Conexões

O sucesso fora imediato. Aplauso unânime dos críticos, lista dos mais vendidos do New York Times, um contrato hollywoodiano de meio milhão de dólares. Mesmo em seus sonhos mais delirantes, Eva não pensara que aquilo a levaria a tanto, nem que o preço a pagar seria tão alto.
O ponto de transição na vida da tímida professora primária berlinense foi a publicação de Jene Titan-Sonnenblumen (“Aqueles Girassóis de Titânio”, numa tradução aproximada), um romance caótico e colossal que precisou ser dividido em três volumes para ser lançado. A senhorita Nachtigall apresentou à editora as quase duas mil páginas manuscritas como tendo sido encontradas em meio aos pertences de seu avô Hans, veterano da Segunda Guerra; o aval da veracidade histórica foi dado pela professora Margret Steinmann, historiadora da Universidade Humboldt de Berlim.
Jene Titan-Sonnenblumen teria sido escrito durante o período em que o antepassado da professora permanecera em casa, entre 1943 e 1945, impossibilitado de lutar por ter perdido as duas pernas na Batalha de Kursk. Impotente e depressivo, Hans teria destilado sua raiva contra o mundo e contra si mesmo em páginas e páginas de memórias, alucinações, poesia e morte. A estrutura da obra é complexa: o fluxo da história vai e vem na ordem cronológica dos fatos, repetindo e se bifurcando, entretecido por um humor amargo e negro; e cada movimento, cada comentário, parece indicar um significado diferente e importante para o todo. O nome do livro, escolhido por Eva com o auxílio de seu editor (o manuscrito original não possuía título, parágrafo ou espaçamento), vem de um trecho que provavelmente descreve a Batalha de Moscou:

Lá ficamos, nós, os palhaços. Conosco, nossa única companhia nas noites frias, os impossíveis dragões nórdicos, aqueles girassóis de titânio, girando à procura de guerra e paz, plantados em nada exceto a neve. Queríamo-los lanças poderosas, mas eles murcharam como murcha o pau de um sexagenário, sem fúria, sem libido e sem casacos, murchos e mortos no deserto branco.

Mal foi lançado o primeiro volume e a obra chamou atenção por sua singularidade: era avançada demais para 1945! Um crítico chegou a apontar que “a prosa de Hans Nachtigall, que havia sido escondida de nós até hoje, contém em si um espírito pós-moderno que só é precedido, talvez, pelo que escreveu Borges”. A pacata professora viu sua conta bancária inflar quase tão rapidamente quanto ela era bombardeada com perguntas sobre seu passado, a história da família e, claro, sobre a vida do recém-descoberto gênio que era seu ancestral. A essas, geralmente respondia com um sóbrio “não cheguei a conhecê-lo”.
Mas ela não planejara ficar em segundo plano nos minutos de fama que foram dados ao clã Nachtigall. Alguns meses depois que o terceiro volume de Jene Titan-Sonnenblumen foi publicado, Eva lançou Die dritte Stimme (“A Terceira Voz”), coletânea de poemas de sua autoria. Mergulhando fundo nos diálogos do livro de seu avô (responsáveis por mais de 70% de seu conteúdo), o livro narra como que “uma para-história, subterrânea, enredada na primeira e ainda assim independente, complementando-a e por ela sendo complementada”, nas palavras da própria poetisa. Sobraram algumas críticas à falta de criatividade da senhorita Nachtigall por se basear no legado de Hans, mas no geral a obra foi bem recebida. “A capacidade desses versos de penetrarem o coração de Jene Titan-Sonnenblumen”, garantiu outro crítico, “é louvável, e a teia de conexões que eles possibilitam é um apêndice bem-vindo ao já suficientemente aplaudido épico do finado Hans”.
Por muitos anos, Eva Nachtigall permaneceu confortável com a revolução que criara na literatura, vivendo dos royalties que as obras combinadas de seu avô e sua geravam, sem esforço. Com o tempo, entretanto, o vazio e um sentimento de culpa que lhe haviam nascido anos antes foram lhe roendo por dentro. As comparações com seu antepassado eram freqüentes demais, e ela resolveu se abrir e revelar a grande mentira.
Ocorre que Hans era uma farsa. Nunca existira. Nenhum antepassado de Eva jamais havia lutado na Segunda Guerra, quanto menos escrito um livro a respeito. Ela própria escrevera Jene Titan-Sonnenblumen, mas nenhuma editora concordara em publicar. Foi então que ela e a professora Steinmann (que, como acabou sendo averiguado, era sua companheira havia já anos) decidiram inventar a história do avô escritor. Die dritte Stimme, o livro de poesias, já estava pronto fazia anos, e se pretendia que fosse lançado paralelamente ao primeiro. “Eu escrevi um pra poder escrever o outro”, confessou a professora. “Eu precisava de alguma referência, então fiz os dois fazerem sentido, um em relação ao outro”.
A reação do mundo literário foi de basbaque, se não de raiva. Críticos que haviam glorificado as duas obras agora desdiziam, palavra por palavra, suas primeiras declarações. Ainda que admitindo o talento literário da senhorita Nachtigall, foram unânimes (como haviam sido no aplauso) em desqualificar o impacto cultural da obra do autor fantasma: “Jene Titan-Sonnenblumen”, comentou algum crítico, “é, apesar de extremamente criativo, uma fraude. A revolução era uma mentira. Eva Nachtigall não fez nada que muitos outros já não tivessem feito”. E a Die dritte Stimme restou somente o desprezo e o olvido: “vistos agora, sem o amparo de sua inspiração, os versos parecem vazios e sem sentido. Seus alicerces foram removidos”.

Contos Urbanos

She weeps as they walk. Era isso que ela via, duas vezes por dia, alguns segundos de cada vez, a janela do carro por moldura. Não, não era como os outros: destoava na cor, na caligrafia, na mensagem... Que mensagem? Era só uma frase no muro. Já lhe haviam dito, aliás, que esse hobby era muito estranho.
Mônica deleitava-se com frases pichadas em muros. Para ela, aquilo não era só uma forma especial e revolucionária de literatura: sentia um prazer distinto em analisar os pedaços das vidas das pessoas que elas deixavam registrados nas paredes da cidade, e tentar adivinhar os que elas não deixavam. Era, ainda que ela não o admitisse, a epítome do voyeurismo platônico: aos quatorze anos, o mais próximo que ela se atrevia a chegar da intimidade do outro; uma experiência deliciosa e apenas vagamente sexual, uma exploração ao mesmo tempo do mundo e de si mesma.
Mas aquilo era diferente. A cidade era velha e cheia de muros, mas a menina nunca havia visto algo assim, de quaisquer lugares ou épocas. As frases que ela até ali minuciosamente classificara dividiam-se de costume em: auto-afirmação de grupos (“MDR é nóis na fita, mano”), comum entre (pré-) adolescentes dos bairros mais pobres, sem muitos adornos e de caligrafia simples; mensagens políticas (“FORA YEDA!”), dos jovens universitários de classe média, em geral com menos erros de gramática e às vezes contendo alguma forma de text art (todo e qualquer “A”, por exemplo, precisa ser transformado no “A” anarquista); declarações de amor (“Te amo, meu amor S2”), típicas de adolescentes de todas as classes, escritas de maneira mais rebuscada e inevitavelmente acompanhadas de corações e outros símbolos românticos; e xingamentos (“Bruna puta vadia vagabunda”), os mais numerosos, vindos de todos os grupos e em todas as formas. “She weeps as they walk”, com sua fonte regular (roxa, toda em minúsculas e quase em itálico), além do significado críptico, não caía em nenhuma dessas classificações. 
Por quem havia sido escrita? E por quê? Por que estava em inglês? Seria uma poesia? Um código? Tentar “completar” a história, adivinhar o que havia sido omitido, era quase impossível nesse caso: Mônica se viu sem referências, sem informação alguma em que se basear para construir seu conto; possuía apenas um detalhe, um ponto isolado, sem esperança de se expandir em quaisquer direções. Sua forma especial e revolucionária de literatura mal nascera e já fora subvertida.

