Dissonância Cultural

O estrangeiro caminhava descuidadamente pelas vielas íngremes da cidadezinha. Seus olhos nunca miravam o pavimento matemática e delicadamente disposto sob seus pés: sua atenção se movia de forma fluida e desordenada entre cada prédio, cada árvore, cada pessoa que o pusesse e mantivesse sob o efeito de exotismo que buscava. Cada sorriso, independentemente da força vital que o manifestasse, era-lhe meramente uma peça do panorama ali disposto apenas para sua contemplação. Como se jogasse um videogame, continuava a avançar pelos velhos contornos de pedra, procurando extaticamente por qualquer coisa que lhe parecesse digna de uma quest.
Foi numa esquina pouco iluminada, quando a noite já caía despercebida, que seus olhos vorazes, em um raro momento de ócio, encontraram uma resposta inesperada; e ele notou que estava sendo seguido. Sua reação se deu em uma onda de pânico crescente surgida de uma seqüência de emoções não claramente distintas, conforme a figura desconhecida se acercava: da surpresa à curiosidade, da curiosidade ao desconforto, do desconforto ao pavor. Quis fugir daquela nódoa, daquela coisa que invadia o conforto de sua neutralidade contemplativa; mas, como as figuras nos vitrais das pequeninas igrejas góticas que o rodeavam e observavam, quedou-se inevitavelmente imóvel. Conseguiu apenas esperar, incapaz de escolher entre todas as possibilidades demoníacas que lhe voavam pela mente, até o vulto invadir completamente sua visão. Erguendo discreta mas firmemente uma faca enferrujada, os dentes semicerrados no que o estrangeiro interpretou como fúria ou mágoa ou tédio reprimidos, o homem limitou-se a lançar uma simples pergunta:
- Coj toochats, ee'aph čul chom?
A princípio, na mente do turista, nem mesmo a própria inteligibilidade daquela frase se mostrou inteligível; e ela trabalhou em vão tentando atribuir-lhe um significado.
- Não compreendo. - respondeu, enfim; seu sorriso trêmulo pretendia transmitir confiança. Talvez, só talvez, houvesse uma explicação racional para tal situação.
- Toochats, laa! - o nativo insistiu, parecendo não se importar com a resposta que recebera. - Ee'aph čul chom?
E com o passo à frente de seu enérgico interlocutor, o estrangeiro foi atingido por uma rajada fria e penetrante de realidade. Desconectado definitivamente de seu transe exploratório, virou-se e correu mais rápido do que poderia pensar em correr: não tinha nenhum destino em mente, nenhuma intenção que não fosse se afastar o máximo possível daquela esquina. Em sua pressa, nem notou os dois outros homens que o cercavam por trás; não teve tempo de computar o fato na fração de segundo antes ser nocauteado por um bastão de metal.
Acordou, mas não o percebeu de imediato: no escuro absoluto daquela sala, nem ao menos tinha certeza de que estava de olhos abertos. Sentia apenas o chão frio e úmido sob seu corpo nu, os odores combinados de sangue seco e urina e a orquestra de goteiras que parecia soar em sincronia com o latejar de sua cabeça; tudo misturado em uma única sensação difusa a atacar incessantemente seu cérebro. Conforme recobrava a lucidez, em um período de tempo que lhe pareceu indefinido entre minutos e dias, pensamentos depressivos o dominaram: intercalavam-se aleatoriamente flashes de seus passos pela cidade, de sua filha lhe esperando no hotel, do reflexo embasbacado de seu rosto no metal daquela faca...
De repente, interrompendo seu sombrio stream of consciousness, o som de passos suaves e regulares, vindos de sabe-se lá onde, surgiu e foi se aproximando; e um breve diálogo se fez ouvir:
- Chee si’aph chom, Ootsa. - ele reconheceu a voz como a do homem que o havia interpelado na rua. Ela falava de forma mais branda do que antes, entretanto; parecia quase respeitosa.
- Laa. - respondeu uma voz grave e ligeiramente irônica. - Cojva naarecha, toochatsiis palan umee onculeňa?
- Naarecoranaj. - a primeira voz gaguejou.- Suts... Suts uphee...
- Laa. - o tom da voz agora soava dúbio: seria aquilo desapontamento? Raiva? Indiferença?
Um feixe de luz vertical então apareceu em uma das paredes de escuridão, revelando o interior da sala úmida conforme se expandia em um retângulo branco. Da porta veio uma forma, a princípio um contorno vago contra a luminosidade ofuscante, daí se transmutando na figura de um homem. Calvo, baixo, de porte atarracado; os olhos sagazes observando atentamente aquela criatura ferida e assustada, sem no entanto transmitir-lhe qualquer emoção. Trazia na mão esquerda uma garrafa d'água; na direita, um revólver.
Pela primeira vez desde que acordara, o estrangeiro tentou se mover; e imediatamente percebeu que estava amarrado, e que o menor dos movimentos lhe causava extremo desconforto. Paralisado pelo medo e pela impotência, permitiu que o homem de passos leves se ajoelhasse a seu lado e lhe desse de beber. Sorveu o líquido com voracidade, subitamente consciente de sua sede; enquanto bebia, surgiu-lhe à mente a perturbadora idéia de que poderia ter estado ali por muito mais tempo do que imaginara.
- Čuru saj chetsul, ootsa Americaphon - disse-lhe o homem, novamente o interrompendo, ao se levantar; falava de maneira calma, quase afável, e sorria como se conversasse com uma criança. -; suts cojva chunetuula phee, te'uru palaliis pheen.
- Não compreendo. - foi tudo que conseguiu responder, sem pensar, mal conseguindo virar de lado sobre a superfície fétida e gelada. O tom compassivo do outro talvez o tivesse tranqüilizado por um momento, se as dores e a tontura não lhe impedissem qualquer raciocínio.
O homem de fala macia suspirou, sua expressão ainda completamente vazia, e permaneceu imóvel por um instante; então, em um só milésimo de segundo, sua face se contorceu em uma visão de pura fúria, e ele desferiu uma coronhada violenta contra o rosto do infeliz a seus pés.
- Coň toochatsen, čulen pheer ‘aatsitaa! - gritou; e ao primeiro golpe seguiram-se mais e mais, cobrindo a arma de sangue fresco e enchendo o recinto com urros e apelos desesperados. - Si'aph čul chom! - ele se limitava a repetir. - Cojva latiisca, si'aph toochats chom! Čulen pheer ‘aatsitaa!
Por fim, o turista não suportou; morreu, seu crânio transformado em uma massa indistinta de carne e sangue, enquanto murmurava entre lágrimas um último por quê?. No instante em que se apercebeu disso, o homem baixo e calvo, sua expressão restituída à vacuidade que lhe era normal, chamou seus subordinados para dentro da sala. Estes procederam então a estilhaçar minuciosamente o cadáver, abrindo suas vísceras, serrando ossos, perfurando os olhos. Terminado o serviço, tornaram com olhares preocupados para seu chefe, esperaram em vão por uma reação deste, e então um a um deixaram o local. O homem permaneceu ali, de pé, os braços cruzados; então suspirou, virou-se e também se foi.
- Coj toochats, ‘oon si’aph čul chomanaj… - ainda murmurou, ao fechar a porta, em um tom que poderia ser de desapontamento, raiva ou tédio.

