Breve Compêndio de Pseudeisegeses IV - Uma Questão de Semântica III

A confluência arbitrária de alguns fatores de pouca importância (uma leitura superficial do conceito de “anarquismo epistemológico” de Feyerabent; o fortuito link à análise etimológica de Heidegger do termo grego “ἀλήθεια”; e as subsequentes e superpostas lembranças de certas pequenas fábulas de minha própria autoria) me levou, esta madrugada, a uma epifania: a solução do debate entre positivistas e pós-modernistas acerca da natureza da verdade talvez se encontre sob um manto semiótico.
Esclareço: a mais persistente crítica contemporânea à validade do método científico diz respeito ao fator humano (naturalmente subjetivo) envolvido na procura pelo conhecimento, e à demasiada dependência deste a noções preconcebidas; cientistas, por sua vez, repudiam tal “relativismo” como mera ignorância, e defendem o paradigma como havendo sido construído sobre experiências bem-sucedidas e comprovável sob similares circunstâncias em qualquer lugar e por qualquer um. Existe aí, contudo, um meio-termo: a descoberta de novas evidências força sempre uma reavaliação da ordem corrente, seja com a rejeição de uma ideia previamente aceita, seja com a criação de uma teoria ad hoc (dependendo da linha teórica por que se tem preferência). A revolução científica se dá apenas mediante constante reexame (e eventual substituição) das verdades em vigor.
Pode-se afirmar, então, que aquilo que os pós-modernistas definem como “verdade” é, talvez ironicamente, um conceito muito mais objetivo do que aquele de fato adotado pela ciência; ou, para ser mais preciso, a definição da palavra que os detratores liberalmente atribuem (no intuito de criticá-la) à busca do método científico está equivocada. Talvez existam fatos imutáveis no universo, mas mesmo que os alcançássemos nunca teríamos certeza de sua imutabilidade; nesse sentido, uma acepção unificada do termo será inerentemente subjetiva. Por outro lado, a perspectiva de mudança não deve tornar quaisquer hipóteses vigentes menos válidas: enquanto justificadas, práticas e em consonância umas com as outras, serão sempre verdadeiras.
Sugere-se, portanto, que por “verdade” se entenda um fluxo singular e contínuo de significado; cada percalço mudando a direção da corrente, mas nunca a dividindo. Como uma espiral, eternamente virando sobre si mesma, cada vez mais longe do próprio centro.
Tal proposição, é claro, redunda completamente hipócrita, já que é questionável sob sua própria definição (porquanto infalsificável); deve, assim, ser considerada falsa, ainda que em um nível intangível não o seja. De uma forma ou de outra, eu precisava de um terceiro texto este mês, então.

Kōan V‏

In this same time our Lord shewed to me a ghostly sight of his homely loveing. He shewed a littil thing the quantitye of an hesil nutt in the palme of my hand, and it was as round as a balle. I lokid there upon with eye of my understondyng and thowte, What may this be? And it was generally answered thus: It is all that is made.
(Juliana de Norwich, Revelations of Divine Love)

Tinha sido durante uma reunião de ex-colegas, James recordava, que ele ouvira a anedota. Teria acontecido, caso fosse mesmo verídica, a um amigo, ou a um amigo de um amigo (alguém preservado no fundo de sua memória, com certeza, como uma referência de educação e cultura), sabe lá Deus quantas décadas atrás; passava agora em sua cabeça como uma peça de teatro, distinta de todas as outras vezes mas mantendo o mesmo enredo básico: a aula de Psicologia de uma universidade pública; a aflição dos estudantes diante do anúncio de uma prova surpresa; o professor apanha um dos assentos e, sorrindo de forma quase obscena, lança o desafio: provem pra mim que esta cadeira não existe. Os discípulos se desfazem em verborragias, regurgitando citações a todo teórico que lhes surge à mente, revirando cada pequeno neurônio em busca da correta linha de raciocínio; e eis que apenas um entre eles passa no teste: apenas um único desgraçado, que se contentou em escrever “que cadeira?” e deixou a sala muito antes dos outros.
“Esses cara são tudo louco”, James se pegou dizendo a si mesmo, sem saber por que lembrara daquilo. O pensamento o distraiu por um instante de seu propósito; a percepção veio brusca, como um reflexo involuntário; e ele notou, resmungando, ter perdido mais uma vez O Jogo.

