Poucas
pessoas gostam de perder tempo na neblina. Deve ser um tipo de medo, não sei;
alguma coisa que vai crescendo dentro delas conforme vão andando no branco, no
branco dentro do branco, e o mundo parece vazio. O café vagabundo na esquina, fervendo
em luzes amarelas, jurando que é chiquérrimo, parece Versalhes no inverno.
Parece, no inverno, Versalhes, quero dizer.
Entrei
sozinha e tentei escrever, mas as pessoas não me deixaram. O calor e as vozes
abafaram os meus pensamentos, e eu parei, de lado, solta e desconfortável. Unheimlich. Sempre tem uma palavra alemã
pra tudo: eu era parte da rua, aquela ilha de barulho não fazia sentido pra mim.
Eu queria a névoa. Ela queria a névoa,
escrevi; parecia um bom começo.
Antes que eu
voltasse à ideia de sair, um cara atendeu o telefone. Não devia ser nada,
claro; mas, já que eu tava ali, quis ouvir. Escorpiana com ascendente em
aquário, mais curiosa impossível.
- Já tá tudo
certo - ele disse, e já poderia ser um gângster. -, vocês já tão com ela? - Ela queria a névoa, mas eles a prendiam do
lado de dentro; não, isso tava muito ruim. - Certo... E o espelho? - ele mudou
o tom de voz, parecia irritado; me ocorreu que ele poderia ser um gângster. - É? Tá, mas eu vou precisar... Não sei,
meu velho, vai ter que dar. Karina 26, ok. - isso era um código? - Faz o
seguinte... É, ok, faz o seguinte: deixa aí, eu pego, levo pro Careca, depois a
gente pega os quadradinhos e tal, e leva tudo junto. Karina 26, já entendi...
Com “k”, tá, beleza.
Karina era uma rainha. Não, muito chato.
Karina era uma puta... Muito clichê. Eu até parei de ouvir o cara; quando vi,
ele já tinha até saído. Não pude deixar de pensar que ele poderia estar saindo
dali pra matar alguém, abusar da própria esposa, ficar rico ilicitamente ou
tentar conquistar o mundo; essas coisas acontecem, alguém ia fazer isso aquela
noite. E eu não consegui saber quem era Karina, se ela era a vítima, a
cúmplice, só um objeto, um código, um segredo. Ainda fiquei ali mais um tempo,
escrevendo e apagando, até que resolvi sair. Karina queria a névoa.
Sexta, na
aula, uma aluna chegou pra mim pra perguntar alguma coisa de uma prova, de um
trabalho, sei lá. Lembro dos olhos dela. Brancos
como a névoa. Não; azuis, muito azuis, como... Uma manhã sem névoa, eu
acho.
- Tá, deixa
eu ver aqui. Qual o teu nome, mesmo?
- Karina.
Eu devo ter
ficado parada tanto tempo que ela percebeu; dentro da minha cabeça, tudo o que
eu queria saber era se aquilo era só uma coincidência e eu devia seguir
procurando a tal prova ou se não era e eu precisava perguntar se ela tinha sido
sequestrada recentemente.
- Com “k”?
- Isso.
Em todo caso,
poderia ter outras Karinas com “c”... Carinas, acho eu; mas eu tive que
perguntar.
- Hã... Mas tu
não tens vinte e seis, né?
- Não! - ela riu.
- Credo, eu tenho dezenove. Mas eu nasci num dia 26. - juro que não perguntei,
ela quis me contar não sei por quê. - 26 de abril.
Taurina. Hmm.
Naquela
noite, eu vi Karina nua na minha cama; não a minha aluna, mas estranhamente
parecida. Muito branca e lisa, o olhar como uma lança, mas feminina e frágil
como uma flor. Mesmo assim eu não resisti. Fizemos amor como o sol sobre o mar,
a chuva sobre a terra, dentes na carne, olhos nos olhos. Ela era uma
alienígena, e era uma rainha e era uma puta; camaleonikarina. Não sei como eu sabia disso, mas eu sabia.
Acordei com
saudade de algum lugar, de alguém, de alguma coisa que nunca vi. Sehnsucht. Claro que os alemães já
sentiram isso, Kant sentiu, Nietzsche talvez, Wagner com certeza. Um escape; pode
ser. No alto da montanha eu vi Karina;
dirão que estava bêbada, mas eu a vi. Por aí. Tive um desejo estranho de
possuir esse sentimento, prender minha Karina comigo, antes que ela fugisse.
Mas antes que
eu levantasse da cama já não sentia mais nada.
Sábado, à
noitinha, eu voltei à pequena Versalhes na neblina. Tudo parecia igual. Acho
que eu esperava que o cara fosse aparecer de novo, só porque eu queria que ele
aparecesse. Minha cabeça desajustada ficou ainda pior por voltar àquele
inferno; mas eu não tava louca. Nem queria enlouquecer. Se eu dissesse “não sei
por que fui pra lá”, talvez pareça que eu tava mais desesperada do que
realmente tava; mas eu não sabia. Aliás, se a minha vida fosse um romance,
todos os críticos diriam que ela é randômica demais pra ser verdade, e que a
personagem-título não tem motivação suficiente.
Enquanto eu
pensava nisso, o cara realmente apareceu. Quase como se fosse marcado, como se
ele soubesse que eu ia pra lá, quase como se fosse pra ser assim. Mas ele não falou de Karina. Chegou,
tomou um café, olhou a névoa, coçou a nuca e saiu. Nunca mais encontrei com
ele, mesmo que tenha voltado àquele lugar várias vezes. Mesmo que tenhamos voltado àquele lugar várias
vezes.
O que eu
senti depois que ele saiu foi uma mistura de desapontamento, alívio e cansaço,
misturados numa poça de ironia. Eu me senti sozinha, eu, eu vagando sem motivo pela cidade; e o cara, e todo mundo naquele
café, e todo mundo no mundo branco e enevoado, só objetos do acaso. A fantasia
de viver conforme a própria vontade é só uma pretensão machista e nazista, e
todos os críticos é que são os loucos.
Livre e onipresente é só minha Karina, paranoikarina, rainha dos vinte e seis vales de Vênus.
Fazemos amor na varanda como poeira de estrela sobre as colinas, como
tempestades em Andrômeda; sozinhas, os olhos perfurando o céu, sem pressões ou
dúvidas. Deve ter uma palavra em alemão pra isso.