Meditação Parabólica sobre a Irrefutabilidade

Os Antropocéfalos são criaturas lendárias (ainda que possivelmente reais) descritas pelo fictício jornalista George Valley em seu igualmente fictício Dicionário das Coisas Ocultas. Referências sobre tais seres foram encontradas por Valley em numerosas fontes das eras antiga e medieval, de tabuletas sumérias a registros históricos chineses, todas, infelizmente, hoje perdidas; e, apesar das representações nelas contidas diferirem grandemente entre si, o escritor não tem dúvidas de que se trata do mesmo fenômeno. O nome com que as batizou, aliás, salienta uma de suas características notavelmente presentes em todos os relatos.
Dotados de impressionantes capacidades físicas e mentais, os Antropocéfalos parecem ter mantido uma fascinante relação conosco ao longo dos milênios. À semelhança dos elfos (muito provavelmente sua contraparte mitológica), eles geralmente se escondem e evitam ao máximo se expor a olhos humanos; quando, porém, resolvem nos visitar, coisas incríveis acontecem. Seu modus operandi se resume a invadir quartos à noite (eles se teletransportam de um lugar ao outro com facilidade e instantaneamente) e acordar pessoas, oferecendo-lhes um acordo: realizar um desejo qualquer, por mais absurdo ou dispendioso que seja, sob a condição de que logo em seguida (o intervalo de tempo pode ser de anos, séculos, qualquer período menor do que a eternidade) o indivíduo seja devolvido ao seu sono nos exatos local, momento e condições em que se deu o encontro, e toda a memória relativa a este seja-lhe apagada do cérebro; em troca, a vítima deve concordar em, num ponto desconhecido de sua vida (geralmente entre 60 e 90 anos; nunca mais do que 130), “morrer”, ou seja, ter sua existência abolida. Não se sabe por que motivo os Antropocéfalos exigem tal reparação; contudo, o sucesso de sua empreitada é evidente: especula-se que todo o ser humano que já existiu sobre a Terra tenha mantido contato com uma das criaturas, e a imensa maioria parece ter aceitado a proposta.
Não obstante o fato de que, pela própria natureza de sua comunicação conosco, a presença dos fabulosos seres não pode ser diretamente atestada, Valley cita várias obras da literatura científica e filosófica mundial (nem todas elas imaginárias) que legitimam sua verossimilhança: pensamentos de Platão, Tomás de Aquino, C. S. Lewis e Bertrand Russell, por exemplo. Além disso, o escritor ressalta a possibilidade de experiências “indiretas”, obtidas da mente inconsciente: afirma que por volta de 39% dos sonhos esquecidos imediatamente após o despertar são relacionados a um encontro com os Antropocéfalos, e estima que pelo menos 2,71% dos déjà vus decorra de resquícios de lembranças do desejo que eles realizam.

P.S.: creio que caiba aqui um esclarecimento quanto ao uso de “irrefutabilidade” no título desta postagem. Este “irrefutável” não é aquele que foi feito sinônimo de “correto” e “verdadeiro” (semelhante a, ainda que um tanto mais apropriado que, os termos analisados aqui; talvez merecesse um ensaio próprio). Antes, o sentido buscado é o de “algo que, independentemente de ser verdadeiro ou não, não pode ser refutado, isto é, provado falso”; quem sabe, portanto, “plausível” tivesse sido uma alternativa tanto mais adequada quanto menos complexa.
Todavia, tal adjetivo não me parece carregar uma conotação que eu julguei absolutamente necessária: a de que o que quer que classificasse teria sido considerado, à primeira vista, inverossímil; a negação, nota-se, não poderia faltar. De todas as construções permitidas pela língua portuguesa, imagino que a única palavra que cumpriria perfeitamente a função seria “desimpossível”; utilizei a suficientemente próxima “irrefutável”, enfim, para evitar ter de criar um neologismo.
Se bem que, vindo a pensar a respeito agora, foi exatamente isso que eu acabei de fazer.