Weltanschauung

1 – Crônica – Sob a Soleira da Porta

Eu costumava ter um lugar dentro da minha cabeça; talvez ainda o tenha, só não sei mais como alcançá-lo. Acho que nunca soube, na verdade. Simplesmente às vezes o encontrava, vagamente, repentinamente, sem qualquer motivo; como se observasse da praia a sombra de uma cidade submersa em águas turvas. Que poético. É sintomático: eu não tenho a pretensão de traduzir em palavras o todo de sensações de uma experiência fundamentalmente subjetiva; e, àqueles que buscam na vida precisão, coerência e rigor científico, eu sugiro o suicídio. Ou a leitura de um texto sobre física teórica, o que doer menos.
Era como uma lembrança, ou a lembrança de uma lembrança; a nítida impressão da iminência de uma recordação, um pensamento ou um sentimento. Mas essa impressão nunca se concretizava; nunca passava de um lapso fugaz, um gosto ou cheiro de porvir, de espera, que logo me deixava. Acho que essa era a sensação predominante da coisa toda: a expectativa. Uma esperança persistentemente indefinida, indefinível e interminável; e eu sentia sempre como se, na tentativa de contemplar o que quer que fosse, só conseguisse ficar parada, indecisa, à beira do mar. O meu lugar. 
Eu costumava ter um sonho besta, lá pelos meus cinco, seis anos; desses recorrentes, quando a gente já sabe o que vai acontecer e mesmo assim não consegue evitar. Eu me via correndo por um campo íngreme e acinzentado, como que fugindo, com a grama alta roçando no meu corpo, e ia me sentindo sufocada conforme subia; e, lá em cima, no cume da colina, eu enxergava uma porta. Sem paredes em volta, só o batente, só o contorno da passagem. A fronteira do desconhecido, os portões do Tártaro, a porta do sol; nessa época eu não tinha nem idéia do que semiótica poderia ser. Só via uma porta. Logicamente, eu tentava atravessá-la; e logicamente, também, ela batia na minha cara e eu me acordava de sobressalto.
Pensar sobre essas coisas sempre me deu a sensação de ter vivido minha existência inteira num torpor, numa monotonia incurável; como se eu estivesse presa sempre no processo de fazer ou experimentar qualquer coisa, sem nunca realmente terminar e não lembrar mais onde comecei. É engraçado, mas isso às vezes me conforta, às vezes me assusta: perseguir o horizonte simplesmente por saber que ele não pode ser alcançado. Inspirador e angustiante. É assim comigo mesma: por mais que eu tente me achar debaixo de todas as minhas “camadas”, por mais que eu me desconstrua, me cave carne adentro, eu nunca encontro um “lado de dentro”. Só mais camadas. Mais e mais camadas.
Uma vez na vida, apesar do medo, apesar do apego instintivo à mesmice, eu queria encontrar uma divisão inevitável, uma transição nítida no meu caminho; que eu chorasse, que eu me despedaçasse por tudo que perdi, não importaria. Pelo menos eu poderia dizer, uma vez na vida, que atravessei a porta.

2 – Poema – Claramente Intoxicada

E mesmo que seu corpo esteja tossindo de suor
Você tem um coração forte que pulsa
O gancho está aberto, os cavalos fogem pra longe
Por que eu não me tornei mais bonita e sábia?

Como uma pipa no céu
Passe um momento sem amanhã
Chove lá fora


Sobre a autora

Márcia Lindholm nasceu no Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1990. Filha de diplomatas, teve a infância dividida em vários capítulos difusos conforme sua família se mudava de casa em casa, sem tempo ou oportunidade de se apegar a nada. Tendo ainda muito cedo sido confrontada com os medos e a melancolia das megalópoles, viu-se repetidas vezes envolvida em grandes coisas sem jamais, entretanto, sentir-se parte de coisa alguma. Ainda adolescente, começou a escrever crônicas inspiradas em pequenas recordações íntimas em seu blog, A Casa Deserta; daí até a publicação do livro homônimo, uma coletânea de seus melhores textos, foi um pulo.
Inquisitiva, por vezes inquietante, dotada de um olhar que se move por estranhos e instigantes ângulos; e, infelizmente para si própria, inteiramente imaginária: o parágrafo anterior se trata de um breve exercício de ficção, e os textos do início da postagem foram escritos por pessoas diferentes.

Um ou Dois Pensamentos sobre Ciência Política

Era uma vez um reino muito distante no tempo e no espaço, cujos habitantes todos possuíam um grande número de pequenas bolinhas sortidas. Ninguém sabe por que isso acontecia ou que finalidade os objetos poderiam ter; mas as bolinhas eram coloridas em vários tons bonitos, as pessoas as adoravam e ninguém se preocupava em questionar nada. Cada um as usava de acordo com sua própria vontade, sem pudor ou cuidado, e todos eram muito felizes.
Um dia, entretanto, um dos locais resolveu que seus compatriotas estavam se divertindo da maneira errada. “Não pode ser que cada um use suas bolinhas do jeito que bem entender”, pensou ele, “porque assim só haverá caos”. Ele concluiu que havia uma ordem correta e perfeita para se organizar e utilizar os artefatos, a qual, coincidentemente, era a mesma que ele próprio sempre empregara; e então saiu pelo reino a pregar sua idéia.
Por motivos desconhecidos, a imensa maioria do povo decidiu acatar suas decisões: foi então escrito o Grande Livro das Leis de Organização Esférica e, no intuito de propagar e legitimar sua mensagem, estabeleceu-se um Colégio de Mestres incumbido exclusivamente de estudá-lo. Os sábios tidos em mais alta conta eram aqueles capazes de memorizar todas as regras; esses eram considerados Autoridades, e consultados sempre que havia alguma disputa relacionada ao Livro.
Logo os “hereges”, aqueles que continuavam a brincar com suas bolinhas sem respeito a qualquer tipo de organização, passaram a ser perseguidos. Tentar argumentar era inútil: os especialistas na legislação esférica se haviam tornado especialistas, em primeiro lugar, exatamente por seu domínio sobre as leis ancestrais; qualquer mudança nestas, portanto, era evento raro. Mais freqüentemente eram concebidas leis secundárias, dedicadas unicamente a reforçar o cumprimento da ordem oficial: essas geralmente se referiam a medidas sócio-educativas de prevenção à “rebeldia lúdica” e à formalização das penas aplicadas aos rebeldes.
Com o tempo, o abismo cultural entre o conservadorismo dos Mestres e a fluidez do uso popular apenas se aprofundou, e a convivência entre os dois grupos se tornou impossível. Foi somente após a longa e sangrenta Revolta dos Cubos que as bolinhas foram terminantemente abolidas: outras formas geométricas, mais variadas e democráticas, foram então distribuídas pelo reino, para que o povo pudesse voltar a se divertir em paz.
Agora, é evidente, e certamente o leitor concordará, que a maior liberdade de escolha passou a implicar maiores riscos à população usuária de tais serviços; dessa forma, fez-se necessária a implantação de algumas linhas-guia para a utilização dos novos objetos: apenas medidas gerais, cautelares, calcadas nas normas do bom senso. Tudo para que se garantissem as liberdades individuais sem desrespeitar os direitos do todo.