A proposta de The Labyrinth não era (segundo lhe haviam contado, pelo menos) muito diferente de grande parte dos reality shows que vêm devorando espaços na grade de qualquer emissora nos últimos anos: largar dezesseis desconhecidos em um local isolado e os observar, 24 horas por dia, em sua ânsia pelo prêmio milionário. Os particulares menos importantes eram que a locação seria um verdadeiro labirinto subterrâneo, privado de luz solar ou qualquer outro método de mensuração de tempo; e que a competição se daria em forma de campeonato, pondo sempre dois participantes a disputar entre si uma vaga na etapa seguinte. O objetivo de tal disputa, o detalhe que os produtores mais se enrolavam para explicar, seria então “caçar” o oponente, emboscando-o (fosse nas sombras dos caminhos entrecruzados ou nas brumas do sono) e o eliminando.
- ‘Cês tão querendo que eu mato um cara? - James recordava ter perguntado, completamente aturdido, durante a audição.
- Não, não... - os dois homens responderam ao mesmo tempo, entre risos tão reconfortantes que pareciam nervosos; um deles então continuou. - Você só tem que pegar o seu adversário de surpresa, pular em cima dele ou só tocar nele por trás... O importante é que ele não veja você. Quando isso acontecer, a gente acompanha tudo pela câmera, a gente entra e confirma a sua vitória; você segue pra próxima rodada, ele volta pra casa.
James nascera, como ele próprio gostava de dizer (e possivelmente ouvira em algum seriado, sendo então atingido por um senso de romantismo eufemístico), “no lado errado da cidade”. Passar longos períodos de tempo em lugares escuros e apartados do mundo não era algo que lhe desse prazer, mas era algo em que (feliz- ou infelizmente) ele admitia possuir vasta experiência. Os produtores, no entanto, não o haviam questionado acerca disso além de um simples “sim ou não” no questionário de admissão; e, caso chegasse a ser campeão, o prêmio era mais do que suficiente para quitar todas as dívidas que fizera ou sonhara poder fazer na vida. Divorciado, sem filhos, ele literalmente não tinha coisa alguma a perder.
Os primeiros estágios do programa se passaram sem maiores problemas. Enquanto James estava acostumado a proceder com cautela e concentração absolutas, seus oponentes eram barulhentos, descuidados e se desesperavam muito facilmente; por mais que precisasse vagar sem rumo por uma imensidão de passagens intricadas, cedo ou tarde ele os encontrava chorando ou roncando em algum canto. O maior desafio, na verdade, era lidar com a ausência de um fluxo temporal perceptível: sem horários fixos para o que quer que fosse, ele já havia desistido de tentar estimar a duração de sua estada naquele lugar. Aquilo sempre o fazia pensar em um artigo que lera em certa ocasião, sobre como pessoas que viajam com frequência tendem a se “desprender” do tempo; uma aeromoça, ele lembrava nitidamente, relatara como havia feito três voos entre Barcelona e Los Angeles em um dia, almoçado três vezes e ainda chegado em casa antes de escurecer.
Era assim que James se sentia: como se um minuto pudesse durar uma eternidade, e mil passos não o levassem a lugar algum. As vistas ao longo do percurso apenas consolidavam esse sentimento: certas áreas ainda continham um ou outro traço marcante, e ele tentava manter suas localizações como a Arca da Aliança em sua mente; mas os longos túneis que as conectavam, as salas intermediárias e toda sorte de viela e encruzilhada e fim-da-linha, todos eram monotonamente idênticos. Com frequência, ele se deixava perder em reflexões, hipnotizado pela marcha regular e silenciosa; quando dava por si, de sobressalto, sentia-se repentinamente vulnerável, e se amaldiçoava por perder O Jogo.
Outras pessoas além de seu presente rival também habitavam o labirinto, todavia, em pequenas “vilas" aonde os participantes eram instruídos a ir para comer e dormir; mas eram todos personagens, representados por atores profissionais, preparados para reagir dessa ou daquela forma dependendo das ações de seus interlocutores. Um diretor lhe havia advertido a respeito, e James se convencera a interagir o mínimo possível com aquelas pessoas; julgava que permanecer em tais recintos por muito tempo o faria um alvo óbvio. O fato de os intérpretes serem periodicamente substituídos, fazendo com que um mesmo “morador” parecesse poder transmutar o rosto e a voz à vontade, não melhorava a situação.
