Fantasmas

Yesterday, upon the stair,
I met a man who wasn't there.
He wasn't there again today,
I wish, I wish he'd go away...
 

(Hughes Mearns, Antigonish) 

Faz três semanas que o meu pai morreu.
Não deveria significar nada; mas significa. Esse é o problema. A minha mãe apanhava dele praticamente todos os dias, eu cresci vendo isso; o covarde, inseguro, bêbado. Batia em mim, também; mas isso não importa. Importa pra mim é a coitada da minha mãe agora andando a esmo pela casa; é ela não poder olhar praquela cadeira, aquela maldita cadeira, a cadeira “dele”. Ninguém senta nela, ninguém questiona por quê.
O silêncio na minha casa agora é ensurdecedor. Cada palavra não dita, cada desviar de olhos, tudo acaba se tornando símbolo da dor que a gente suportou por tanto tempo; e desse jeito ela não vai embora nunca.
Parece que a ausência dele é mais presente do que ele mesmo era, entende? Era pra gente esquecer. Ele já foi, não tem como ele nos atingir. Não deveria ter...
Tipo, no dia em que eu tive coragem de me assumir na frente dele, ele me deu uma surra; uma puta surra, a pior de todas. Por anos, então, eu guardei essa memória como um escudo. Eu sabia que ele nunca poderia me machucar mais do que ele me machucou naquele dia, então eu me lembrar disso me dava forças pra suportar. Só que agora isso é o que eu lembro, o tempo todo. Nem a minha esperança mais infantil e besta de que um dia ele fosse melhorar, fosse ser um pai melhor, que por uma única vez ele me olhasse como filho, como ser humano, nem isso mais eu posso ter!
Eu juro que já pensei um milhão de vezes em tacar fogo naquela merda daquela cadeira, mas eu simplesmente não tenho coragem suficiente pra isso.

Lentilhas Ardentes

Título horroroso. Eu ia pôr On Burning Mirrors, mas não achei o nome original em grego nos longos trinta segundos de pesquisa (não que fosse ficar um microjoule melhor). Porque por algum motivo eu tava lendo sobre o uso de lentes convexas pra convergir os raios do sol e queimar coisas; mas quem resiste a lentilhas ardentes? (lentilles, lógico; eu sou uma pessoa engraçadíssima).
Então. Eu pensava em escrever um meio-que-ensaio sobre como a vida é feita de efemeridades e acabei me perdendo nas meta-referências. Não, sério, é difícil estabelecer alguma significância se antes mesmo de digitar uma idéia, antes de terminar de pensar uma frase, já vem a necessidade de desconstruí-la. AVANT-GARDE. Deixa eu passar pro próximo parágrafo.
Porque essa temática não comporta mesmo muita suspensão de descrença, correto? Ou eu me permito uma hipocrisia desgraçada ou limito o texto a uma sucessão de “cenas” meio-formadas de mérito artístico duvidoso. Uma colagem de haikus paraguaios e sei lá que caralho de metáfora engraçadinha eu poderia usar. Tipo a versão escrita de um clipe dessas bandas hipsters de hoje em dia? Super vanguardista mesmo, pros padrões de 1920. #buñuelchatiado 
Mas afinal, o que é rock n’ roll? 
Falando sério agora. O plural de “haiku” é “haiku”, mesmo. Acabei de olhar no dicionário. E, olha!, descobri que “haiku” significa “sopro de fumaça” em finlandês; além de, claro, haiku. Os poetas fino-nipônicos devem se rasgar diuturnamente pra descobrir formas originais de explorar essa feliz coincidência. Considerando que eles existam, né. 
De qualquer forma, isso me faz pensar se ler a descrição de uma palavra te permite realmente compreender o que ela significa. Filosofia de boteco, ok, mas porra. Daí a pessoa lê “ciclos de rápidas contrações musculares nos músculos pélvicos” (fonte: Wikipédia; “musculares nos músculos”, gente) e goza? Então eu traduzo Sehnsucht como “vício em ansiar” e todas as circunstâncias psico-sócio-histórico-sexuais que levaram o povo alemão a até conceber uma palavra pra isso que se fodam? E, por conseqüência, eu devo assumir que um dia os computadores vão entender piadas de papagaio? 
Não que isso importe muito. O leitor vai se lembrar deste texto amanhã? Olha só. Monges medievais. Os caras tinham só meia dúzia de manuscritos pra ler a vida toda, então claro que eles ficavam presos a cada vírgula simplesmente porque cada vírgula era uma relíquia (e existiam os copistas, que nem ler sabiam). Hoje nós temos a internet. Reverência cega contra pragmatismo indolente? A liberdade de interpretação e adaptação (a desterritorialização, diria Deleuze) é a guilhotina zen da era wiki, a revolução tá engatilhada, mas e aí? Este texto faz algum sentido? Não é uma pergunta retórica. Ou então eu posso escrever qualquer merda, erar a otrogafia a potauçã eu poss at´ nem. 
Pois é. Mas assim é a vida, certo? A guerra, as eleições, tudo é um grande painel de clipes desconexos se contraponteando; os teus amigos são um número no canto da tela. Não adianta eu querer seguir escrevendo ad infinitum, a responsabilidade não é minha, eu não posso catalogar o mundo em um ensaio; e mesmo que eu pudesse (e quisesse), não seria ético. A responsabilidade não é minha.
Eu já usei esse recurso de terminar o texto abruptamente em outra ocasião, mas nesse caso a escolha se justificava pelo tópico em questão; desta vez eu simplesmente não tenho como referenciar essa bagaça toda de forma nem pseudo-inteligente.