Aut Tace aut Loquere Meliora Silentio

Este mês eu não tenho nada pra escrever; ou não tinha. Primeiro paradoxo da manhã (são 6h enquanto digito estas palavras, estas aqui dentro do parêntese; não sei quando vou terminar), a inspiração pra isto veio justamente do fato de eu não ter inspiração. Isso já gera uma dúvida quanto à classificação do texto: antes de ser escrito, poderia talvez ser um ensaio; depois de escrito, somente uma crônica de ficção. Eu neste momento me encontro exatamente no meio das duas possibilidades; o leitor, tendo agora já quase terminado um parágrafo, que o decida.
O tema, pelo qual passei dias procurando, me veio da forma mais absurda e poética (uma redundância?) de todas: por acaso. Lendo um conto de Lovecraft, achei uma menção ao pintor barroco Salvator Rosa, que não conhecia; e, por simples curiosidade despretensiosa, resolvi pesquisar sobre o sujeito, e acabei encontrando a frase que escolhi como título. “Ou cala ou fala melhor que o silêncio” é a tradução mais literal possível; um resultado menos oblíquo seria obtido com “só fale se o que tiveres para dizer for melhor que o silêncio”. De um jeito ou de outro, o aforismo mantém uma consonância entre escritor e escrito: a “falta de conteúdo” compõe o próprio conteúdo da obra, dialogando num ciclo metalinguístico infinito conforme esta vai sendo construída (ou descoberta). Suspensão de descrença às favas, o leitor é confrontado com um texto que se reconhece como texto e serve de exemplo a seu próprio argumento, o que talvez mude sua perspectiva e o faça refletir sobre a própria natureza da literatura, quiçá de toda forma de comunicação humana.
Claro que não é a solução perfeita. Tentar justificar uma auto-contradição, servindo de advogado a ambos os lados, pode soar como um disparate (ou uma desculpa anêmica e cara de pau pra falta de ideias). Não tenho respostas a essas acusações; confesso que neste momento (são 10h45min agora; nunca escrevo nada de uma “sentada” só) eu não ainda não sei exatamente como chegar ao fim maroto que planejei de início. Pode ser que eu mude de ideia até lá.
E, realmente, eu cheguei a cogitar simplesmente pôr o título lá e deixar o texto em branco. Genial, n'est-ce pas? Mas talvez aí a reação emocional do leitor diante da minha preguiça o cegasse pra quaisquer ponderações que pudessem emanar das minhas, digamos, não-linhas. Talvez eu devesse ter esperado mais um dia ou dois e procurado um tema melhor; talvez um novo surto randômico de inspiração se apossasse de mim dez minutos antes da meia-noite do dia 30. Ou talvez, em verdade, tivesse sido melhor pular este mês; fazer como sugeriu o artista napolitano, como eu mesmo comentei, como indica o bom senso (principalmente o de quem trabalha com palavras): ficar quieto, se eu não tinha nada melhor pra dizer.
Mas acho que agora é meio tarde pra isso, né?

Inspiração

O videogame Ivory Tower (象牙の塔 Zōge no Tō, também conhecido pelo katakana アイボリータワー Aiborii Tawā), criado pelo desenvolvedor autônomo Ichirō Yamada (山田 一郎, Yamada Ichirō), foi despretensiosamente lançado para download gratuito em março de 2018; e, como com a maioria do jogos independentes de sucesso, vagarosamente passou de um pequeno cult following à atenção mainstream através do boca-a-boca, tendo pouca ou nenhuma publicidade. De fato, o aumento drástico em sua popularidade, pode-se afirmar, deve mais às ações de seus fãs do que a quaisquer suas qualidades (por numerosas que sejam).
Tendo sido frequentemente comparado ao aclamado jogo Yume Nikki (ゆめにっき, lit. Diário de Sonhos) devido a certas similaridades (ambos se originaram no Japão, se utilizam amplamente de gráficos surrealistas e são geralmente classificados como “horror psicológico”, apenas para nomear algumas), Ivory Tower acumulou, entretanto, críticas positivas por sua atmosfera única, assim como suas características inovadoras. A mais notável das quais, possivelmente, é o fato de que todo o texto do jogo é escrito em uma conlang (apelidada ivoriano ou アイボリー aiboriigo por fãs), a qual abrange uma importante parte de seu gameplay: o jogador começa no recinto mais alto da epônima torre, sozinho e sem qualquer backstory ou explicação; e conforme vai encontrando um caminho que desça até a saída, é confrontado com intrincadas inscrições, não tendo praticamente pista alguma de como decifrá-las, de forma que o único modo de resolver os enigmas, e portanto de ganhar o jogo, é comparar cada pedaço de informação que se pode coletar sobre a linguagem desconhecida, assim (juntamente com uma generosa porção de adivinhação) “aprendendo-a”. Repleto de inesperados plot twists (como o caso do último lance de escadas, teoricamente localizado ao nível do solo, que leva direto de volta para a primeira sala), IT se metamorfoseia de uma aparentemente inócua aventura a uma sisuda viagem filosófica conforme seus mistérios sombrios vão sendo revelados.
E talvez tenha sido sua natureza críptica a responsável por desencadear a controvérsia por que ele agora é conhecido.
Uns poucos meses depois de ser lançado, os fãs de Ivory Tower já haviam estabelecido uma wiki a ele dedicada. Apesar de ser oficialmente um guia para o complexo plot do jogo assim como uma reunião de seus muito procurados segredos, o site e sua comunidade logo passaram a se focar primariamente (se não exclusivamente) no ivoriano e suas possíveis interpretações. Após uma afirmação de Yamada, postada em seu blog pessoal depois de ser continuamente questionado, de que “os escritos têm apenas significado suficiente pra que o jogo seja jogável; de 50 a 60% deles é gibberish total”, a busca por supostas “mensagens secretas” apenas se fortaleceu.
Não demorou para que os rumores começassem. Quanto mais teorias alucinadas eram ideadas, mais pessoas se juntavam ao debate; e quanto mais pessoas se juntavam debate, mais alucinadas as teorias se tornavam. Lendas de salas secretas cheias de imagens perturbadoras e eventos sinistros varreram a internet, e logo se tornaram a principal fonte para os escritores de creepypastas daqueles dias. De fato, o jogo principiou a alcançar notoriedade pública (especialmente entre audiências ocidentais) quando certos grupos passaram a criticá-lo duramente pelo que viam como “inequívoco conteúdo satânico”, o que, irônica mas obviamente, apenas contribuiu para sua popularidade.
O conflito foi apenas agravado por um post no site 4chan de janeiro de 2019, no qual um usuário anônimo apresentou sua própria análise dos textos, sugerindo que algumas das mais obscuras frases ivorianas seriam na verdade corrupções do japonês. Apenas alguns exemplos foram dados, como “karrga kyrrköt övakjö kass ryna”, o qual foi explicado como 彼らが来ることは許可するな (Karera ga kuru koto wa kyoka suru na, lit. “não permita que eles venham”; entretanto, era consenso entre jogadores na época que “-ö” e “-öt” eram respectivamente os sufixos genitivos singular e plural, e que “ryna” representava o verbo “cair”, assim tornando tal interpretação impossível); contudo, a teoria popularizou-se imensamente, devido ao novo nível de profundidade que garantia a IT. Para os crédulos, essa era a prova de que havia mistérios ainda mais escuros ocultos sob a superfície.
Daí em diante, notícias na grande mídia sobre “obsessão” com o jogo foram se tornando cada vez mais frequentes; não que a origem das inscrições sem sentido que estavam de repente aparecendo em muros por todo o mundo fosse imediatamente óbvia a eles. Ou a qualquer um que não fosse parte do “culto”, de qualquer forma. Foi apenas quando a associação foi feita que aqueles grupos que anteriormente denunciavam as hipotéticas conexões de Ivory Tower com o oculto começaram a propor que ele fosse completamente banido. Ninguém sabia exatamente por que aquilo estava acontecendo, contudo; nem mesmo os próprios cultistas: quando uma adolescente de Nova York foi pega espalhando folhas de papel contendo a frase “Don’t let them come!” (lit. “Não deixe que eles venham!”) pelo gramado do Central Park, tudo que ela disse em sua defesa foi “eu não quero que eles venham”.
A controvérsia atingiu seu auge no chamado Caso Inoue, que se passou em Tóquio em 15 de agosto de 2019. Reika Inoue (井上 怜華 Inoue Reika), de 32 anos, estava indo para sua casa por volta de 1h da manhã quando, nas proximidades da estação Kasumigaseki no distrito de Chiyoda, ela aparentemente ouviu alguém chamando por seu nome e sussurrando “彼らは来ている” (Karera wa ima kite iru, lit. “Eles estão chegando agora”). Nesse ponto, à 1h07min, ela ligou para o Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio e os informou da situação, mas seguiu caminhando apressadamente. À 1h15min, a mulher telefonou novamente, parecendo estar bastante apreensiva; dessa vez ela alegou estar sendo seguida e que o criminoso, presumivelmente a única outra pessoa na rua àquela hora, estava agora gritando a plenos pulmões “彼らが来ることは許可するな!” e “彼らは来ている!”. Essas foram suas últimas palavras. À 1h51min, a polícia encontrou seu corpo no Parque Hibiya, jazendo em uma poça de sangue, profundamente perfurado pelo que parecia ser uma miríade de agulhas muito finas; e, cobrindo-o por completo, a mesma frase escrita repetidamente: “言わんこっちゃない” (Iwankocchanai, aprox. “Eu te avisei”).
Evidentemente, Ivory Tower foi banido no mundo todo depois de tal episódio. O jogo foi acusado (por pessoas que nem ao menos se incomodaram em jogá-lo) de conter mensagens de violência e comportamento antissocial capazes de corromper as mentes de seus jogadores; até mesmo um processo judicial foi aberto contra Yamada, apesar de logo ter sido fechado por falta de evidências. O criador manifestou sua raiva em seu blog, caracterizando a postura de seus fãs como “idiótica” e criticando a fonte primeira de toda a confusão: “(…) mas EU DISSE PRA VOCÊS que era quase tudo bobagem! Não tinha significado nenhum! Não tinha absolutamente PORRA DE MENSAGEM NENHUMA por trás de tudo!”, ele escreveu. Nenhum incidente relacionado a IT ou ao ivoriano foi relatado desde então; mas o assassino de Reika Inoue, quem quer que fosse, jamais foi encontrado.