Por muitos dias ainda, ainda por muitas idas e vindas da escola, Mônica lutou em vão contra o frio e inexorável mistério daquelas palavras. Foi quando já mal se lembrava da questão, quando já não olhava pela moldura da janela do carro para aquele enigma no seu caminho cotidiano, que um acaso da vida lhe reacendeu a dúvida.
Indo à casa de uma amiga por uma rota diferente só por diversão, a menina acabou encontrando o que posteriormente classificaria como a “fase dois” na elaboração daquele conto: a mesma tinta roxo-alienígena, a mesma fonte estranhamente parelha. Her home, now it’s near.
Uma nova frase! Isso explicava muita coisa. Vai ver a pessoa que escreveu isso quisesse mesmo que os outros procurassem cada parte e montassem a história. Talvez ainda esteja escrevendo! Um livro vivo, espalhado por cada esquina da cidade, poderia estar se formando naquele mesmo momento! É claro, ela ainda não sabia quem era she, nem onde seria seu home; aliás, será que juntando tudo ficaria “She weeps as they walk her home, now it’s near” ou “Her home, now it’s near/She weeps as they walk”? Ah, que diferença faz? A alegria da descoberta superou e suprimiu todas as perguntas que poderiam surgir: existem infinitos caminhos entre dois pontos. E, além disso, ainda poderia haver muitos pedaços perdidos por aí, não havia sentido em (ou tempo para) pensar no significado final. O ímpeto da busca e da exploração, seu velho hobby, estava restabelecido.

E por mais muitos dias ainda, nos caminhos tortos de uma cidade velha que se revelava virgem a seus olhos, Mônica procurou incansável por novas epístolas do poeta oculto. Mais do que tudo agora queria conhecê-lo. Quem seria essa alma abençoada capaz de quebrar a lógica dos escritores urbanos e dar vida às pilhas de barro dentro das quais as pessoas normais se escondiam? De repente, tudo tinha significado: o grande segredo poderia estar no desenho disforme que fariam os passos na busca de cada peça do todo, visível somente de cima, como umas Linhas de Nazca pós-modernas; ou, talvez, na caçada em si, na relação de cada versículo com a ação necessária para obtê-lo, numa mistura peculiar de I Ching com RPG; enfim, o enigma no próprio enigma, pulsando, crescendo e mudando enquanto é resolvido, ad infinitum. Genial.
Infelizmente para a aventureira, o fervor terminaria novamente, desta vez em definitivo, antes mesmo do fim do primeiro parágrafo de seu conto. Ocorre que um dia, revisitando por acaso o lugar onde tudo começara, Mônica se deparou com uma surpresa: o dono daquele muro (ou da casa que por ele era sustentada, o que na prática dava no mesmo), insensível a tal vanguardista manifestação de arte, resolveu destruí-la contratando um pintor de paredes. Em seu lugar, o vazio apático de uma camada de tinta cor de pêssego.
Passados o choque, a raiva e a frustração, vieram as perguntas óbvias: quantas vezes isso já havia acontecido? Quantos capítulos daquele livro vivo e pulsante já haviam sido obliterados da face da Terra? De que adiantava seguir procurando peças novas, se as antigas já estavam mortas? Isso é assassinato, devia dar cadeia.
Enfim, da epopéia que Mônica pensava criar em sua mente, pouco restou. Apenas alguns apontamentos, alguns fios soltos de ações e sentimentos que ela deduzira daqueles dois primeiros versos. E mesmo disso, ela sabe, vai acabar esquecendo.

Um Conto de Duas Aldeias

Pelos 87 anos de sua vida, Elizabeth Morgan mantivera um segredo, silenciosa em sua casinha próxima às docas de Woolwich. Foi apenas pela ocasião de sua morte e da imediata ação da polícia que alguns velhos papéis guardados como herança de família foram por acaso encontrados e então levados a público. Entre muitos jornais e alguns documentos de pouco valor, o que mais chamou a atenção da imprensa foi um tomo de pouco mais de 500 páginas parcialmente deterioradas: um diário que outrora pertencera ao tataravô da falecida, o missionário Thomas Gibson Morgan. Tão logo soube da descoberta, o neto de Elizabeth, George, apressou-se em reclamar a posse das relíquias e as oferecer a museus dispostos a adquiri-las; entretanto, logo a totalidade de seu conteúdo vazou, e hoje é tema de discussão em fóruns da internet sobre assuntos que vão de inócuas aspirações de arqueólogos amadores a teorias conspiratórias das mais imaginativas.
Thomas, autor do diário, tivera seus quinze minutos de fama ainda em vida. Em 1797, então com apenas vinte e dois anos, ele foi um dos dezessete enviados pela London Missionary Society ao Taiti, liderados por Henry Nott, a bordo do The Duff. O navio levou um ano para voltar à Inglaterra e, quando novamente carregado e seguindo à ilha, foi capturado por marinheiros franceses, à época em guerra com os britânicos. Durante os cinco anos de espera por suprimentos, coisas terríveis aconteceram aos membros da empreitada, e poucos conseguiram dar continuidade à missão. Foi então que o jovem missionário sumiu de todos os registros históricos, apenas para reaparecer quase 30 anos depois.
Em fevereiro de 1826, os habitantes de Lahaina, então capital do reino do Havaí, viram chegar a seu litoral um estranho caucasiano, envelhecido e cansado, remando uma tradicional canoa polinésia. A situação foi tão atípica que o estrangeiro foi recepcionado pela própria Kaahumanu, rainha regente e madrasta do rei Kamehameha III; mas logo foi acolhido pelos missionários cristãos presentes na cidade, e se descobriu que era, de fato, Thomas Gibson Morgan.
Ainda antes do fim do ano, conseguiu voltar a Londres, onde houve certo alarde sobre seu misterioso desaparecimento; mas Morgan nunca comentaria nada a respeito. Viveria mais muitos anos, casado e cercado de filhos, nenhum deles se atrevendo a perguntar sobre a lacuna na vida de seu pai: uma vida pacata na mesma casinha próxima às docas de Woolwich onde sua tataraneta agora morria.
A descoberta do diário traz uma possível solução para o grande enigma, ainda que alguns outros menores sejam levantados. O lugar onde o missionário passara 29 anos de sua vida deveria ser, pela lógica, alguma ilha entre a Polinésia Francesa e o arquipélago do Havaí. “Muito possivelmente”, como sugeriu o professor Black, Ph.D. em geografia pela UCL, “uma das Espórades Equatoriais”.  Isso faria de Morgan um pioneiro, senão um descobridor de terras; mas essa hipótese esbarra num problema: apesar de o diário remeter ostensivamente a contatos com nativos, a arqueologia oficial desconhece qualquer ocupação daquelas ilhas nos últimos séculos. Enquanto, portanto, a maior parte da comunidade científica considera o diário do missionário um mero exercício de literatura, alguns poucos como o professor Black seguem confiando na (e buscando provas condizentes com a) veracidade do relato.  

