ocultos sob a superfície.
Daí em diante, notícias na grande mídia sobre “obsessão” com o jogo foram se tornando cada vez mais frequentes; não que a origem das inscrições sem sentido que estavam de repente aparecendo em muros por todo o mundo fosse imediatamente óbvia a eles. Ou a qualquer um que não fosse parte do “culto”, de qualquer forma. Foi apenas quando a associação foi feita que aqueles grupos que anteriormente denunciavam as hipotéticas conexões de Ivory Tower com o oculto começaram a propor que ele fosse completamente banido. Ninguém sabia exatamente por que aquilo estava acontecendo, contudo; nem mesmo os próprios cultistas: quando uma adolescente de Nova York foi pega espalhando folhas de papel contendo a frase “Don’t let them come!” (lit. “Não deixe que eles venham!”) pelo gramado do Central Park, tudo que ela disse em sua defesa foi “eu não quero que eles venham”.
A controvérsia atingiu seu auge no chamado Caso Inoue, que se passou em Tóquio em 15 de agosto de 2019. Reika Inoue (井上 怜華 Inoue Reika), de 32 anos, estava indo para sua casa por volta de 1h da manhã quando, nas proximidades da estação Kasumigaseki no distrito de Chiyoda, ela aparentemente ouviu alguém chamando por seu nome e sussurrando “彼らは来ている” (Karera wa ima kite iru, lit. “Eles estão chegando agora”). Nesse ponto, à 1h07min, ela ligou para o Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio e os informou da situação, mas seguiu caminhando apressadamente. À 1h15min, a mulher telefonou novamente, parecendo estar bastante apreensiva; dessa vez ela alegou estar sendo seguida e que o criminoso, presumivelmente a única outra pessoa na rua àquela hora, estava agora gritando a plenos pulmões “彼らが来ることは許可するな!” e “彼らは来ている!”. Essas foram suas últimas palavras. À 1h51min, a polícia encontrou seu corpo no Parque Hibiya, jazendo em uma poça de sangue, profundamente perfurado pelo que parecia ser uma miríade de agulhas muito finas; e, cobrindo-o por completo, a mesma frase escrita repetidamente: “言わんこっちゃない” (Iwankocchanai, aprox. “Eu te avisei”).
Evidentemente, Ivory Tower foi banido no mundo todo depois de tal episódio. O jogo foi acusado (por pessoas que nem ao menos se incomodaram em jogá-lo) de conter mensagens de violência e comportamento antissocial capazes de corromper as mentes de seus jogadores; até mesmo um processo judicial foi aberto contra Yamada, apesar de logo ter sido fechado por falta de evidências. O criador manifestou sua raiva em seu blog, caracterizando a postura de seus fãs como “idiótica” e criticando a fonte primeira de toda a confusão: “(…) mas EU DISSE PRA VOCÊS que era quase tudo bobagem! Não tinha significado nenhum! Não tinha absolutamente PORRA DE MENSAGEM NENHUMA por trás de tudo!”, ele escreveu. Nenhum incidente relacionado a IT ou ao ivoriano foi relatado desde então; mas o assassino de Reika Inoue, quem quer que fosse, jamais foi encontrado.

Assim Caminha a Humanidade

Já foi dito que o português brasileiro, como várias outras línguas do mundo, é acometido de um fenômeno denominado “diglossia”: ou seja, dois registros de um mesmo idioma, às vezes não de todo mutuamente inteligíveis, coexistindo em um mesmo contexto social. Historicamente, isso ocorre por uma diferença de prestígio entre as variedades, uma delas sendo associada a uma casta ou classe tida como “superior”.
 Condições similares, ainda que mais amenas, ocorrem e ocorreram em todas as linguagens naturais. O ambiente cultural não é estático, e as gírias, pequenas inovações de cada grupo e geração, vão aos poucos mudando o modo de falar da sociedade como um todo; e, se hoje nos maravilhamos com os arcaísmos de um Camões (como se “arcaísmo” já não fosse arcaico o suficiente), sem dúvida que um Virgílio ficaria horrorizado em saber que aquilo foi no que se degenerou seu latim. O português, como todas as línguas da Terra, se formou pela constante e gradual mudança (“degeneração” é uma palavra tão forte...) de um idioma primordial, talvez uma matriz universal, milênios e mais milênios atrás.