Assim Caminha a Humanidade

Já foi dito que o português brasileiro, como várias outras línguas do mundo, é acometido de um fenômeno denominado “diglossia”: ou seja, dois registros de um mesmo idioma, às vezes não de todo mutuamente inteligíveis, coexistindo em um mesmo contexto social. Historicamente, isso ocorre por uma diferença de prestígio entre as variedades, uma delas sendo associada a uma casta ou classe tida como “superior”.
 Condições similares, ainda que mais amenas, ocorrem e ocorreram em todas as linguagens naturais. O ambiente cultural não é estático, e as gírias, pequenas inovações de cada grupo e geração, vão aos poucos mudando o modo de falar da sociedade como um todo; e, se hoje nos maravilhamos com os arcaísmos de um Camões (como se “arcaísmo” já não fosse arcaico o suficiente), sem dúvida que um Virgílio ficaria horrorizado em saber que aquilo foi no que se degenerou seu latim. O português, como todas as línguas da Terra, se formou pela constante e gradual mudança (“degeneração” é uma palavra tão forte...) de um idioma primordial, talvez uma matriz universal, milênios e mais milênios atrás.
Foi somente nos últimos séculos, no entanto, que a prescrição linguística se tornou a refinada ferramenta de dominação que é hoje. Com o nascimento do Estado-nação, a “identidade cultural” de cada pedaço de terra se tornou um evidente objeto político, algo que (como já disseram do deus cristão), se não existisse, precisaria ser criado. Assim, por exemplo, a proibição do uso de outro idioma que não a fala parisiense nas escolas da França, no final do século XVIII, não foi simplesmente uma humilhação gratuita aos bretões e provençais, mas uma demonstração da autoridade da república sobre as províncias.
O que me impressiona nisso tudo é a interação entre a norma culta da língua, “correta” e defendida pelos paladinos do status quo, e a coloquial, que de qualquer forma se conserva viva e fértil nas margens da sociedade. No Brasil, essa situação se dá sobre um paradoxo: o alcance praticamente ilimitado da mídia de massa, reprodutora (em geral) do registro oficial, e a deficiência do sistema educacional, que dificulta a apreensão por parte dos estudantes das “regras” de seu próprio idioma. O que existe, na verdade, é uma triglossia: uma terceira variedade, de certo modo um “meio termo” entre as outras duas (ainda que por vezes distante de ambas), emerge quando um falante, em determinada situação, tenta se utilizar de uma norma que não completamente domina. Uma variedade surgida espontaneamente, artificialmente, e que não obstante já dá seus primeiros passos rumo à formalização (que o digam os onipresentes “no caso” e “acintosamente”, distribuídos ad libitum no meio de discursos improvisados).
Engraçado imaginar que um dia, quando o estilo deste texto já for considerado arcaico, venha essa a ser a norma tida como culta. Ainda mais engraçado pensar que então ainda vão existir prescrivistas a defendê-la. 