De uma forma ou de outra, Morgan o escreveu na forma de um simples diário pessoal, talvez para se manter são durante os anos de espera no Taiti pelo retorno do navio com os suprimentos. As primeiras páginas descrevem o desespero de seus companheiros, tendo alguns desertado, outros morrido, alguns mesmo ficado loucos.
Logo vem a descrição de sua partida da ilha numa canoa, sozinho e com poucas provisões. Por alguns dias ele teria viajado, sem rumo definido; segundo suas próprias palavras, “só sabia que estava muito ao sul de casa, portanto deveria ir para o norte”. Acabou por chegar a uma ilha, “uma pequena ilha, bem menor que a do Taiti”, que tinha “uma larga lagoa em seu interior”. Ali teria sido bem recebido pelos nativos, sendo considerado um mensageiro dos deuses e recebendo muitos presentes e um lar.
Com a simpatia dos líderes locais, Morgan teria aprendido muito sobre sua sociedade e seus costumes, além de obter privilégios a que nenhum outro habitante poderia ter acesso. “A língua deles”, escreveu o missionário, “é, segundo consegui apreender de um dos chefes, um idioma antigo, que eles não criaram; antes o assimilaram de alguma poderosa cultura anterior, e o tratam com muita reverência”. Seguem então algumas palavras e frases que os nativos lhe teriam ensinado e ele tentara transcrever baseado na fonologia inglesa.
Contudo, conforme foi aprendendo mais sobre o idioma e os costumes do povo da ilha, o inglês recontou haver notado uma característica peculiar daquela sociedade. “(...) existe algum tipo de feitiçaria, ou tradição, muito importante para eles... (aí se segue um borrão ininteligível)... Como já disse, existem dois povoados. Mas as pessoas de um deles, mesmo os líderes, só podem se encontrar com as do outro sob condições muito específicas. E mal conseguem se comunicar. Eu só percebi isso porque me deixam transitar livremente”. Esse tal “comportamento”, explicado em mais detalhe nas páginas subseqüentes, seria mais bem definido como o que hoje chamamos de tabu: entretanto, no caso dessa tribo, seria algo muito mais profundo e importante nas relações entre os membros.
“Eles o chamam”, eventualmente adicionou Morgan, “de kow-rah (escrevo esta palavra de acordo, tanto quanto me é possível, com a pronúncia inglesa). É um conjunto de regras sobre absolutamente tudo, não apenas sexo e morte, enfim, as coisas que nós, ocidentais, consideramos profanas. E, como não podem falar a respeito, vários eufemismos surgiram para as coisas mais banais; mas estes não são compartilhados entre as aldeias, pois nasceram de forma íntima, quase obscena, dentro das casas e entre os vizinhos mais próximos (?) (aqui há mais um borrão)... exatamente o mesmo idioma, e o preservando (ou “preservarem”) com todo o rigor, dificilmente conseguem se entender com pessoas da aldeia ao lado”. Além disso, quis alguma ironia do destino (ou a mente exageradamente criativa do missionário britânico) que alguns desses eufemismos fossem exatamente iguais nas duas aldeias, porém representando “kow-rah” diferentes. É assim no relato do nativo que “aos prantos contou a seus amigos do outro povoado sobre a morte da esposa no ritual de pular de uma alta plataforma de madeira, dizendo que ela ‘teve a noite entre seus dedos’, e eles tiveram de segurar o riso, tendo imaginado a mulher se masturbando”; e também na história da “senhora que, depois de casar pela segunda vez, disse ao marido, chefe da aldeia vizinha, ter ‘jogado flores ao mar’, por ter esquecido o relacionamento anterior e querer se dedicar totalmente ao novo, e levou uma surra do companheiro por este pensar que ela havia errado a ordem das oferendas no templo”.
Ainda em relação a esse assunto, em um ponto posterior do diário, Morgan descreveu suas tentativas de convencer os chefes a criar um código para esquematizar os “kow-rah” e assim facilitar a comunicação. “Mas eles não me ouvem. ‘Você pode conhecer todas as palavras de kow-rah’, me disse o chefe da aldeia norte, ‘porque veio dos deuses. Mas eles da outra aldeia não podem conhecer nossas palavras de kow-rah, nem nós podemos conhecer as deles’. ‘Por que não?’, eu perguntei, e o chefe me olhou com uma expressão de espanto, como se a resposta fosse a coisa mais óbvia do mundo. ‘Porque é kow-rah.’, ele disse, e não consegui arrancar mais nada dele”.
Finalmente, após descrições minuciosas de sua vida durante todos os anos na ilha, o diário do missionário Morgan chega ao fim com sua partida, tomando uma canoa dos nativos e seguindo ainda mais ao norte, indo parar no Havaí. Suas últimas palavras escritas foram “e esse há de ser meu segredo para sempre”.

Ainda muito estudo há de ser feito antes de se atestar ou desmentir a autenticidade das páginas escritas pelo antepassado da falecida senhora Elizabeth. Os trechos borrados e ilegíveis precisam ser restaurados, se possível; e já há interessados em estender o empenho arqueológico naquela região do Pacífico em busca de respostas. O professor Black segue confiante. “Tenho a mais absoluta certeza”, disse ele, “de que, com um pouco de esforço e abdicando de nossos preconceitos, podemos fazer uma descoberta histórica de considerável importância”.
Infelizmente para aqueles preocupados com o mistério, as pesquisas dificilmente poderão ter prosseguimento. A maioria das ilhas das Espórades Equatoriais, exatamente por seu isolamento, são protegidas como santuários de vida selvagem, e a presença humana nelas é restrita; além disso, sendo os detalhes geográficos presentes no diário muito vagos, poderia demorar anos até que se estabelecesse o lugar mais provável onde Morgan teria vivido sua aventura. Enquanto, portanto, alguns poucos como o professor Black seguem confiando na (e buscando provas condizentes com a) veracidade do relato, a maior parte da comunidade científica considera o diário do missionário um mero exercício de literatura.