De uma forma ou de outra, por habilidade ou por pura sorte, o fato é que James havia chegado à grande final. Como ocorrera ao conquistar as fases anteriores, foram-lhe mostrados clipes dos movimentos e táticas de seu próximo adversário, gravados durante as vitórias deste; mas isso acontecia em uma salinha adjacente ao curso principal do labirinto, habitualmente trancada, e nunca lhe foi permitido deixar o set por sequer um instante. Essas, aliás, eram as únicas ocasiões em que a produção do reality se fazia notar; e nenhum dos contrarregras que o acompanhavam, ele constatara desde o início, usava relógio. Não fazia diferença, porém: tudo em que ele conseguia pensar é que precisava apenas fazer, uma vez mais, o mesmo que já vinha fazendo havia sabe lá Deus quanto tempo.
E agora, agora que ele quase podia sentir a recompensa em suas mãos e visualizar tudo que adquiriria assim que saísse daquele arquipélago, era como se o fim de suas tribulações lhe fugisse. Sua presa parecia absolutamente indetectável. A princípio julgara que a ansiedade lhe estivesse a distorcer ainda mais a percepção do tempo, e que seus triunfos passados o houvessem tornado desatento; mas por fim tinha já a certeza de que a derradeira rodada da disputa estava se estendendo muito além do que deveria. Flashbacks de momentos desditosos de sua vida vieram assombrá-lo, conforme espreitava angustiadamente por esquinas mal iluminadas e vazias; os atores, quando os encontrava, só lhe provocavam asco com suas expressões preconcebidas. Ninguém lhe comunicara qualquer mudança de planos; e, no entanto, o outro finalista não estava em lugar algum.
Suas suspeitas começaram pelo trajeto mais lógico: não havia outro finalista. Era a única explicação possível; a questão era por quê? Aquilo tudo seria uma piada? Seria razoável imaginar que todas as etapas passadas teriam servido simplesmente de isca para convencê-lo da realidade da competição? Ainda assim, a fraude deveria ter um motivo. Precisava haver um motivo. Talvez ele de fato estivesse em um programa de televisão, algo como uma versão particularmente terrível d’O Show de Truman; ou, então, em um experimento de cientistas, psiquiatras, uma casta qualquer de malucos que se comprouvesse em assistir ao lento ocaso de suas esperanças e chamá-lo “estudo”. Esperava, ao menos, que alguém o estivesse observando.
Quem sabe... Quem sabe ele só precisasse admitir a derrota? Cair de joelhos, desabar em choro e gritar para câmeras invisíveis que não possuía em si mais forças para continuar; quem sabe essa fosse a condição necessária para a vitória, afinal de contas. Quem quer que fosse a mente por trás daquela pantomima, ela parecia ser sádica o suficiente para estipular tal regra. O medo de arriscar e acabar “morrendo na praia” (ou sofrendo sabe lá Deus que tipo de reprimenda), contudo, o mantinha de boca fechada.
Já não mais visitava as vilas, exceto quando a fome se tornava insuportável; então agarrava o primeiro alimento que visse e se punha em marcha novamente, mal captando uma insinuação de sentimento (que talvez fosse medo, talvez pena) nos rostos aparvalhados dos moradores. Quando encontrava sinais quaisquer de presença humana em suas andanças, julgava sempre que ele próprio os houvesse causado (mesmo que fossem sons vindos de outra sala, ou vultos em movimento em sua visão periférica). Convencera-se de que os outros desejavam que esperasse, e assim o fazia. Uma sensação inquietante lhe dizia que, quando enfim resolvessem lhe entregar o título de campeão do labirinto, descobriria que sua jornada inteira não durara mais que umas duas semanas. Até lá, manter-se-ia concentrado em sua paciência.
Se pensavam que ele estivesse cedendo à loucura, isso seria a última coisa que demonstraria (mesmo que fosse verdade).