Foi somente nos últimos séculos, no entanto, que a prescrição linguística se tornou a refinada ferramenta de dominação que é hoje. Com o nascimento do Estado-nação, a “identidade cultural” de cada pedaço de terra se tornou um evidente objeto político, algo que (como já disseram do deus cristão), se não existisse, precisaria ser criado. Assim, por exemplo, a proibição do uso de outro idioma que não a fala parisiense nas escolas da França, no final do século XVIII, não foi simplesmente uma humilhação gratuita aos bretões e provençais, mas uma demonstração da autoridade da república sobre as províncias.
O que me impressiona nisso tudo é a interação entre a norma culta da língua, “correta” e defendida pelos paladinos do status quo, e a coloquial, que de qualquer forma se conserva viva e fértil nas margens da sociedade. No Brasil, essa situação se dá sobre um paradoxo: o alcance praticamente ilimitado da mídia de massa, reprodutora (em geral) do registro oficial, e a deficiência do sistema educacional, que dificulta a apreensão por parte dos estudantes das “regras” de seu próprio idioma. O que existe, na verdade, é uma triglossia: uma terceira variedade, de certo modo um “meio termo” entre as outras duas (ainda que por vezes distante de ambas), emerge quando um falante, em determinada situação, tenta se utilizar de uma norma que não completamente domina. Uma variedade surgida espontaneamente, artificialmente, e que não obstante já dá seus primeiros passos rumo à formalização (que o digam os onipresentes “no caso” e “acintosamente”, distribuídos ad libitum no meio de discursos improvisados).
Engraçado imaginar que um dia, quando o estilo deste texto já for considerado arcaico, venha essa a ser a norma tida como culta. Ainda mais engraçado pensar que então ainda vão existir prescrivistas a defendê-la. 

In Girum Imus Nocte et Consumimur Igni

Pela milésima vez, a mulher sentou-se no velho banco, exausta, e se pôs a esperar. Milésima ou milionésima, ela nunca teria certeza. Os curiosos factoides da vida haviam sido interessantes anos atrás, décadas atrás; e sua cabeça não funcionava pra matemática (não depois de um dia todo sentada de frente pra um computador, pelo menos). Pensava agora apenas no ônibus; ou, antes, tinha a espera pela vinda deste como uma certeza instintivamente inflexível no fundo de sua alma. Pensar, pensar mesmo, não pensava nada. Queria mesmo era uma boa xícara de café.
Por que, afinal de contas, haveria de gastar seus neurônios? A calmaria da madrugada era sempre o pior momento pra se refletir sobre qualquer coisa: no escuro daquela esquina, o mundo parecia tão amplo, tão vazio, tão assustadoramente incompleto que era difícil impedir a mente de vagar por lugares bizarros, na ânsia de completá-lo; aí vinham as dúvidas, as desconfianças, os medos... E nunca havia nada nem ninguém, um mendigo ou demônio que fosse, pra lhe dizer deixa de bobagem, guria, vai lavar uma louça ou coisa do gênero. Não; era mesmo melhor não pensar. Qualquer coisa, até mesmo puxar assunto com algum estranho, seria melhor.
Entretanto, naquela noite, não havia ninguém. Ninguém. Nenhuma buzina, nenhum passo, nenhuma luz exceto a dos monótonos e monolíticos postes. O silêncio era quase ensurdecedor; mas a mulher só se apercebeu disso quando já iam vários minutos além do horário em que geralmente estava em casa, e o ônibus ainda não passara. O instante preciso, entre a olhada no relógio do celular e a total assimilação das circunstâncias ao seu redor, não durou três segundos; e a reação veio na forma de um pânico enregelado: ela nem se mexeu, mas sentiu como se suas entranhas fossem retorcidas de dentro pra fora; e tantos pensamentos díspares voaram por sua cabeça, todos ao mesmo tempo, que posteriormente ela nem se recordaria de ter pensado alguma coisa.