In Girum Imus Nocte et Consumimur Igni

Pela milésima vez, a mulher sentou-se no velho banco, exausta, e se pôs a esperar. Milésima ou milionésima, ela nunca teria certeza. Os curiosos factoides da vida haviam sido interessantes anos atrás, décadas atrás; e sua cabeça não funcionava pra matemática (não depois de um dia todo sentada de frente pra um computador, pelo menos). Pensava agora apenas no ônibus; ou, antes, tinha a espera pela vinda deste como uma certeza instintivamente inflexível no fundo de sua alma. Pensar, pensar mesmo, não pensava nada. Queria mesmo era uma boa xícara de café.
Por que, afinal de contas, haveria de gastar seus neurônios? A calmaria da madrugada era sempre o pior momento pra se refletir sobre qualquer coisa: no escuro daquela esquina, o mundo parecia tão amplo, tão vazio, tão assustadoramente incompleto que era difícil impedir a mente de vagar por lugares bizarros, na ânsia de completá-lo; aí vinham as dúvidas, as desconfianças, os medos... E nunca havia nada nem ninguém, um mendigo ou demônio que fosse, pra lhe dizer deixa de bobagem, guria, vai lavar uma louça ou coisa do gênero. Não; era mesmo melhor não pensar. Qualquer coisa, até mesmo puxar assunto com algum estranho, seria melhor.
Entretanto, naquela noite, não havia ninguém. Ninguém. Nenhuma buzina, nenhum passo, nenhuma luz exceto a dos monótonos e monolíticos postes. O silêncio era quase ensurdecedor; mas a mulher só se apercebeu disso quando já iam vários minutos além do horário em que geralmente estava em casa, e o ônibus ainda não passara. O instante preciso, entre a olhada no relógio do celular e a total assimilação das circunstâncias ao seu redor, não durou três segundos; e a reação veio na forma de um pânico enregelado: ela nem se mexeu, mas sentiu como se suas entranhas fossem retorcidas de dentro pra fora; e tantos pensamentos díspares voaram por sua cabeça, todos ao mesmo tempo, que posteriormente ela nem se recordaria de ter pensado alguma coisa.
Quis gritar; quis chorar; quis correr. E, como em muitos outros momentos cruciais de sua vida, nada fez. Era uma espécie de complacência subconsciente, algo que ela definiria como um misto de preguiça, receio e certo pendor à submissão, que lhe mantinha inativa exatamente quando alguma ação se fazia mais necessária. Ficou parada, equilibrando-se sobre o nó frouxo que unia suas certezas mais profundas; esperava por algo, uma mensagem, um sinal qualquer que lhe garantisse a normalidade daquela situação.
E algo, de fato, aconteceu: da massa indistinta da própria escuridão, emergiu, altiva e despretensiosa, uma borboleta. De todas as coisas do universo, uma simples borboleta passou voando por aquele ponto de ônibus solitário, completamente indiferente ao olhar embasbacado que a contemplava. Dançou no ar, rodopiou, brilhou prateada ao amarelo doentio das luzes da rua; e foi pousar, sem pressa, alguns metros dali.
Dizer que o contraste brusco entre o vazio impossível daquela noite e a naturalidade de sua pequena invasora deixou a mulher perturbada seria demasiado brando: seu cérebro, em irracionais milésimos de segundo, computou aquela repentina nesga de familiaridade como a última chama de lucidez em um mundo cuja consistência lógica parecia se dissolver. Ela então sentiu que precisava da borboleta; que, se não a possuísse, não a devorasse, não a destruísse, jamais retomaria a sensação de realidade. Deu o primeiro passo, e o segundo, e já quase a sentia nas mãos... E, é evidente, o inseto alçou voo, apenas pra aterrissar um pouco mais longe.
E assim foram, noite adentro, a caçadora e sua presa; a cada vez mais rápidas, a cada vez mais imprudentes. E qual delas caçava, qual era caçada? A mulher não saberia dizer; durante a perseguição, só a perseguição importava, e só seguir em frente já era em si uma realização. Conseguira enfim não pensar, não sentir, não existir: apenas corria, e não concebia algo que não fosse correr.
Por fim, tão subitamente como começara, a busca terminou. A borboleta, talvez cansada, talvez zombeteira, decidiu pousar sobre um muro baixo e aguardar, imóvel, diretamente à frente dos olhos da mulher; esta então também parou, desconfiada. Agora lentamente ia lembrando-se de si, da vida e da noite, e de seus medos. Chegou a questionar, por um átimo, a irracionalidade de seus atos; mas a expectativa era o que mais lhe incomodava: era esse o fim? Deveria reclamar aquela criatura como sua, como um troféu às suas inseguranças, e lhe descobrir os segredos? Ou a razão de ser do maldito bicho seria meramente envolver incautos seres noturnos numa investigação infrutífera? Qual era o significado daquilo tudo?
De repente, interrompendo o caos em sua mente, a mulher testemunhou o desenrolar de um acontecimento inteiramente desconexo de suas divagações: um raio de sol perfurou o céu, fulminante, e atravessou a borboleta como uma seta. Por um momento, aquele fato pareceu ser um incidente isolado, um mistério, sem motivo ou explicação imediatos; mas logo a situação se fez evidente, tanto quanto a realidade pode evidenciar a si mesma: a noite morria, e com ela seu pequeno milagre. É claro. O amanhecer chegou como uma onda, carregando consigo todo resquício da névoa onírica que a escuridão houvesse deixado pra trás; ou então, quem sabe, como um véu, improvisadamente erguido pra esconder dos olhos mortais quaisquer migalhas que porventura tentassem se esquivar da ilusão da luz. Uma diferença sutil.
À mulher, entretanto, esses detalhes não importavam: o raiar tangível e quente do dia em seu rosto lhe recordou de que estava atrasada pra alguma coisa, e ela achou melhor não pensar. Tudo que queria agora era uma boa xícara de café.

Kōan

Em uma época de aridez criativa sem precedentes na História da humanidade, um notório falsário, agitador cultural, comediante e ex-blogueiro é contatado por uma misteriosa sociedade secreta conhecida como “Children of Set” com uma curiosa proposta: é-lhe oferecida uma considerável soma para que escreva uma obra sui generis, com a garantia de se tornará um best-seller mundial e causará uma revolução na literatura; a única exigência sobre a estrutura e os temas de tal sendo que pareçam possuir significado, sem em verdade portar algum.
Independentemente de qualquer posição em relação à hermenêutica e/ou à ética da arte que pudesse ter, é evidente que o homem aceita a tarefa.

A primeira parte da narrativa se refere aos últimos meses de vida do semi-fictício diretor de cinema nova-iorquino Vincent van der Oorgh, quando este trabalhava em seu projeto inacabado, Waterfall, or The Transmigration of Senses; certos detalhes, entretanto, parecem ter sido concebidos originalmente pelo escritor, não existindo paralelos com relatos mais “sérios” da vida do cineasta. O livro reconta a anedótica inspiração de Vincent para a criação do documentário, mediante sugestão de sua namorada e frequente colaboradora, a atriz Hannah Moor, de que tentasse “projetar” sua consciência em um objeto inanimado, no intuito de vivenciar a insólita possibilidade de lidar consigo mesmo na terceira pessoa; Hannah, praticante de zen budismo e habituée de sistemas esotéricos, imaginava que isso permitiria a experiência da chamada “morte do ego”, caracterizada pela percepção do self como ilusório, consequentemente levando à iluminação. Seguem-se então alguns capítulos dedicados às filmagens e à relação do diretor com Odadrek (a princípio o nome objeto em questão, posteriormente a forma como van der Oorgh se refere a si mesmo ou a “o que quer” que habitasse seu corpo, e finalmente o que parece ser um críptico mantra ou a representação do todo universal), explorando minuciosamente a lenta deterioração mental do primeiro e culminando com seu suicídio.
Apesar de listar alguns fatos diretamente relacionados aos iniciais (o estrondoso sucesso do documentário; a muito comentada crença de Hannah de que a alma de seu namorado havia reencarnado no corpo de um louva-a-deus, e a produção de seu próprio filme, Locusts Have No King; e a miríade de homenagens, paródias, falsificações e pastiches envolvendo o trabalho de van der Oorgh que se desenvolveu na internet, a qual acabou por render toda a obra do cineasta fundamentalmente dúbia), a seção subsequente do livro centra-se em Augustín Romero, líder comunitário entre imigrantes cubanos ilegais vivendo em Miami e dito membro da Children of Set (versão ficcionalizada da ordem que contratou o escritor). Romero, atormentado por surtos de megalomania e delírios de perseguição, convence-se de que recentes hits das mais diversas mídias e o mais díspares entre si (romances, graphic novels, vídeo games e, é claro, produções hollywoodianas; incluindo, e principalmente, Waterfall) estariam de alguma forma interligados em um plano para neutralizar a influência subversiva de seu grupo no panorama cultural global. Seus desvarios são motivo de preocupação para seu pai, Alejandro: apesar de suspeitar que a própria existência da Children of Set seja uma criação da mente de Augustín, ele teme que as ações irresponsáveis deste acabem chamando a atenção das autoridades e causando a deportação de toda a sua família. O conflito culmina com o patriarca assassinando seu próprio filho, afirmando não ter outra escolha; mas seu ato gera consequências imprevistas: os seguidores de Augustín atribuem a morte do líder a uma suposta sociedade rival (sempre referida simplesmente como “eles”) com conexões no senado americano, na CIA e em megacorporações ao redor do planeta, e uma guerra civil principia.
A terceira e última parte, então, avança duas décadas, após o confronto ter se expandido para uma escala global e destruído grande parte das bases da civilização ocidental. A internet, devido ao nível de paranoia entre as instituições sobreviventes, foi praticamente abolida, se tornando um colossal deserto etéreo; e a imensa maioria dos artistas e estudiosos passou a se dedicar à recuperação e reorganização de todo o conteúdo perdido. Nesse ínterim, um pesquisador que se debruçava sobre as origens da guerra se depara com a patética biografia de Augustín Romero, havendo adquirido, após meses de insistência e negociações duvidosas, documentos da época dos primeiros atritos envolvendo os imigrantes cubanos. Impressionado com as fantasias do estopim da ruína do mundo, e inspirado por aquilo que definiu como “essa quase divina capacidade humana de enxergar significado em tudo”, ele resolve (não totalmente desprovido de um oblíquo senso de humor) fundar, com um grupo de amigos, uma Children of Set de acordo com a visão de Romero; e, buscando dar credibilidade a seu esdrúxulo projeto, põe-se a recriar o agora clássico perdido Waterfall, or The Transmigration of Senses, mas com um enredo inteiramente diferente do original (ao ponto de a única semelhança ser mesmo o nome), apresentando-o à humanidade como se original fosse.