Certa vez, recordou-se de um trecho de um livro que um dia lera, chamado Livro das Coisas Sem Nome: “A dissonância que se percebe entre a memória de um querido objeto da infância e a aparência que porta o mesmo ao ser encontrado anos depois. Se tal dissonância deve ser atribuída a um mistério ontológico ou a meros fatores psicológicos depende das inclinações filosóficas de cada um”, dizia, letra por letra, a descrição de um termo inexistente. James se divertiu ingenuamente com a lembrança, quase como se pudesse tomar seu significado nas mãos; então compreendeu, talvez muito tarde, que mais uma vez se havia permitido distrair-se; estalou os dedos diante do rosto, apressou o passo e tentou esquecer ter perdido O Jogo.

Paradoxos Lógicos da Era 16-bit

Dia desses, quando eu ainda jogava Super Metroid, uma passada pela wiki (não que eu precisasse de ajuda com uma parte difícil, claro que não; eu sou ótimo em sair de Norfair pelo caminho certo e sem ter que atravessar uma sala cheia de lava) me levou, de link em link, a descobrir um detalhe muito interessante sobre certo trecho do jogo; um detalhe minúsculo, mas que levanta questões profundas sobre a lógica dos videogames (e, quem sabe, da vida real também).
Antes de eu explicar, um pouco de contexto: o trecho a que eu me refiro é a batalha contra um chefe chamado Draygon, um dragão/peixe/lagosta que passa o tempo todo ou voando de um lado pro outro da tela ou cuspindo gosma pegajosa. O método mais comum pra vencer o bicho é simplesmente desviar das investidas e disparar mísseis na barriga dele (o que vai ficando cada vez mais difícil, porque ele se move mais rápido quanto mais perto de morrer); mas existe um truque que torna a coisa toda despudoradamente fácil: cada parede da sala tem dois canhões que disparam bolas de energia; a ideia é explodir um deles, daí deixar que o Draygon agarre a Samus (a personagem jogável) do chão e então mirar o grappling beam (uma arma de raio que funciona como um gancho) no vão destruído e faiscante. Em teoria, o que acontece é que a eletricidade é conduzida através da armadura da heroína e atinge o monstro; na prática, só o que importa é que ele morre em segundos com esse macete, poupando horas de ânimo e paciência do jogador.
Agora, o detalhe interessante que eu li a respeito é que, aparentemente, não é a eletricidade que causa a morte do chefe. Hacks de Super Metroid mostraram que a mesmíssima técnica pode ser usada também com os grapple points comuns, esses que servem de eixo pra Samus se balançar (usando o grappling beam como um cipó) e evitar abismos ou armadilhas. O caso é que, no local onde a batalha acontece, os únicos grapple points disponíveis são os destroços dos canhões; foi necessário adicionar um outro, não-elétrico, no meio da sala pra provar que o Draygon morre de qualquer forma.
O grande enigma aqui, então, é: do ponto de vista “de dentro”, pensando a questão como se ela fosse real, o que é, afinal de contas, que mata o chefe?
Não é fácil achar uma única resposta; eu até desenhei um diagrama (que eu não vou incluir neste texto por motivos de: senso de ridículo) pra entender melhor a relação entre os elementos, mas ainda daria pra argumentar por ambos os lados. Pode-se dizer, acho eu, que seja uma questão de aparência versus realidade: a eletricidade parece ser responsável, e é a culpada mais óbvia; mas um exame mais minucioso (no caso, a “descoberta” dos hackers seria uma metáfora do método científico) demonstra que essa suposição é errada. Ao mesmo tempo, o hackeamento pode ser visto como uma interferência que altera o resultado dos eventos; aí a versão “alterada” do jogo é considerada fundamentalmente distinta da original, e qualquer detalhe particular a ela passa a ser irrelevante.
Eu ainda tentei imaginar uma analogia do problema com alguma situação mais palpável, mas acabou sendo inútil; o paradoxo em si, eu tive que constatar, não é restrito só à ficção, mas à forma de mídia que é o videogame. Ele depende de uma anomalia, basicamente: um acontecimento que vai contra as leis do seu próprio universo; mesmo a interpretação mais criativa de um livro ou filme, por exemplo, não contradiz o que foi estabelecido pelo criador (geralmente o foco é o que não foi estabelecido). Hackear um jogo, por outro lado, é como inserir um personagem no meio de uma cena ou mudar a ambientação de um capítulo, e então ver como as coisas se desenrolariam de acordo com as regras que os programadores mesmos definiram. O código, o conjunto de leis que rege o comportamento de todos os objetos dentro do mundo virtual, é tão parte da narrativa quanto a backstory de qualquer série.
Ou seja: a dissonância entre o que visivelmente acontece e o que com certeza aconteceria é que permite que duas ideias opostas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Talvez o negócio seja aceitar que a eletricidade é e não é o que mata o Draygon, mesmo.

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Numa nota distinta mas não completamente desconexa, seria talvez oportuno colocar aqui uma outra questão: se um dilema lógico não tem absolutamente qualquer aplicabilidade na vida real, o quão relevante pode ser (mesmo que simplesmente como exercício de pensamento) discuti-lo? Que insight isso pode nos dar sobre o funcionamento do nosso universo, além de criar ainda mais perguntas sem resposta? E em que ponto essas perguntas vão definitivamente perder todo o valor semântico e virar só recursos retóricos? Quantas mais eu posso encaixar aqui sem apresentar uma conclusão nem deixar o leitor sair achando que este texto inteiro foi uma perda de tempo absurda? Boa noite.