Quis gritar; quis chorar; quis correr. E, como em muitos outros momentos cruciais de sua vida, nada fez. Era uma espécie de complacência subconsciente, algo que ela definiria como um misto de preguiça, receio e certo pendor à submissão, que lhe mantinha inativa exatamente quando alguma ação se fazia mais necessária. Ficou parada, equilibrando-se sobre o nó frouxo que unia suas certezas mais profundas; esperava por algo, uma mensagem, um sinal qualquer que lhe garantisse a normalidade daquela situação.
E algo, de fato, aconteceu: da massa indistinta da própria escuridão, emergiu, altiva e despretensiosa, uma borboleta. De todas as coisas do universo, uma simples borboleta passou voando por aquele ponto de ônibus solitário, completamente indiferente ao olhar embasbacado que a contemplava. Dançou no ar, rodopiou, brilhou prateada ao amarelo doentio das luzes da rua; e foi pousar, sem pressa, alguns metros dali.
Dizer que o contraste brusco entre o vazio impossível daquela noite e a naturalidade de sua pequena invasora deixou a mulher perturbada seria demasiado brando: seu cérebro, em irracionais milésimos de segundo, computou aquela repentina nesga de familiaridade como a última chama de lucidez em um mundo cuja consistência lógica parecia se dissolver. Ela então sentiu que precisava da borboleta; que, se não a possuísse, não a devorasse, não a destruísse, jamais retomaria a sensação de realidade. Deu o primeiro passo, e o segundo, e já quase a sentia nas mãos... E, é evidente, o inseto alçou voo, apenas pra aterrissar um pouco mais longe.
E assim foram, noite adentro, a caçadora e sua presa; a cada vez mais rápidas, a cada vez mais imprudentes. E qual delas caçava, qual era caçada? A mulher não saberia dizer; durante a perseguição, só a perseguição importava, e só seguir em frente já era em si uma realização. Conseguira enfim não pensar, não sentir, não existir: apenas corria, e não concebia algo que não fosse correr.
Por fim, tão subitamente como começara, a busca terminou. A borboleta, talvez cansada, talvez zombeteira, decidiu pousar sobre um muro baixo e aguardar, imóvel, diretamente à frente dos olhos da mulher; esta então também parou, desconfiada. Agora lentamente ia lembrando-se de si, da vida e da noite, e de seus medos. Chegou a questionar, por um átimo, a irracionalidade de seus atos; mas a expectativa era o que mais lhe incomodava: era esse o fim? Deveria reclamar aquela criatura como sua, como um troféu às suas inseguranças, e lhe descobrir os segredos? Ou a razão de ser do maldito bicho seria meramente envolver incautos seres noturnos numa investigação infrutífera? Qual era o significado daquilo tudo?
De repente, interrompendo o caos em sua mente, a mulher testemunhou o desenrolar de um acontecimento inteiramente desconexo de suas divagações: um raio de sol perfurou o céu, fulminante, e atravessou a borboleta como uma seta. Por um momento, aquele fato pareceu ser um incidente isolado, um mistério, sem motivo ou explicação imediatos; mas logo a situação se fez evidente, tanto quanto a realidade pode evidenciar a si mesma: a noite morria, e com ela seu pequeno milagre. É claro. O amanhecer chegou como uma onda, carregando consigo todo resquício da névoa onírica que a escuridão houvesse deixado pra trás; ou então, quem sabe, como um véu, improvisadamente erguido pra esconder dos olhos mortais quaisquer migalhas que porventura tentassem se esquivar da ilusão da luz. Uma diferença sutil.
À mulher, entretanto, esses detalhes não importavam: o raiar tangível e quente do dia em seu rosto lhe recordou de que estava atrasada pra alguma coisa, e ela achou melhor não pensar. Tudo que queria agora era uma boa xícara de café.