Confiança

Em julho de 2017, Antônio Carlos Pereira Alves, morador da cidadezinha de Morro Redondo, no interior do Rio Grande do Sul, teve seus quinze minutos de fama com uma história das mais inacreditáveis. O Diário Popular, da vizinha Pelotas, publicou toda a sua narrativa e acompanhou a averiguação subsequente.
Tudo teria começado com seu misterioso desaparecimento, em dezembro do ano anterior. Segundo ele, que jurou ter sido policial militar antes de sua insólita experiência, estranhas denúncias vinham sendo feitas naqueles dias pelos habitantes locais. Algumas foram rememoradas por Alves em detalhes: sons vindos do nada, como o de uma batalha campal ou do chamado de um elefante, teriam sido relatados algumas dezenas de vezes em áreas rurais mais remotas; descoberta no quintal de uma senhora, uma carcaça (supostamente caída do céu) teria sido analisada por um biólogo da UFPel e se mostrado impossível de identificar; e um fazendeiro teria se deparado com um gigantesco animal invisível andando por suas terras, detectável apenas pelo trilho que deixava nas plantações e pelo estrondo de seus passos. O comando da PM local não achara um modo de lidar com todas as ocorrências, e as descartava, portanto, como meros rumores, devaneios de velhos ou trotes de adolescentes desocupados.
Foi então, conta Antônio Carlos, que, pouco antes da virada do ano, alguns homens que se apresentavam como agentes da CIA chegaram a Morro Redondo. Aquele que se dizia líder, o único que falava português, afirmou que a agência estava realizando uma operação no interior gaúcho e requisitou auxílio da polícia local. Dois dias depois, um grupo de brigadianos foi escolhido para acompanhar os americanos em sua incursão pelos campos e matagais; e o soldado Alves estava entre eles.
O que ocorreu em seguida, se acreditarmos em tal depoimento, foi um assustador mergulho nos domínios do paranormal: depois de algumas poucas voltas por estradinhas de chão batido, os instrumentos de navegação dos agentes simplesmente pararam de funcionar, e os homens se viram perdidos no meio de uma região deserta dominada por árvores, riachos ruidosos e desconhecidos animais selvagens. Sim, porque logo rastros impossíveis começaram a aparecer pelo caminho, e os tais “sons vindos do nada” que eram relatados pelos velhos senis passaram a ser ouvidos. À noite, Antônio Carlos se sentia constantemente observado; e as conversas incompreensíveis dos estrangeiros apenas aumentavam em si a sensação de deslocamento.
Logo foi notado que alguns dos PMs sumiam silenciosamente durante a guarda noturna, o que apenas diminuiu ainda mais o moral do grupo. Os agentes da CIA, ou quem quer que aqueles homens fossem, pareciam não dar a mínima para isso: apenas seguiam avançando pelo mundo desolado daquelas paragens, e davam ordens; estas, de início banais, foram se tornando cada vez mais exóticas, e sempre dadas sob a justificativa de “proteger o grupo” (sem nunca mencionar contra o quê, todavia). Alves recorda ter sido obrigado a desenhar, com um galho, estranhos símbolos no chão da floresta; assim como a bater, de tempos em tempos, em troncos de árvores, em busca de um ruído bastante específico, conforme ensinado pelos americanos. Mesmo quando constrangido a matar um de seus companheiros, no que descreveu como “um tipo de sacrifício humano”, o soldado não vacilou. A essa altura, a presença de algo sobrenatural naquele lugar já era tomada pelo grupo como inequívoca, quase normal; e uma certa palavra passou a dominar os diálogos em inglês, a qual Antônio Carlos deduziu ser o nome da coisa por que procuravam (embora não tenha sabido dizer se era uma pessoa, uma criatura, um artefato, um evento ou o quê): em seu testemunho por escrito, ele a anotou como “tôncoca” em um ponto e “tencoque” em outros dois; e, afora algumas especulações relativas a línguas nativas norte-americanas, a etimologia de tal termo permanece inconclusiva.
Por fim, pouco mais de duas semanas depois de partir, o soldado Alves resolveu que não aguentava mais. Contrariando as ordens dos agentes, fugiu na madrugada, escolhendo aleatoriamente uma direção e correndo tanto quanto pôde. Para sua surpresa, antes do nascer do dia descobriu uma pequena vila, onde conseguiu comida, abrigo e, no dia seguinte, um ônibus para voltar à cidade.
E é exatamente aí que a linha entre realidade e ficção torna-se obrigatoriamente mais difusa. Segundo Antônio Carlos, toda a sua vida foi de alguma forma “apagada” dos registros e memórias de todos: sua mulher e filhos haviam sumido, outras pessoas moravam em sua casa, os colegas de trabalho não o reconheciam (inclusive aqueles que o haviam seguido na expedição). Por outro lado, a Polícia Militar de Morro Redondo afirma que nunca houve um Antônio Carlos Pereira Alves na corporação, e ninguém exceto ele próprio alega ter tido qualquer relação com a (ou mesmo conhecimento da) tal visita de agentes da CIA. Para todos os efeitos e propósitos, todo o incrível enredo, que ele narrou tão esperançosamente a um jornalista do Diário Popular, não passou de um fruto de sua imaginação; e acabou por se tornar, na melhor das hipóteses, uma curiosa lenda urbana (ou, na pior, uma ridícula piada) para o entretenimento dos habitantes locais.