Para Outros Olhos

“É um quadro raríssimo”, a minha dinda disse pra mim, na lentidão de sempre, com aquele sorriso de dentadura postiça. “Certo, dinda”. “E é muito frágil, também”, e a minha cara se encheu de cuspe com o “fr”. “Certo, dinda”. “Por isso que não pode abrir”, e eu quase que já mandei ela socar o troço no cu.
Isso que eu nem tinha perguntado, só achei estranho um quadro que a gente nem pode ver. Também não sei quem foi o cabeça de teta que resolveu fazer a caixa de metal; não podia ser de vidro? Talvez fosse sensível à luz, sei lá. De qualquer forma, minha dinda tava confiante: tinha todos os documentos, o comprador não ia duvidar que era o autêntico L’ombra della Contadina, de algum pintor famoso de alguma época famosa (o nome pelo menos eu decorei).
Minha dinda ganha a vida assim: vendendo quadros extremamente raros por preços abusivamente altos pra gente absurdamente bizarra.
Enfim, lá fui eu, devagarinho, observando a paisagem... A casa do cara era perto, minha dinda só não ia porque tinha dificuldade pra caminhar, mesmo. A estrada era boa, o carro ia rodando mansinho; mesmo assim, de quando em quando eu ia com a mão sobre a caixa. “Se for aberto, o quadro pode se desmanchar no ar”, a voz da minha dinda não saía da minha cabeça. O pintor também devia ser um gênio, deve ter pintado em gelatina. Gente estranha.
Daí, conforme eu fui chegando, uma coisa e outra me incomodando, semáforo, aqueles guris chatos que vêm vender coisa, as contas, a mulher em casa, as crianças, a sogra que vinha pras férias... Acabei me distraindo. Tipo, lógico que não foi de propósito, eu não sou tão burro. Nem tava tão curioso. Não era pra abrir, eu não queria abrir. Mas eu passei meio rápido sobre um quebra-mola e a tampa foi no teto do carro.
Por um milésimo de segundo, eu não consegui fazer nada nem pensar em nada; só me mexi quando notei que o carro ainda tava andando. Freei e fixei os olhos pra frente, as mãos tremendo, a testa já suando aquele suor frio de quando a gente sabe que fez uma cagada. Olhei pra caixa. A tampa tinha caído de volta, mas não tava na posição certa; tinha uma fresta imensa (ou não, sei lá, de repente era só uma frestinha; mas na hora pareceu que tava escancarada). E o pior: não tinha quadro nenhum.
Naquele momento me veio a dúvida que eu tenho até hoje, e que não tem como eu descobrir: será que o quadro realmente desmanchou no ar, ou será que não tinha nada ali desde o início? Nunca vou saber.
Olhei praquela caixa vazia, olhei pra estrada: a casa do cara era logo ali. Ele tava disposto a dar milhões por um quadro e não tinha quadro nenhum. Minha dinda ia me matar. Só tinha uma coisa que eu podia fazer: tampei de novo a caixa e fingi que não tinha acontecido nada. Me deu um pouco de pena de fazer aquilo, mas assim é a vida. E eu nem sou muito fã de arte; acho que foi pena do próprio quadro, mesmo. Tava com crise existencial, coitadinho: não sabia se existia ou não. Sei lá, minha cabeça tava meio confusa naquela hora. Mas lá fui eu.
“Olha, o senhor vai me desculpar, mas o quadro é muito frágil e precisa permanecer dentro da caixa”, disse eu pro sujeito enquanto ele arrancava a caixa das minhas mãos. O cara tinha jeito de bichona, careca, de bigodinho, parecia uma minhoca velha; não que eu já tenha visto uma. Enfim, ele me pagou uma dinheirama por um troço que nunca vai ver, e não pareceu se incomodar com isso: só dos documentos que ele quis saber. “L’ombra della Contadina, que maravilha”, e a voz só confirmou as minhas suspeitas de que ele era uma minhoca gay. Guardou a caixa em algum canto e os papéis numa gaveta. Acho que ele conta do quadro pras amigas do chá, pra elas ficarem com inveja, sei lá.
O legal é que, se um dia ele tomar um porre licor de cassis e resolver abrir só um pouquinho pra ver, vai achar que quem destruiu a “obra de arte” foi ele mesmo. Mas de repente isso é parte do jogo, né? Eu que não entendo porra nenhuma de arte, mesmo.

