Descolonização

Onde agora a flauta e o tambor?
Onde a semente
Do amor sem lucidez
E da paixão
Sem serventia

Sem servidão, e
Desguarnecida?

Onde agora as praças sem dono?
Onde as danças?
Onde os beijos de
Cansaço, de saudade, ou
De agonia?

Foi mesmo tudo nivelado na cidade?

Foi toda essa civilidade
Luminosa e aliterante
Que ordenou as retas
E maquinou os planos
Dos nossos feriados, e
Das nossas feridas?

Então foi esse o sonho
Que se plantou no nosso sangue
De ferro e rodas e fogo
E outras efemeridades
Que de outra forma
Derreteriam?

Foi essa então a jaula
Que nos cederam
Tão aberta e morta e
Tão bem construída?

Foi nesse pináculo
Simétrico e
Proparoxítono
Que te fizeram cativa
De vírgulas, monólitos
Aeroportos e
Linhas-guia?

É essa mesmo a medida da nossa vida?

É realmente esse o ritmo das nossas mãos
Das nossas virilhas
Das nossas, talvez, mandíbulas?

Qual é o preço, então
De despovoar tua alma
E esvaziar tuas veias
E te fazer sumir
Por, quem sabe, um dia?

E será que eu posso
Será que eu devo
Podendo me abrir inteiro
Arrancar dos olhos
Arrancar da língua
Esta metonímia
Esta métrica, sei lá
Esta poesia?

Esta “esta”
Teia maldita
De alófonos prosopopeicos
E submissão subdividida

Em gozar como Shakespeare
Ou sofrer como Lúcifer
No pó regurgitado
De Ozymandias

E sem esse sonho, sem as sedas
Da memória marcada e moída
Das neves de outras vidas

O que sobra na tua garganta
Na tua saliva?

Em cada pobre tentativa
De se rasgar a História
E se rasgar
Em rebeldia?

Onde agora o tambor e a flauta?
Onde o suor?
Onde o verso sem rimas, sem
Ciência, sem
Obediência, sem
Referências, ou
Hipocrisia?