Como se a história já não fosse complexa e bizarra o suficiente até esse ponto, novas evidências foram divulgadas em 2019, reabrindo o caso no imaginário popular. O ufólogo e filósofo belga Jean Marie Delacroix, que estudou a narrativa de Antônio Carlos por dois anos, elaborou a respeito dela uma tese tão impressionante quanto.
Delacroix, sem sequer vir ao Brasil e entrevistando pessoas-chave apenas por e-mail, chegou à conclusão de que, sim, uma massiva operação internacional ocorreu em Morro Redondo no ano de 2017; mas não, não houve nada de paranormal a respeito dela. Segundo o belga, o soldado Alves foi vítima de uma certa “Operation Wild Hunt”, supostamente uma subdivisão do projeto MKUltra; este último, de existência comprovada, tinha como um de seus objetivos a experimentação de técnicas de controle mental. Em teoria, a operação realizada pela CIA no Brasil pretendia testar o chamado “princípio da credulidade”, também conhecido como “lei Stephen King” (ambos os nomes, aparentemente, expostos publicamente pelo próprio Delacroix): a ideia de que uma pessoa, sob um estado de grande tensão e em face de fenômenos que seu conhecimento não consegue explicar, tende a confiar cegamente em um indivíduo qualquer que demonstre algo de domínio ou controle sobre a situação, mesmo que isso envolva aceitar proposições fantásticas como verdadeiras sem a mínima evidência. Assim, todas as ocorrências “sobrenaturais” teriam sido, na verdade, arquitetadas pela CIA (o que, ao menos, explicaria o fato de Antônio Carlos ter encontrado habitações pouco após iniciar sua fuga: a incursão estaria apenas se movendo em círculos por uma área erma); e todos os participantes (os locais que primeiro fizeram as denúncias de atividade paranormal, a PM, mesmo a família do soldado) teriam, voluntariamente ou não, colaborado com o experimento e, após o fracasso deste, passado a ignorar a existência da vítima.
Mesmo após a teoria do estudioso ter sido propagada pela mídia, entretanto, pouco mudou: nenhum dos envolvidos se manifestou a respeito, e o soldado Alves (caso algum dia tenha realmente sido policial militar) não recuperou sua posição ou sua família; Delacroix sugere que isso se deva a alguma forma de ameaça perpetrada pela CIA. A agência, por sua vez, argumenta que nunca existiu uma “Operation Wild Hunt”, e que o projeto MKUltra, além de nunca ter sido aplicado fora dos Estados Unidos, foi oficialmente cancelado em 1973.
Já Antônio Carlos, ciente do fim próximo de sua celebridade, declarou que pretende escrever um livro sobre sua até hoje inexplicável aventura. Se será uma crônica investigativa ou um romance de fantasia, ele ainda não se decidiu.