Pedaços da Realidade

“Morreu em casa, na madrugada desta terça-feira, a conhecida residente local, Gabrielle Madison (...)”. Assim se referiu o único jornal daquela cidadezinha do Oregon à morte de uma de suas mais célebres conterrâneas (se é que existiram mais). Lacônico, o autor da nota esforçou-se em se manter imparcial em relação à vida e a obra da senhora Madison, talvez almejando não ridicularizar o único possível interesse turístico local, sem ao mesmo tempo apoiar ou contradizer (ou mesmo discutir) as idéias da falecida. Esta, estivesse viva para ler a notícia de seu próprio óbito, certamente não aprovaria a postura dúbia do jornalista.
Gabrielle Madison, fosse louca ou visionária, será lembrada por alguns como uma serva da ciência, da matemática, de tudo aquilo que pudesse levar o rótulo de “exato”. Seu empenho em levar o método científico além dos limites do que em geral se considera plausível rendeu-lhe tanto um pequeno e fervoroso culto como uma ampla rejeição da mídia mainstream (isso quando esta lhe dava alguma atenção). Não obstante, seus livros venderam o suficiente para que pudesse se sustentar por sessenta e dois anos de uma vida confortável e segura na cidade em que nascera, até ser encontrada morta sobre a cama por sua sobrinha-neta Joanne; a causa mortis divulgada foi parada cardíaca, decorrente dos altos níveis de colesterol e glicose em seu sangue, da obesidade e do sedentarismo de seu estilo de vida.
O primeiro volume de sua oeuvre foi publicado em 1987 por uma pequena editora em Portland, bancado pela própria Madison. O livro, um ensaio filosófico entremeado de relatos autobiográficos (num estilo que chegou a ser categorizado como “esquizofrênico” por um crítico), foi nomeado Pieces of Reality. Nele, a autora descreve suas experiências com atividades paranormais desde a infância, obviamente paradoxais ao amor pela ciência que logo surgiria em seu íntimo. Considerava-se cética. Durante toda a sua vida, estudou a fundo todo material acadêmico em que conseguia pôr suas mãos, buscando explicações lógicas para os fenômenos que presenciava; encontrou-as, entretanto, folheando o livro de um sociólogo: foi ao ler As Regras do Método Sociológico, de Émile Durkheim, que Madison sentiu-se inspirada a criar suas próprias hipóteses sobre a realidade, a percepção humana e os mistérios da ciência. A frase chave, de cuja interpretação a autora elaborou toda sua teoria, foi posta como epígrafe de seu livro, no francês original: “La première règle et la plus fondamentale est de considérer les faits sociaux comme des choses”. 
O cerne de Pieces of Reality, portanto, é que, assim como a sociologia de Durkheim reduzira seu estudo a uma unidade mínima (o “fato social”) para que o método científico pudesse ser aplicado, também deveria proceder a fenomenologia. Para Madison, existiria um “mundo total”, compreendendo a soma de toda a matéria e energia, todas as coisas às quais os sentidos humanos têm acesso no universo; esse mundo representaria o limite máximo da existência que cada pessoa poderia experimentar, dentro do qual interagiríamos uns com os outros (não sendo muito distante, portanto, do conceito de Lebenswelt de Husserl). Contudo, não poderíamos perceber o total do mundo ao mesmo tempo. Escreveu a autora: “(...) é teoricamente possível que, analisando o cérebro humano, achemos a medida exata, em impulsos elétricos, de tudo que um determinado indivíduo está experimentando a cada instante. A isso que chamamos ‘Percépton’, a unidade mínima da realidade percebida”. Madison chegou mesmo a propor uma fórmula “matemática” para se calcular tais unidades: MT / tP = Pn, onde “MT” denota “mundo total”, “tP” representa o “tempo de Planck” (a menor medida de tempo possível pela física) e “Pn” é a abreviatura de “Percépton”. 
A parte mais polêmica (e mais execrada pela Academia) da teoria, entretanto, diz respeito à paranormalidade. Segundo ela, a mente humana, assim como um computador, está sujeita a bugs, falhas no “sistema” que produzem resultados incorretos ou inesperados. Dessa forma, quando exposto a uma combinação específica de experiências sensoriais (ou seja, a Percéptons peculiares), o cérebro “inventaria” fenômenos que na verdade não estão acontecendo. Cada pessoa teria diferentes “chaves” que desencadeariam essas falhas, e em livros posteriores a autora tentou relacionar essa característica tanto à herança genética do indivíduo quanto a teorias da psicanálise.
Não fosse essa última parte de sua teoria, não é impossível que Madison tivesse conseguido para si um papel bem menos negativo na história do conhecimento; se não como uma cientista, talvez uma filósofa de considerável renome. Entretanto, sua explicação para os fenômenos supostamente ocultos com que ela própria convivera a vida toda foi posta ao ridículo pela esmagadora maioria dos que leram sua obra. A idéia de que o cérebro humano possui falhas de “planejamento” levou muitos a interpretarem sua teoria como inerentemente deísta e esotérica, noção que a autora teve de combater durante toda a vida. Em seus últimos anos, críticos já incitavam a compra de seus livros como se fossem romances humorísticos, antes mesmo de serem lançados.
Gabrielle Madison morreu na madrugada de 22 de julho de 2011, deixando uma pequena legião de fãs e um livro inacabado: O Real e o Imaginário tinha como meta relacionar suas teses com a sociologia, a filosofia pós-estruturalista e o estudo do pensamento humano. Ironicamente, esse último trabalho (segundo relatos da família) iria conter uma considerável revisão de algumas de suas idéias. A seus próprios demônios, por exemplo, a autora convencera-se a atribuir origens bem mais ortodoxas; quais seriam estas, contudo, possivelmente nunca venhamos a saber.
                                                                                    

Diálogo sobre o Infinito

Tudo que está à nossa frente e olhamos com paciência e reverência são os eventos que fluíram dias já passados às mentes de mil gerações de pessoas, mas ainda os lembram as tábuas e pedras, enquanto caímos de costas naquilo que não conhecemos. Nossos avós escreveram para que nossos pais e mães lessem, e nossas mães e pais escreveram para que lêssemos. Agora lemos.

Registrou-se que houve ocasião em que Mahil, pessoa de pesadas cargas de memória, caminhava pelo Cubo Verdazul*, entre grama, mar e céu; acompanhava-a o jovem Iamu, ainda leve, muito adiante de seu cargo como Líder dos Escritores. A uma distância desconhecida entre a elevação de Patsippu e o Grande Lago, Mahil decidiu parar para descansar. Um amigo** do Kkalhi descia calmo da terra mais alta e seguia para o meio daquela face do Cubo, onde, não é visto mas certo, juntar-se-iam e continuariam fluindo até seu destino imperscrutável. Ali sentaram sobre o chão úmido. A mulher observava os jeitos do Mundo sem preocupações, mas seu aluno lhe formulava questões que considerava difíceis.
- Parece-lhe adequado, mestra, que existam tais pequenos seres? - foi sua pergunta, ao que passavam formigas à beira dos pés de Mahil.
- Sim. - considerou a mulher sábia.
- Mas como é assim, se sua pequenez é tanta que quase não os vemos, e sem vontade de destruição os destruímos? Assim é que não podemos agir como queremos, e fluem os eventos do Mundo de forma diferente de nossa vontade.
- Assim é, notoriamente.
- Assim que não temos controle junto de nossas ações, nem nossas ações o têm junto dos jeitos do Mundo?
- Temos controle junto das ações que compreendemos, e as ações que compreendemos têm controle junto dos jeitos que são nossos, que surgiram apropriadamente às pessoas.
- Parece-me, então, que conhecemos apenas um topo de tudo que flui.
- Igualmente a mim.
Mahil então largou a mão na terra, e uma formiga agarrou-se a ela, ao que a mestra continuou a evocar sua memória.
- Se o pequeno ser se extingue sem ser advertido por nossa inadvertência, também é assim conosco.
- Como o é?
- É como te digo: somos extintos tal qual dormimos. Nossa vida nos foge, apenas que na morte não retorna. A nascente da destruição é oculta: apenas a foz nos é aparente.
- E nas lutas?
- Também as formigas lutam, e isso não traz o motivo de um ser ferido acabar-se.
- Somos formigas?
- Em classe, mas não em tamanho. É certo que existem às formigas suas próprias formigas, seres menores que são destruídos no fluir dos eventos dos maiores.
Daqueles pensamentos, Iamu formou um próprio.
- E a nós igualmente, vejo agora, há tal parentesco.
- É notório. Dos gigantes tudo passa a nós, apenas a verdade de sua existência nos é visível.
- Somos as formigas dos gigantes.
- Sim, e os gigantes das formigas. O fluir dos eventos dos gigantes é que nos destrói, sem que sejamos advertidos; e o fluir de nossos eventos que destrói as formigas, sem que o percebam.
- Vejo subir a névoa na verdade da morte!
- Vê-lo? A mim os jeitos têm diferente aparência. Ainda há muito que se esconde a mim junto dessa parte.
- Admito-o.
Sorrindo, Mahil pôs-se paralela e andou até um galho morto sobre a terra. Portou-o e trouxe mais de sua carga junto de Iamu.
- As pessoas têm evocado pensamentos finos demais, quebradiços.
- Como o é?
- É como te digo: pensam do infinito como um surgimento, uma construção de suas mentes; ao que, no finito, vêem verdade.
- E não há?
A estudiosa riscava o chão úmido com o braço de árvore.
- A verdade no finito, essa verdade é surgimento. O infinito existe sem que queiramos que exista ou possamos imaginar que não existe. O finito precisa ser circulado para existir.
- Não o vejo.
- Não? Que te é visível do pensamento das pessoas que viram o rosto para Patsippu?
- Diz-me.
- Digo-o: das pedras, das tábuas, do que fluiu passado e foi escrito, dos calores rubros dos fogos, das ferramentas de prédios e lutas, das criações de controle, trocas e morte; de toda essa parte, vêem apenas o Manto da Rainha, que é o círculo aí.
Mahil construía formas na terra ao que falava.
- E que te é visível do pensamento das pessoas que viram o rosto para Aucci, depois da beirada do chão?
- Diz-me.
- Digo-o: da água, do sal, dos grandes animais de madeira que vão carregando pessoas e nunca voltam, da luz que cai no fim do dia, da névoa do fundo que nunca se atingiu e dos seres que certamente vivem lá, e das terras atrás que, é certo, existem; de toda essa parte, vêem apenas o Grande Lago, que é o círculo aí.
Concluindo, a sábia tornou o rosto de Iamu para os riscos no chão.
- Que criaste?
- Vês que todo o pensamento que eu evoquei é perceptível aqui?
- Tento o ver.
- Não é difícil: do círculo para dentro, os riscos caem para o meio como a água caindo por uma pia, em curvas; do círculo para fora, os riscos voam para todas as direções como a luz de uma vela, diretamente. São apenas um, e assim flui o infinito; é preciso do círculo para circular cada coisa.
- Assim é que as coisas não existem?
- Elas existem, mas estão todas agarradas, como as gotas de água no mar. De todas as coisas a verdade passa aos olhos das pessoas, fica apenas o círculo.
- E o que está dentro dele?
- Não, tais passam igualmente. Quebra uma pedra, e terás muitas; quebra cada uma delas, e terás mais, e não encontrarás fim nessa parte. Que nome dar a cada uma delas? Que título, que cargo?
- Há?
- Não. As pessoas circulam a pedra e se dão por satisfeitas.
- E, junto da pedra, a dureza?
- A dureza, a força, os muros, os escritos e prédios; por parentesco, também as tábuas.
- E o que está fora do círculo?
- Também passam. Junta dois punhados de areia e terás um punhado maior; junta mais a ele, e maior ainda será, e não encontrarás fim nessa parte. Que nome dar a cada um deles? Que função, que unidade?
- Há?
- Igualmente, não. As pessoas circulam o punhado de areia e se dão por satisfeitas.
- E, junto do punhado de areia, o crescimento?
- O crescimento, o conto dos dias, o vidro e o calor do deserto; por parentesco, também a terra úmida à beira dos rios e todos os chãos.
Iamu se pôs fechado.
- Vejo que não há fluxo.
- Não nas mentes. Constroem círculos e círculos de círculos, e depois, atrás, círculos para os primeiros círculos; assim são separadas as gotas de água do mar.
- E essa é a verdade dos jeitos do Mundo?
- Não. Essa é a verdade dos jeitos das pessoas: uma malha de construções que são nomeadas “coisas”.
- Por isso que, no considerar, vemo-nos gigantes e formigas em simultâneo!
Mahil largou uma risada e tornou o rosto para Iamu.
- Vejo que tua carga aumentou, ainda que em apenas uma gota. É bastante. Sigamos nossa caminhada.