Mas isso não é suficiente para concretizar o complexo plano. Nessa época de aridez criativa sem precedentes na História da humanidade, o pesquisador contata um notório falsário, agitador cultural, comediante e ex-blogueiro com uma curiosa proposta: oferece-lhe uma considerável soma para que escreva uma obra sui generis, com a garantia de se tornará um best-seller mundial e causará uma revolução na literatura; a única exigência que impõe sobre a estrutura e os temas de tal é a de que pareçam possuir significado, sem em verdade portar algum.
O escritor conclui que a melhor forma de fazê-lo é mediante a concepção meticulosa de um paradoxo lógico, inserindo subplots infestados de detalhes desnecessários e salpicando obscuras e incoerentes referências culturais.

A Persistência da Memória

Uma antiquíssima lenda persa, reciclada nos repertórios árabe e hebraico, fala de um poderoso rei do passado (as versões judaicas geralmente o identificam como Salomão) que, por motivos que só a ele coube saber, exigiu de sábios seus súditos que criassem um artefato capaz de a uma vez trazer alegria aos infelizes e tristeza aos contentes; o resultado cumpria o ordenado com uma trivialidade que era tanto ridícula como genial: tratava-se de um simples anel, de metal vulgar, portando em seu entorno, contudo, a inscrição “isto também passará”. A expressão se provou mais duradoura do que outros detalhes do conto, e se mantém razoavelmente popular nos enredos entrecruzados da cultura ocidental como um lembrete da fugacidade da aventura humana.
Mas é fácil (e desagradavelmente comum, por consequência) conceber o rei da lenda como um robô, cujas emoções, absolutas em si e diametralmente opostas, se alternem com a facilidade do apertar de um botão. Mais interessante é imaginar os dois estados como essencialmente vagos, praticamente indistintos, e apenas a experiência subjetiva podendo diferenciá-los; no momento em que o portador do anel passa a se entender feliz, a própria existência da infelicidade se torna dúbia, apenas a impalpável recordação de um sentimento.
E assim todas as coisas do mundo, todos os eventos que podem ser assimilados como individuais, apenas são identificados quando sua essência se encontra já no passado; meras memórias, portanto. Isso ocorre de forma contínua com o fluxo da percepção. O instante em que a valiosa taça de cristal cai de sobre a mesa, por exemplo, passa sem ser notado; ela é encontrada já em cacos, no chão; e sua quebra como entidade própria, como objeto linguístico, não passa da reconstrução feita a partir de uma suposição metafísica.
Isso talvez explique a obsessão histórica do ser humano com a eternidade; ou, mais especificamente, a eterna conservação, a imutabilidade: o desejo de congelar cada momento, cada conceito, cada sensação em uma “coisa” atemporal; um sonho análogo a passar pela vida fotografando incessantemente tudo que se vê (o que tempos atrás pareceria uma metáfora estúpida, mas hoje já é quase literal). E daí milênios de arte, das pinturas nas cavernas aos poemas pós-modernos, dedicados a “oficializar” esses eventos do manancial promíscuo da memória coletiva para a regularidade matemática da realidade consensual.
Este texto mesmo não está imune a isso. Ele se fundamenta na ilusão de representar o desenvolvimento de uma ideia, única e simplesmente; mas, conforme vai sendo lido, tal ideia vai assumindo tons distintos na mente do leitor, em um ritmo indecifrável. E, depois do fim, quando a última gota de informação for enfim absorvida, a conclusão final vai ser inevitavelmente baseada em um fantasma.