O Gênio

Quando, em meados de 2005, o general reformado da Marinha americana George P. Hudson decidiu, aos 72 anos de idade, escrever e publicar por conta própria um livro de histórias infantis, a reação do mundo foi de pouco mais do que indiferença. Nem ele próprio, presume-se, imaginava a comoção que sua obra geraria alguns anos depois.
The Pangolin who Wore a Fedora, impresso em tiragem limitadíssima, foi, a princípio, recebido universalmente (se é que o termo é adequado ao número de pessoas que de fato o leram na ocasião) com o mais puro e manifesto escárnio. O livro revolvia em torno das simplistas aventuras do personagem-título (o qual, numa demonstração eficaz e auto-evidente do talento e refino literário do militar texano, era, efetivamente, um pangolim que usava um fedora), ambientadas num cenário que mudava e se adaptava conforme as necessidades narrativas de cada capítulo. Descrito como “um atentado à inteligência de seu público alvo”, o livro teria sido esquecido por completo (salvo um ou outro caçador de relíquias ditas so bad they’re good) se não fosse por um pretensioso texto postado online em 2017.
Estruturada como uma resenha, a postagem afirmava que as “supostas” falhas da obra infantil existiriam apenas porque ela, na verdade, não era nada infantil: o blogueiro anônimo listou trinta e sete pontos, frases e temas de The Pangolin who Wore a Fedora que, segundo ele/ela, provavam que o livro era uma bem disfarçada crítica da História recente americana. Só para citar um exemplo, o personagem principal seria uma alegoria do governo americano, enquanto seu chapéu representaria o poder, o dinheiro, a mídia, Hollywood, enfim, as armas ideológicas americanas; nos momentos, portanto, em que Pangolim induz algum amiguinho a usar o fedora para que a culpa de suas próprias travessuras recaia sobre eles (ocorrências que o escritor do blog cuidadosamente esmiúça), estariam escondidas referências a casos em que a Casa Branca fora acusada de forjar evidências para dar suporte a seus interesses. A postagem, apesar de seu nível de seriedade ambíguo, foi incessantemente reproduzida, a cada vez trazendo outras “evidências” que iam sendo “descobertas”, assim reatiçando grandemente a popularidade do livro e desencadeando uma onda de novas edições; e o fato de o autor ser um militar aposentado, potencialmente conhecedor dos segredos governamentais, ajudou a propagar a tese conspiratória entre grande parte dos novos críticos.
Uma outra teoria, entretanto, surgiu como contraponto à primeira; segundo estes, o uso ostensivo de alegorias no livro seria devido simplesmente à inabilidade de Hudson, e sua pretensão em esconder “significados ocultos” em suas páginas, amplamente desamparada. Um dos tais críticos, um psiquiatra nova-iorquino, chegou a definir a obra como “um bildungsroman vagabundo, inchado com doses cavalares de Freud e algo de Nietzsche, tentando justificar mais a si próprio do que ao absurdo personagem-título; (...) quase como um O Apanhador no Campo de Centeio para deficientes mentais”.
As discussões que se seguiram foram longas e pontuadas por exaustivas citações tiradas de escassas cinquenta páginas; algumas, dizem, foram fabricadas pelos próprios críticos, de ambos os lados, para dar suporte a seus pontos de vista. Contudo, enquanto tudo isso ocorria, George P. Hudson se mantinha curiosamente calado. Já havia recusado a oferta da editora de publicar seu outrora rejeitado segundo livro (o possivelmente genial The Tapir who Danced the Mambo), e se mantinha isolado em seu rancho em El Paso. Numa das poucas vezes em que deu alguma atenção aos jornalistas que o assediavam, declarou, muito irritado:
- Não existe conspiração! Não existe alegoria! É só a maldita história de um pangolim que usava uma porra de um fedora!
Quase desnecessário dizer, suas declarações apenas inflamaram a opinião pública quanto ao mérito artístico de seu trabalho: metade dos críticos considerou que sua falsa modéstia servia apenas para alimentar seu transtorno de personalidade narcisista, corroborando as teses quanto a sua psique baseadas em The Pangolin who Wore a Fedora; enquanto que a outra metade acreditou que o escritor havia sido morto, e que o sósia que deu a entrevista em seu lugar teria sido implantado pelo governo americano para conter as perigosas suspeitas suscitadas pelo livro.

E Enfim...

Como se mostrou definitivamente impossível (por mais que se tenha tentado) realizar a publicação do texto mais longo a que se referiu na postagem passada, decidiu-se fazer o upload do mesmo em um site apropriado e disponibilizar no blog o link para download. Portanto, pode-se baixar Mythopoeia, integralmente e em formato .pdf, aqui.

Um Breve Comunicado sem Importância

Apesar de no arquivo do blog constar apenas um texto (“As Duas Vidas de Melissa Whitman”) no mês de fevereiro, na verdade dois foram escritos; o outro, consideravelmente maior, levou duas semanas para ficar pronto. Infelizmente, por motivos que fogem à compreensão do escritor, o conto não pôde ser publicado; o serviço de postagem informava apenas que “um erro” fora encontrado. Até as 23h59min do dia 28 de fevereiro de 2013, tentou-se, sem sucesso, fazer com que a postagem ocorresse; o que infelizmente não foi possível.
Se permitirem as capacidades do escritor, o dito conto deverá aparecer por aqui ainda nos primeiros dias de março, assim se diferenciando daqueles que forem escritos para este mês, que virão depois do dia 20.
Ficam aqui registrados, embora o rigor com a data das postagens seja realmente uma preocupação auto-imposta, todos os esforços vãos do responsável pelo blog para manter a frequência prevista; o fato é que, depois de terminado um texto que levou dias e dias para ser feito, não poder publicá-lo por uma questão técnica é frustrante além do que as palavras podem expressar. Em um ano e quatro meses de blog, isso nunca havia acontecido.