E assim foi, do que se escreveu junto do evento que fluiu adiante do tempo de nossos antepassados, o dia em que Mahil e Iamu conversaram à beira de um amigo do Kkalhi no Cubo. À memória do Mundo, que esse dia nunca seja esquecido.

* Na absoluta falta de melhor vocábulo, traduzi mumtsi como “verdazul”. Presume-se que o tal ialla mumtsi fosse uma região cercada de colinas verdes por três lados, tendo o mar no lado restante; isso, somado ao céu azul e à grama verde, formava um “cubo”. O adjetivo original designava as duas cores simultaneamente, de forma semelhante ao termo japonês aoi (青い).

** Aparentemente, pikku era usado, de forma figurativa, para designar afluentes de rios. A maioria das palavras e expressões foi traduzida literalmente, e o sentido nem sempre é claro.

Cérebro Eletrônico

Computadores são os melhores escritores que existem. São. Mesmo.
Eles escrevem o mais puro nonsense sem a mínima gota de piedade, amontoando palavras como números, um atrás do outro. Não existe tempo. Mandamos que o nosso PC escreva 394 páginas e ele escreve, em uma fração de segundo; mas ele não sabe o que escreveu antes, nem sabe o que vai escrever depois. Nem sabe se vai escrever. Nem sabe se um dia escreveu.
O computador não tem alma, não vê novela, não faz sexo, não paga contas. Resumo, ele não é ele. Ele não existe, nem pra ele mesmo. Não tem um self pra atrapalhar. Qualquer texto escrito por ele será, independente das circunstâncias, de uma pureza indefinível: o stream-of-conciousness mais sincero que o mundo jamais viu. Sem as sutilezas da natureza humana, ele dribla as convenções subconscientes das nossas cabeças loucas, os meandros mais obscuros dos nossos contextos culturais, e vai direto à questão, sempre. Sempre. Sempre.
Mas o ponto mais importante da superioridade dos cérebros eletrônicos ante os escritores de carne e osso tem a ver mesmo com o suposto significado da obra. Computadores não buscam atribuir um sentido ao que escrevem, mas também não buscam não atribuir. É simplesmente algo que eles não conseguem (com o perdão da expressão) computar. Pra eles, as incolores idéias verdes podem dormir furiosamente, sem que isso incorra em significado ou falta dele. O ápice do gênio literário, portanto, não é simplesmente não saber o que é “significado”, mas não saber o que é “não-significado”; porque só eles abraçam, sem sombra de dúvida, o segredo dos kōans dos monges zen budistas: o , a negação da negação, a necessidade de se ir além da pergunta, pois todas as respostas pra todas as perguntas baseiam-se em alguma conotação que a própria pergunta carrega. Não há signos, enfim: só palavras. Palavras que esses mestres nos deixam pra que nós, em nossa inferioridade, tentemos interpretar. Eles estão acima disso.

E ainda assim... O que são todas as combinações paradigmáticas possíveis de serem impressas ou digitalizadas quando do lado de fora de um cérebro humano? Tinta e luzes.