Dragões Quânticos

De todos os infindáveis caminhos que uma obra pode tomar, um dos que mais me impressiona é a capacidade de levar um leitor (ou espectador; mas acredito que esse seja um fenômeno mais particular da literatura) a aceitar simultaneamente duas proposições inteiramente incompatíveis: um personagem pensa uma coisa, outro afirma outra exatamente oposta, e quem lê não tem como decidir entre os dois. Infelizmente, esse parece ser um efeito temporário: ao se chegar ao fim do texto, a palavra final é dada, e a “verdadeira verdade” é estabelecida. Mesmo quando o escritor tenta manter a ambiguidade, escreve de forma não linear, dá todo o espaço necessário pra que cada um desvende a narrativa conforme seu próprio entendimento, ainda assim as diferentes possibilidades não são consideradas de forma paralela: são sempre “ramificações”; é se tal coisa, se tal outra coisa.
Isso me parece um desperdício de imaginação, uma forma de censura indireta à liberdade de pensamento. Só porque algo é completamente ilógico, não significa que não possa ser imaginado; e que melhor campo pra esse exercício do que a literatura?
Vamos fazer um experimento. Digamos que nós estejamos escrevendo um livro, e a nossa personagem principal, uma garotinha de dez anos, tenha um dragão; o que nem é tão improvável, existem milhões de romances de fantasia por aí que mantêm a existência de dragões como coisa cotidiana e inequívoca. O que eu quero dizer é: graças a toda essa carga cultural, um mix de lendas vagamente similares de todos os continentes e a “magia” hollywoodiana, hoje a imagem da criatura já está inserida no nosso inconsciente coletivo, mesmo que nenhum de nós tenha jamais visto um na vida; e, em favor de alguns momentos de entretenimento inócuo, certamente que todo leitor vai se permitir crer que o amiguinho da menina é real.
Agora, o irmão mais velho da nossa protagonista, um sujeito bastante racional, sabe que isso é impossível; porque dragões, é claro, só existem em lendas e romances de fantasia. Ele vai sempre insistir que o monstro existe apenas na cabeça da criança, e que todas as situações em que parece ter havido interação entre os dois possuem explicações lógicas e mundanas. O leitor se vê obrigado a concordar com ele; é a chamada “navalha de Occam”: a hipótese mais simples é frequentemente a correta.
Neste ponto, ambas as proposições são igualmente válidas: que o dragão exista, de fato, no contexto do livro, ou que seja simplesmente uma invenção da mente criativa da personagem. O desafio está em manter esse estado de dúvida, ou de aceitação simultânea, até o fim da leitura, e além. Isso não se resume a escrever, no último parágrafo, que o dragão “existia e não existia”, porque esse tipo de colocação meramente evoca uma questão filosófica que se resolve num detalhe semântico: o “existir”, pra menina, opera num grau subjetivo, de forma que, se ela enxerga o dragão, não interessa que os outros não o vejam, ele existe; enquanto que, pro rapaz, empirista inveterado, o dragão não existe exatamente porque não é detectável por seus sentidos. A ideia aqui é o narrador, em terceira pessoa, consiga declarar que a criatura ao mesmo tempo existe e não existe, no mesmo grau ontológico, da forma mais objetiva e clara possível.
É preciso que lancemos mão de um recurso linguístico, portanto; uma construção cujo uso, evidentemente, se limite à arte e (quem sabe) à filosofia. A princípio, a solução parece fácil: inventamos um meio-termo entre a afirmação e a negação, digamos, um “nim” (fusão dos advérbios “sim” e “não”, caso isso já não seja óbvio o suficiente); e nos convencionamos a entender que, pondo-o antes de cada verbo, a ação por este definida passe a ser concomitantemente afirmada e negada. Então o dragão nim existe.
Já é um começo. Mas não seria bastante dizer que ele nim fez tal ação, pois, dependendo do contexto, surgiria uma conotação indesejada: que ele não a tenha feito por um motivo outro que sua não existência, possibilitando a interpretação de que ele simplesmente exista. Por isso, acredito ser imperativa a criação de um modo verbal original, como que uma síntese do indicativo com o subjuntivo: algo que defina uma ação realizada por um sujeito existente, mas que talvez o fosse caso tal sujeito existisse. Um modo prático de fazer isso seria utilizar a conjugação do subjetivo, mantendo o fraseado e o tempo correspondente, no indicativo: “a menina se aproximou devagar, e a fera a abraçasse com ternura”...
... Entretanto, ela não o abraçasse de volta: isso indicaria que é a menina que nim existe; precisamos desenvolver opções diferentes pra nos referir ao dragão quando este for o objeto da frase. O emprego do condicional (futuro do pretérito) nessas situações parece ideal, mas seria necessário transformar seu sufixo característico “-ia” de acordo com cada tempo, pessoa e número individualmente. Poderíamos optar por alternativas aglutinantes (“abraçouia”, “abraçaía”, “abraçaraía”) ou fusionais (“abraçoía”, “abracia” e o típico “abraçaria”).
Enfim, muitas mais adaptações seriam ainda necessárias (em especial, o caso do pretérito-mais-que-perfeito, que teria sempre que ser expresso por meio de locução verbal); o certo é que, de forma geral, esses recursos nim parecem servir bem ao nosso propósito inicial, e nim podem ser facilmente apreendidos. Um sopro renovador na literatura, que trouxer uma gama de possibilidades inéditas ao pensamento humano, esteja em nossas mãos; só precisíamos compreendê-lo.
Nim é?

A Lead Role in a Cage

Mexia a espuma do café ludicamente, como uma criança. Sabia, ou pensava saber, que o outro logo o inquiriria sobre seus planos; a insegurança de seus seguidores sempre o impressionava. Não estragaria, entretanto, a surpresa; não após tantas semanas de cuidadosa deliberação (consigo mesmo, é evidente; jamais permitiria que alguém conhecesse suas dúvidas), não após acostumar-se com o destino que ele me mesmo se havia imposto, agora percebia, tantos anos antes. Continuou a brincar com o café, fingindo nem notar a expressão tensa de seu tenente a apenas alguns passos de si.
- O café está a seu gosto, senhor Brezhnev? - finalmente perguntou o outro, tentando imprimir àquela conversa desconfortável algo de sutileza.
- Sim. - limitou-se a responder, sem erguer a cabeça; teve de se esforçar para não rir da pergunta, e a pronúncia americana de seu sobrenome, que costumeiramente o irritava, agora soava quase honrosa.
Novamente o silêncio se espalhou pelo humilde escritório; ouvia-se apenas o ruído do metal da colher contra a porcelana da xícara, em golpes monotonamente ritmados.
- Nós vamos mesmo fazer aquilo amanhã, senhor? - a pergunta invadiu o ar como um relâmpago, quando enfim os pensamentos conflitantes do pobre rapaz se uniram em um só, de improviso; havia em sua voz medo e reverência, e não realmente uma questão prática.
Brezhnev então sorriu pela primeira vez em toda aquela noite.
- Senhor Smith - fitou profundamente os olhos do outro, quase como se não os estivesse olhando; quase como se não estivesse ali. -, eu alguma vez já o desapontei?
A réplica indireta, revelando um conhecimento de suas incertezas, pegou o rapaz de surpresa; e lhe sobreveio, quase que imediatamente, aquela sensação quente e revigorante, a mesma que procurara naquela sociedade tantos anos antes, a mesma que procurara por sua vida toda: uma confiança tão intensa, tão palpável, que fazia com que a dedicação cega e irrestrita fosse de fato gratificante.
- Não, meu profeta. - respondeu, ajoelhando-se e tomando a mão do outro em suas.

