Verborragia

Ela chegou este ano uns minutos depois de mim, pouco antes pôr-do-sol. Não me surpreendi; só uma vez eu pensei em ir em outro horário, e por uma coincidência qualquer ela pensou a mesma coisa e acabamos nos encontrando do mesmo jeito. Eu já tinha dito pra mim mesma que isso era inevitável.
- Júlia. - ela disse, de uma vez só e com um ponto final muito bem colocado. De repente ela já vinha com isso planejado desde quando me viu da esquina.
- Amanda. - respondi, sem me virar nem me obrigar a sorrir; eu não tava com paciência pra isso naquele dia.
Ela me encontrou ajoelhada do lado da lápide, mas eu não me importei. Eu não tava chorando; mas não por vergonha ou coisa parecida, só porque até aí eu achava que já tinha gasto todas as minhas lágrimas. Não falava, também, pelo mesmo motivo.
Alguns segundos se passaram assim. De canto de olho, eu vi que ela tava me olhando. Sempre aquela mesma cara. De culpa. De pena. Eu já tinha sentido raiva daquela cara, da pretensão dela de achar que tinha que me proteger ou me consolar; e como se ela fosse a Mulher Maravilha. Só que agora eu não tinha mais nem forças pra sentir qualquer tipo de emoção por ela. Não por ela.
Todo ano, todo ano ela tentava dizer alguma coisa. “A culpa não é tua”. Eu só queria o silêncio. “Nós vamos superar”. Nós. Eu tentava sempre pensar que ela tinha a melhor das intenções, mas era insuportável. E ela sabia. O tempo foi passando e ela foi vendo que nada que a gente dissesse mudaria alguma coisa. Eu só queria o silêncio.
Ela começou a chorar; eu olhei pro chão. Isso nunca tinha acontecido. No começo foi baixinho, mas não demorou muito pra desatar.
- O tempo - ela falou, tentando controlar os soluços. - tá bonito hoje, né?
Virei pra ela e percebi que ainda tinha algumas lágrimas guardadas. Acho que ali eu vi nela alguma coisa que nunca tinha visto: uma fraqueza, uma vulnerabilidade, sei lá; ou talvez fosse só cansaço. Mas, agora, o que isso importava? Naquela hora, naquele lugar?
- É - respondi, limpando o rosto e quase sorrindo. -, tá muito lindo. - olhei pro céu. - Muito bonito, mesmo.
Ficamos sem dizer mais nada, paradas ali, por mais um minuto ou dois; então ela suspirou alto, largou com cuidado o buquê no chão e foi embora sem olhar pra trás. O sol se pôs atrás do cemitério mais uma vez.

Sobre a Construção de Moinhos de Vento

Uma questãozinha a respeito do repertório retórico popular que vem me incomodando há algum tempo:
Todo mundo conhece a falácia do espantalho, certo? Aquela coisa de se colocar contra um argumento que nunca foi dito (ou pelo menos não da forma exposta), manjam? Exemplo: na virada do século XX, os eugenistas costumavam usar uma interpretação (bastante equivocada, diga-se de passagem) do darwinismo pra justificar seus preconceitos; desde então, críticos tendem a atacar a teoria da evolução como se ela fosse inerentemente racista. Esse ataque é falacioso porque, além de factualmente errado, ele se “desvia” do ponto relevante (que no caso seria a validade das ideias do Darwin).
Hoje em dia, essa é uma tática bem disseminada nos debates online: cria-se falsos rumores sobre alguém, todos os “inimigos” do indivíduo em questão os reproduzem, e logo tem um exército dedicado a refutar uma posição completamente inexistente. A internet sendo a internet, claro. O que me intriga em relação a isso, na verdade, é a motivação de quem inicia essas discussões. Quer dizer, claro, eu sei, a intenção é sempre atingir a reputação de uma pessoa; mas por quê? Porque não se gosta dela, evidentemente. E por que não se gosta dela?
Se parece um raciocínio circular, é porque é mesmo: nada do que o “alvo” realmente disse ou fez, que supostamente seria a razão da raiva a ele direcionada, é ao menos mencionado; ou seja, a prática é execrável não só do ponto de vista ético, mas também do lógico: por que “não gostar” de (ou, enfim, desenvolver qualquer tipo de sentimento por) algo que se sabe que é falso?
No fim das contas, a questão parece ser um pouquinho mais sutil: será que o problema é o fato de nós não conseguirmos refutar o que odiamos, ou de odiarmos o que não conseguimos refutar?

Zugzwang

Renata nunca vira o mar. Apesar de viver a poucos quilômetros do litoral, fazia questão de mantê-lo apenas como um ponto salgado e infinito em algum lugar de sua mente; um lugar preeminente, e ainda assim distante, de sua consciência. Já não saberia dizer se isso havia ocorrido como uma coincidência, tendo assumido importância apenas ao ser percebida, ou como uma decisão intencional, talvez conectada a sua paixão de adolescência à obra tolkieniana; o certo é que agora ainda não tinha planos de ir à praia, e em verdade evitava todas as chances que se lhe surgissem. Esperava por uma “ocasião especial” para viver aquela experiência, e a ideia só ia se tornando mais grandiosa e impalpável com o passar do tempo.
Era um sentimento um pouco pueril, ela reconhecia. Talvez fosse essa mesmo a razão: a jovem se havia tornado adulta de forma tumultuosa e vaga; fazia parte de uma geração que, tendo crescido com amplo acesso a um mundo inteiro de informação, já conhecia desde cedo as dificuldades que eventualmente enfrentaria, e não ansiava absolutamente em envelhecer. Via o “amadurecer” como simplesmente o conformar-se com todas as injustiças, mediocridades e desesperanças do mundo; e assim havia se passado, de fato, consigo mesma: fora abrindo mão, mais por desânimo e desilusão do que propriamente por falta de opções, de todos os seus sonhos ao longo do caminho. Aquela veneração mística ao oceano era o que lhe restara de romantismo na vida; apegava-se a ela, por singela e impensada que fosse, com todas as forças que o cotidiano ainda lhe permitia.
Mas a tal ocasião especial teimava em não chegar. Perdida entre os milhões de cenários que imaginava para como poderia acontecer, Renata não se arriscava jamais a se desfazer de sua pequena fantasia de infância. A cada oportunidade, a vontade de tentar vinha sempre equilibrada pelo medo de que a descoberta acabasse não sendo tão prazerosa quanto ela havia idealizado. Ou apenas de que a próxima pudesse ser mais propícia. Ou, enfim, de que algum dia, em algum ponto longínquo da vida, viria por algum motivo a se arrepender.
Continuava, assim, esperando indefinidamente; esperando pelo último momento possível, o último navio cinzento que ainda a acolhesse, quando já não houvesse escolha senão ceder. Uma espera que, ela bem sabia (ainda que não fosse jamais admitir), poderia durar para sempre.