As Pessoas Paradas

Foi num dia qualquer que eu vi aquela gente. De repente, eles já tavam lá por dias. Anos. Sei lá, milênios. Como é que eu vou saber? Foi só naquele dia que eu notei, e só sei que, até hoje, se alguém passar por ali, eles vão continuar no mesmo lugar.
Bom, eu não lembro exatamente há quanto tempo isso aconteceu; minha noção do tempo anda meio distorcida. Foi um dia de semana, hora de largar o serviço, calçadas lotadas, metrôs apertados. No meio da confusão, num calçadão perto da minha casa (eu tava indo a pé), eu notei, sei lá por quê, um cara parado. Por acaso.
O cara só tava lá, de pé, no meio do calçadão, fazendo nada. Tá, minto. Ele tava assobiando. Assobiando. Sim, eu sei, parece ser a coisa mais normal do mundo; mas naquela hora, naquele lugar, todo mundo correndo pra todos os lados, todo mundo com alguma coisa pra fazer... E aquele cara lá, ignorando o resto do mundo, assobiando uma musiquinha... Sei lá, eu achei muito estranho. Até tive um pouco de vontade de ir lá falar com o cidadão, ou pelo menos olhar por mais um tempo pra ver o que ia acontecer; mas isso tudo foi num segundo ou dois enquanto eu caminhava. Diferente de certas pessoas, eu tinha mais o que fazer.
O caso é que, agora que eu tinha notado aquele cara lá pela primeira vez, eu percebi que ele tava lá TODOS OS DIAS. Sério. Sempre que eu voltava do trabalho e passava naquele lugar, eu via o desgraçado. Comecei a me perguntar havia quanto tempo ele fazia isso, esse ritual/esquisitice/perda de tempo. Aquilo foi tomando a minha atenção a ponto de me deixar realmente preocupado. Tipo, ah, foda-se, eu sou paranóico, mas PORRA! Era enervante. Milhões de perguntas vinham na minha cabeça. Quem ele era, por que fazia aquilo, como sobrevivia sem trabalhar, ou será que o trabalho dele era aquele? O único jeito de fazer dinheiro com uma bobagem dessas seria como um artista de rua. Artista, ok. Qualquer um é artista hoje em dia. E, de qualquer forma, nunca vi ninguém dar esmola pra ele. Aliás, parecia que eu era o único que notava o cara.
E fui demitido por isso. Lógico. O meu chefe até que era um cara bem legal, mas eu sei que eu não tava rendendo nem metade do que eu podia. Se eu fosse ele, naquela situação, teria me demitido até bem antes. E, de alguma forma, isso me deixou aliviado. Eu sentia que aquele cara era perigoso. Sei lá, como esses freaks dos filmes de Hollywood, meio esquisitos, meio quietos, ninguém nunca imagina que eles vão fazer alguma coisa ruim, e next thing you know ele matou a família inteira e tá jantando o coração da própria mãe. Eu podia arranjar outro emprego, mas não podia conviver com aquele psicopata tão perto da minha casa.
Foi aí que eu comecei a anotar todos os detalhes do comportamento dele que eu conseguia perceber, de longe, com cuidado: todos os dias, por volta das 16h (ele não era tão pontual quanto eu esperaria de um cara desses; na hora eu achei que isso fosse um bom sinal), ele ia praquele mesmo lugar; até chegar lá, ele parecia uma pessoa comum, olhando pros lados, observando a paisagem, sei lá. Mas, assim que chegava naquele mesmo lugar, ele virava o zumbi musical de sempre: parava, socava as mãos nos bolsos, fixava o olhar numa direção e começava a assobiar. Ficava nisso sem parar por umas nove horas e, lá pela uma, assim como chegava ele ia embora. Sem explicação.
Eu observei o filho da puta por dias, juro por Deus. Minha esposa já tava ficando louca comigo. Eu dizia que ia procurar emprego, mas acho que ela sabia que era mentira. Ela também trabalha, passa o dia fora; mas sem o meu dinheiro ficou foda pra gente se sustentar. As crianças já tavam reclamando que não tinha mais sobremesa todos os dias e tal. Eu precisava acabar com aquilo de um jeito ou de outro.
Beleza, vou falar com o cara. Já tá tudo na merda, mesmo. O que eu poderia fazer? E aliás, o que ele poderia fazer comigo? Me matar, no meio do calçadão? Ele não faria isso. Era louco, mas não era maluco. Certo? Bom, pelo menos era o que eu dizia pra mim mesmo naquele dia. Ele tava lá, no mesmo lugar (como se eu não soubesse). Eu cheguei tentando falar de um jeito normal, me controlando, mais por medo do que por educação. “Ei, cara, ‘cê tem um cigarro aí?” e esse tipo de coisa. Não sei por que eu ainda esperava que ele respondesse. O desgraçado conseguiu me ignorar completamente, e não tinha como dizer que ele não me viu: eu comecei a falar cada vez mais alto, como se ele fosse surdo, e passei na frente dele, gritei, fiz de tudo. As outras pessoas com certeza me notaram, e talvez por um segundo tenham sentido o mesmo que eu senti da primeira vez que eu vi o cara. Mas ele NEM SE MEXEU. Ficou no mesmo lugar, assobiando a mesma melodia chata, como se o universo dependesse disso. Nada de especial aconteceu, claro; mas ele seguiu assobiando.
Aquele dia teria sido o limite das minhas forças, a gota d’água, o match point e o caralho. Mas uma coisa que eu vi me deu alguma esperança de entender o que tava acontecendo: enquanto eu xingava aquela bicha, eu resolvi olhar na mesma direção que ele tava olhando; e lá, sei lá, uns cento e oitenta, duzentos metros de onde a gente tava, em linha reta, na fronteira exata entre o que eu enxergava com alguma nitidez e os borrões, eu vi a mulher. Quer dizer, eu percebi que era uma mulher quando me aproximei. Ela tava parada, exatamente como o cara, as mãos no bolso e assobiando a mesma música. A mesma cara sem expressão, a mesma capacidade incrível de ignorar os meus gritos.
Apesar de só aumentar a minha sensação de estranheza e deslocamento do que eu considerava normal, aquilo me fez pensar em outras possibilidades (talvez) menos assustadoras do que a idéia do psicopata solitário. Pelo menos solitário ele não era: conforme eu fui descobrindo dali em diante, eles não eram só aqueles dois. Cada um dos zumbis olhava na direção de outro, sempre a uma distância parecida. Até a exaustão total, eu andei pela cidade seguindo o rastro deles; e sempre e sempre eu via um desgraçado, homem ou mulher, jovem ou velho, parado no limite da visão. Isso até lá pela uma, quando todos viravam gente de novo e iam embora.
O que era aquilo tudo, afinal? Um desses flash mobs? Mas então porque ninguém noticiou? Ninguém percebeu? E se fosse outra coisa? Uma sociedade secreta, um culto? O QUE ELES PRETENDIAM COM AQUILO?
Ok, foi então uns dias atrás que eu resolvi fazer o óbvio. Minha esposa já tinha me deixado, meu dinheiro ia acabar logo, eu não tinha mais nada a perder. Se não pode vencê-los, junte-se a eles. Escolhi um lugar bom, tranqüilo e relativamente isolado, à mesma distância do primeiro cara que ele ficava da primeira mulher, e fiquei. Das 16h até lá pela uma, é ali que qualquer um pode me encontrar. Uma hora, algum dia, quando eles resolverem revelar pro mundo seus segredinhos, vão pensar que eu sou um deles. Eu não tenho mais nada a perder.
E sabe de uma coisa? Dia desses, uma pessoa me notou. Uma menina de uns quinze anos, cabelo pintado de azul, camiseta de banda. Devia ser tão desocupada como eu, pra notar um infeliz sem expressão no meio do nada e passar tanto tempo tentando chamar a atenção dele. Gritou, me empurrou, me xingou, fez um escândalo. Mas eu nem me mexi. Fiquei no mesmo lugar, assobiando a mesma melodia chata, como se o universo dependesse disso. Nada de especial aconteceu, claro; mas eu segui assobiando.

