Má Fé

Não. Eu já disse mil vezes, e vou dizer mais mil se for necessário: eu não sou um charlatão. Os senhores me desculpem, eu desconheço a definição legal de “charlatanismo”; mas em termos de moral, do que é certo e do que é errado, não tenho dúvidas de que essas acusações são infundadas.
Digam-me: pergunta-se a todos os médicos que intenções os levaram ao juramento hipocrático? Quantos, imaginem, não o fazem também por dinheiro? Ou por status? Não existem essas “dinastias”, vamos dizer, em que o ofício passa de pai para filho com a maior naturalidade? A intenção é irrelevante. Ninguém questiona a de um médico em sua profissão, desde que ele possua as credenciais necessárias e seja competente no que faz.
Por que a comparação não seria válida? Eu sou o primeiro a reconhecer que a astrologia é uma pseudociência (do contrário nós nem estaríamos aqui, não é verdade?), mas o meu argumento se mantém: é absurdo que se use a opinião pessoal de um profissional como critério para desqualificar sua conduta ética.
Não é cabível tampouco levar em consideração apenas um ou dois testemunhos escolhidos a dedo, com todo o respeito. Via de regra, os clientes não mudam suas convicções de uma visita a outra: os céticos, claro, tendem sempre a atribuir qualquer eventual acerto a mera casualidade; os crentes, por outro lado, antes deformam a visão que têm de si mesmos do que suas crenças. É justo (e lógico) dizer que nós raramente somos procurados por aqueles que entendem, eles próprios, da disciplina.
O que os senhores precisam aceitar é que a astrologia é um sistema de conhecimento muito bem definido, por arbitrários e irracionais que sejam seus preceitos. Ainda que um verdadeiro vigarista saiba sempre se expressar de forma dúbia a fim de mascarar seu embuste, existe, por exemplo, um modo certo de se interpretar cada elemento de um mapa astral. É possível estabelecer, de forma plenamente objetiva, o quão capacitado um astrólogo é; nesse sentido, a justiça faria melhor em acusar esses pastores que andam por aí criando e recriando seus próprios dogmas.
Se bem que os parâmetros da acusação pareçam variar de caso a caso, não é mesmo?
Enfim, para concluir, gostaria de dizer que minha consciência permanece imaculada. É verdade, sim, que eu considero a astrologia um monte de bobagens sem fundamento, não me envergonho de repeti-lo; a questão é que eu passei anos de minha vida estudando esse besteirol (visando, sim, o lucro; quem dos senhores nunca houver cedido à ganância que atire a primeira pedra), e penso ser o maior especialista no assunto da região, senão de todo o país. Muitos de meus “colegas” entram para a profissão porque acreditam piamente ter um dom: agem por instinto, ignoram regras, e ainda assim são deixados em paz para trabalhar; mas entre um cético qualificado e um assecla incompetente, eu devo lhes perguntar, quem de fato é o charlatão?

Queimadura

Que doa, mas que se cure
Ferida aberta
Que arda, mas cicatrize
E se costure

Os olhos da cara;
Ainda que cegos
Que se fortaleçam
As mãos e os peitos

E que o medo, mesmo cortante
Não seja mais
Que medo

Que sangre, mas que sossegue
Os calafrios
Que retorça e que lateje
Mas deixe livre

O suor da pele;
Mesmo febris
Que não descansem
Línguas e lábios

E o desamor, mesmo cruel
Não seja mais
Que medo

Possa a mesmice
Massacrante
Não iludir
Nem ser masmorra
A nenhum grito

Queimadura lave o corpo
E deixe escrito:
“Ainda não,
Ainda não”

Caso Oblíquo

Talush acordou de sonhos irrequietos, e permaneceu sentado em sua rede por alguns instantes. Sentiu uma raiva familiar crescer lentamente em seu íntimo. Pôs-se de pé de um salto; cruzando o véu que delimitava seus aposentos, foi ter com sua mãe. A velha Kumar o saudou de forma carinhosa, mas ele constatou de pronto que ela havia estado chorando. Seu pai não estava ali; a raiva se expandiu como a dor de uma estocada, em espasmos quentes e regulares.
Deixando a tenda, o rapaz se dirigiu ao centro da aldeia com um objetivo claro em mente. Fazendo questão de se desviar dos olhares funestos das entidades que vigiavam a entrada do Templo, tomou o caminho lateral, enfrentando alguns metros de mata fechada, até dar na clareira exatamente atrás do grande edifício. Ali, alguns companheiros estavam reunidos em torno de um trono baixo e tosco; uma mulher o ocupava, e aninhava no colo um ídolo de madeira.
- Kundik e Amuab, que filhos desnaturados! - exclamava Niazat, o fantoche, na voz da mulher. - Os deuses só podem ser montes de esterco se não podem dar à pobre Banir uma família decente! Ela que sempre foi uma filha respeitosa, uma esposa fiel e mãe dedicada…
Os espectadores se divertiam com a cena. Aquelas palavras, saídas da garganta de qualquer um, seriam blasfemas o suficiente para render uma sentença de morte; todavia, o pequeno boneco que habitava atrás do Templo era livre para falar sempre o que quisesse, sobre tudo e todos.
Paciente, Talush aguardou de pé por uma oportunidade de se sentar no trono. Quando sua vez chegou e um companheiro lhe alcançou a figura, tomou-a nos braços com cuidado e reverência, e pigarreou um instante antes de lhe dar voz: ao abrir os lábios de palha, Niazat subitamente explodiu em fúria contra Talik, pai de Talush. Afirmou que o homem, caçador renomado na aldeia, era um bêbado e um covarde; que sua bravura só durava enquanto estivesse acompanhado de outros homens, e que se batia apenas com mulheres e crianças quando a sós. Disse muito mais coisas, ridículas e terríveis, maldições que soavam como berros animalescos, para deleite de sua plateia.
O jovem respirou fundo quando enfim o fantoche terminou de falar. Percebera que Talik havia estado ali fazia algum tempo, rindo junto aos outros; entregou então o ídolo ao companheiro seguinte, e foi prestar seus cumprimentos ao pai. Os dois se abraçaram de forma cordial.
Talush sentia agora o corpo pesado como se houvesse caminhado por horas; mas havia ainda uma tarefa a cumprir. Refazendo a rude trilha que ladeava o Templo, ele evitou mais uma vez os guardiões e se desviou para o rio. Mergulhou até que as águas o cobrissem completamente, e permaneceu assim enquanto seus pulmões permitiram; então emergiu, e se deixou ficar flutuando, imerso em pensamentos, por longos e preguiçosos minutos.
Quando entendeu que já havia gasto todo o tempo de que dispunha, o rapaz mergulhou novamente, agora concentrado e deixando transparecer apenas o mais ligeiro indício de impaciência; com um movimento rápido e preciso, apanhou o primeiro peixe que enxergou: um grande e gordo bagre. Com o sacrifício em mãos, Talush retornou ao centro da aldeia pela última vez naquele dia.
Enfim se atreveu a desafiar os olhares das entidades, e atravessou o majestoso pórtico do Templo. Seguindo o longo corredor de imagens sagradas, marchou de forma serena e digna até a última edícula: aquela sem adereços, sem estatuetas, sem ícones e sem divindade; aquela cujo altar, dentre os numerosos que ali havia, era o mais frequentemente honrado. O jovem se ajoelhou perante o espaço vazio e depositou sua própria pequena oferenda; tomando em mãos um pedaço de carvão de uma fogueira havia muito apagada, rabiscou um lacônico “perdão” no chão de pedra; então se ergueu novamente e retornou a sua tenda, e dormiu.