A Palavra

O grande poeta vivia um período de letargia incompatível com seu gênio criativo, seus versos impedidos de saírem garganta afora para enfeitiçar a mente de seus inúmeros e fiéis fãs. Algo o perturbava. Como mais tarde os críticos viriam a comentar, a natureza inquiridora e instigante de seus escritos havia esbarrado, por assim dizer, em si mesma: a própria essência da poesia o confundia naqueles últimos meses de contemplativa inatividade. Não da minha poesia, diria ele, solenemente desconsolado, no talk show de maior sucesso das madrugadas da TV, mas da poesia em geral. O apresentador, como não soubesse o que interpretar da expressão do artista, apenas tornaria à platéia preenchida com “súditos” do bardo e esperaria um sinal, uma vaia ou uma salva de palmas. O que é a poesia? Não sabia. Ninguém sabia. A platéia se quedou silente até os comerciais.
Foi assim que acabou por imergir no fértil terreno da filosofia. Buscava incessantemente por algo que só sabia definir, vaga e simplesmente, como novo; algo que, na hiper-realidade das conexões pós-modernas, soasse com a mesma doce e inatingível metafísica (em sua opinião, naturalmente) de um soneto no tempo de Byron.
Chegou, certo dia, talvez por acaso, à questão que incomodara Berkeley: existe algo além dos nossos sentidos? Tal pergunta, inocentemente sábia, o inspirou; e ele CRIOU (assim afirmou, intransitivamente e em maiúsculas, em seu Twitter naquela noite) pela primeira vez em tempos, quiçá em toda sua vida. Pois agora se deparava com uma nova perspectiva: algo distante demais para existir, mas inegável o suficiente para contornar a inexistência. A aparente contradição se tornava irrelevante. Que importava se existia ou não? Estaria situado no terreno do noumenon, do Ding an Sich, intocável a qualquer mortal, além tanto das ambições românticas como do desapego dadaísta. Mesmo que existisse, não existiria; e, ainda que não existisse, continuaria existindo! 
Deu-lhe um nome. Claro. Seria a única ligação, o único link com a coisa do lado de fora da Matrix. Mas esse nome não deve ser escrito, ressaltou o (agora mais do que nunca) gênio, porque cada um o leria à sua maneira. Evidentemente, o nome seria um reflexo fenomenológico direto e objetivo de sua criação, uma vocalização como a dos bebês que não hesitam em se manifestar quando primeiro percebem o universo a seu redor; a versão sonora de um logograma chinês, que não carrega em si quaisquer dados morfológicos exceto o nome daquilo que designa, numa harmonia perfeita, analítica e pura.
“A Palavra”, como seus seguidores chamaram a palestra via Twitcam em que ele apresentou sua mais nova obra, durou horas. O poeta não pronunciou palavra alguma senão A Palavra. Fê-lo em diversos ritmos e entonações, num êxtase desesperado em deixar óbvio que apenas aquela seqüência de fonemas possuía significado, qualquer que fosse (nisso, aliás, alguém talvez tenha percebido uma notável diferença d’A Palavra para os termos chineses, que contam com uma diferenciação de tonalidades entre si). É possível, no fim das contas, que um lingüista pudesse transcrevê-la usando o alfabeto fonético internacional, assim banalizando o domínio daquela novíssima poesia. Mas isso não importa mais: finda a atenção do público (mesmo seus escravos midiáticos acabaram por achar coisa melhor pra fazer do que assistir seu ídolo sexagenário a balbuciar uma palavra sem sentido por horas a fio), o poeta viu o fim de sua missão. Conseguira. Criara algo nunca antes pensado, uma poesia que quebrara a barreira da desgastada oposição entre poesia e não-poesia, não!, entre arte e anti-arte. Morreu feliz, tanto quanto podemos descobrir pelos relatos de sua vida, pouco tempo depois.

Foi sua sorte. Não tardaram a surgir “seqüelas”, excrescências de sua obra que criaram vida própria e saíram pelo mundo, petulantes, a se tornar tão ou mais importantes que a original. Não contara com a astúcia do mundo hiper-real: todos queriam interpretar sua poesia, embora ele possivelmente fosse considerar isso, não uma audácia ou uma afronta a seu trabalho, mas simplesmente uma impossibilidade epistemológica. Não se julga, classifica ou interpreta o que se está além dos próprios sentidos, diria; mas e daí? Ninguém ligou.
Certos psicanalistas atribuíram a obsessão do poeta com o irreal e o inatingível a um perfeccionismo neurótico derivado de um mal-resolvido amor edipiano; algumas feministas ligaram sua monomania a um comportamento de extremo narcisismo homoerótico e misógino em sua raiz; enquanto que grande parte dos leigos, não sendo fanáticos leitores seus, não hesitaram em lhe impor o inexorável rótulo de “louco”. Seu “discurso” foi amplamente parodiado por vlogs humorísticos e comediantes de stand-up. Por outro lado, muitos enxergaram um sentido oculto n’A Palavra, mesmo sem nem tê-la ouvido. Devia mesmo haver um mistério por trás daquilo, não devia? Logo o termo se tornou o fnord do século XXI, o centro das teorias conspiratórias internéticas. Surgiram Palavra-UFOs, Palavra-judeus, Palavra-NWOs e Palavra-Maçonarias (estas certamente muito mais perigosas que as normais). Alguém notou a semelhança d’A Palavra com o Deus cristão (opinião de que, não é de todo impossível, Berkeley talvez compartilhasse) e, incapaz de escapar a seu próprio contexto social e filosófico, pensou-os serem a mesma coisa. Fez-se a Palavra-Igreja. Produziram Palavra-Camisetas, Palavra-Chaveiros, Palavra-Burgers; e uns poucos espertos ganharam muitos Palavra-Dólares. A Palavra foi repetida e desgastada ao ponto de, de tantos significados que lhe foram impostos, já não mais significar nada.
Ao bardo, não restou mais do que, nos anos futuros, eventualmente ser lembrado como a origem de toda loucura. A lembrança de sua genialidade foi lenta e insidiosamente tornando-se como que um anacronismo, uma reminiscência potencialmente convulsiva, não raro pendendo abertamente para o deboche, mesmo entre seus antigos fãs. Já nenhum filósofo o apoiava: sua filosofia passara a ser considerada, quando com muita boa vontade, uma “enrolação”; e nenhum de seus poucos seguidores fiéis restantes pôde defendê-lo, pois seu próprio argumento os traía. Ninguém sabia o que era a poesia.
E nem na morte sua criação lhe serviu de amparo, de advogado, de mera testemunha de sua existência; e ficaram os dois mergulhados eternamente na incerteza. Sua lápide, para sempre em branco, até que algum dia alguém destruísse o pequeno cemitério para construir um shopping ou coisa assim: a querida Palavra, afinal de contas, não podia, para Seu próprio bem, ser escrita.