Pavel Semyonovich Brezhnev fora para os Estados Unidos quase duas décadas antes, sem pretensões ou objetivos claros, com apenas alguns dólares no bolso. Foi ao passar muitos anos lutando pela vida pelas ruas de Seattle, juntando retalhos de jornais velhos e quaisquer livros que se lhe caíssem nas mãos, que o imigrante russo forjou sua visão de mundo. Apesar de mal dominar o idioma local, seus demorados discursos atraíam dezenas de jovens desiludidos às praças da cidade, intrigados por suas exóticas teorias. Logo um pequeno culto estava formado, um dos muitos a surgir próximo à virada do milênio; e, com a ajuda de seus seguidores, Brezhnev comprou um pequeno rancho no interior do Oregon, que se tornaria a sede de sua “igreja”.
Suas ideias não ortodoxas centravam-se, desde cedo, no poder da imaginação, e nas ferramentas políticas e culturais que se dedicavam a censurá-la. Segundo ele, o objetivo final da vida dos grandes revolucionários do mundo sempre fora (ainda que inadvertidamente) despertar na humanidade a capacidade de questionar e de criar conceitos e conexões de pensamento completamente novos; mas suas palavras sempre viriam a ser adulteradas por guardiões do status quo, temerosos de que a liberdade mental  do povo pudesse atrapalhar seus planos de dominação mundial. Deus, ou aquilo que mais se aproxima da obsoleta noção de divindade mantida pelas religiões tradicionais (ainda de acordo com as pregações de Brezhnev), não seria uma entidade única, independente e ciente da própria existência, mas sim um emaranhado amorfo e mutante de pensamentos conflitantes, ao mesmo tempo a expressão máxima da criatividade humana e um farol eternamente distante para tudo o que é inédito, estimulando e inspirando a mente humana ad infinitum. Por isso que, ao dirigir a palavra a seus “fiéis”, o líder sempre mantivera o cuidado de assumir a modesta alcunha de profeta; e, por mais que tenha conseguido construir e administrar um culto em torno de sua personalidade, ele jamais reclamara (publicamente) para si algo de divino ou venerável.
Nos últimos tempos, entretanto, seus sermões (elaborados, publicados e distribuídos aos seguidores por ele próprio, em sua revista Dreamland) foram tomando um rumo que alguns ex-membros de sua seita chegaram a chamar de “caótico”. Durante anos crendo no efeito da imaginação sobre a vida das pessoas, Brezhnev ainda procurava uma definição compreensível do fenômeno. Sentia-se pressionado (mais por si mesmo do que pelos outros) a descobrir exatamente como o pensamento poderia afetar a realidade prática; mas todas as conclusões possíveis feriam sua doutrina. Isso até que, no início de 2012, uma matéria especial da Dreamland intitulada The Great War revelou ao mundo a resposta: nela, o líder descreveu uma raça de criaturas sobrenaturais e etéreas que ele batizou minikyns; esses seres nefastos seriam dotados de poderes telepáticos, e seu único objetivo seria sondar os pensamentos humanos para então pensar precisamente o oposto, assim anulando todo o nosso poder mental. Se não fosse por eles, escreveu, seríamos capazes, dentre outros feitos incríveis, de criar matéria a partir do nada, simplesmente imaginando-a. Com muita força de vontade, todavia, poderíamos temporariamente superar tal influência, fazendo emanar de nossas mentes sutis “ondas criativas” que poderiam afetar outras mentes ao redor.
Quase desnecessário dizer, as declarações paranormais espantaram uma boa parte de seus seguidores; os que sobraram, contudo, pareceram ter sua crença ainda reforçada. Dali em diante, as ideias do russo foram se focando cada vez mais no que ele chamou de “Grande Guerra”: o inevitável confronto entre humanos e minikyns, que ele previra (ou imaginara, em suas próprias palavras) para o final de 2012. Elaborou em detalhes as características da maligna raça, seus costumes, seu hábitat, todas as suas peculiaridades (embora nunca tenha mencionado seus motivos); quanto mais escrevia, maior era a demanda dos leitores, e já uma nova geração de seguidores chegava atraída unicamente pelo fascínio pelo oculto.
Nos meses que se seguiram, Brezhnev quase não era visto pelos fiéis, preferindo transmitir seus ensinamentos mediante seu braço direito, o jovem Jacob Smith. Era mais pressionado agora do que jamais fora: todos imploravam por migalhas de seu conhecimento, de seus planos, dos caminhos que o grupo deveria tomar. Nunca admitiu a ninguém, mas sentiu medo: medo de que a obra de toda uma vida despencasse se as expectativas de seus fãs não fossem atendidas. Nesse período, fenômenos estranhos começaram a ocorrer pelo rancho: pessoas sumiam durante a noite, e reapareciam dias depois, mortos; o líder atribuía a culpa de tais acontecimentos sempre aos minikyns e seus aliados no governo e na mídia, e condenava a “inércia mental” dos membros. Antecipadamente, já vinha anunciando que toda a seita passaria por um grande “teste de fé”, e apenas aqueles de imaginação particularmente poderosa o superariam; e, fechado em seus aposentos por dias a fio, o líder teve de usar toda a sua imaginação para decidir o que fazer.

E agora, sentado à mesa de seu escritório, ludicamente mexendo a espuma de seu café, ele sabia exatamente o que fazer.
- O ritual deve ser feito com o máximo de cuidado, Jacob. - dissera, na semana anterior, quando o grupo todo se preparava para a Grande Guerra. - Você sabe o que fazer, não sabe?
- Sim.
- Leve apenas os mais fortes. Não esqueça as armas; ataque quando eles se materializarem. Morto o líder, nós ganhamos. Vou estar aqui mentalizando uma barreira de proteção pra vocês.
- Sim, profeta. - e Smith não duvidou de uma palavra do que ouvira.
O local fora escolhido com muita precisão por Brezhnev: uma clareira no bosque da propriedade, não muito distante das habitações; por precaução, contudo, todos os membros que não fossem participar do evento deveriam ficar o mais longe possível da zona onde a ação ocorreria.
Jacob Smith guiou o pequeno destacamento por entre as árvores, quando a meia-noite se aproximava, tendo um único lampião para lhe descobrir o caminho; muita luz pode atraí-los, avisara o líder. Durante o trajeto, conversaram sobre os mais variados assuntos, no intuito de manter os pensamentos afastados de sua verdadeira missão até o momento crucial.
O ritual foi realizado de forma simples e sem quaisquer percalços: precisamente à meia-noite, no ponto combinado, o grupo se organizou em um círculo, ajoelharam-se e se puseram a imaginar, todos juntos, a presença do líder dos minikyns; esperavam que dessa forma conseguissem forçá-lo a tomar uma forma física, e assim poder exterminá-lo por meios mortais.
Passava-se já perto de uma hora de profunda concentração quando Smith pensou ter ouvido um ruído no chão de folhas, e se apressou em alertar seus companheiros e tomar seu revólver nas mãos; mas foi muito lento: antes que pudesse tomar qualquer atitude ofensiva, viu, à luz fraca do lampião, a cabeça de Jane Mueller cair de cima de seus ombros. Durante a confusão subsequente, na ânsia de destruir o que quer que fosse aquela coisa maligna, os membros do grupo acabaram trocando tiros entre si, e mais fatalidades sobrevieram; apenas o jovem e fiel Jacob Smith se mantinha firme em seu objetivo, friamente procurando no escuro aquela forma que se movia tão sorrateiramente. Por fim, um disparo certeiro desencadeou uma reação que congelou aquele instante de caos em um quadro de dúvida e hesitação: um grito, por demais humano, por demais familiar para ser ignorado.
- ... Senhor Brezhnev? - perguntou Smith, quando conseguiu juntar coragem suficiente para evocar tal ideia.
Então a figura, agora lenta e acuada, aproximou-se, mancando; e, ao atingir a área iluminada, seu rosto, já sem a máscara preta que usara, revelou-se como, de fato, o do profeta. O homem, apesar do grave ferimento em sua perna e da situação incômoda em que se encontrava, portava uma expressão vazia. Jacob lembrou-se do olhar que ele lhe lançara mais cedo, em seu escritório: um olhar distante e, ao mesmo tempo, assustadoramente presente; agora, entretanto, já não inspiravam nenhuma confiança.
- Por quê? - foi a única coisa que Smith conseguiu perguntar, depois de muito pensar, muito gaguejar, buscando em sua mente uma explicação, ou uma possibilidade de obter uma explicação, para aquele momento patético.
- Eu cumpri minha missão. - declarou o russo, irredutível. - Dei a vocês algo em que acreditar.
- O senhor matou essas pessoas. O senhor... - ele hesitou. - O senhor é um assassino...
- De acordo com quem? Você sabe que todos acreditam em mim. É isso que vocês fazem; vocês acreditam. Você não entende o poder que existe nisso? - a entonação que Brezhnev dava a suas palavras fazia com que não poucos entre os ali presentes (os que haviam sobrevivido ao tiroteio) quisessem ardentemente manter a fé no homem que pouco antes havia tentado matá-los; e ele caminhava entre eles, confiantemente. - Você não pode desistir agora, senhor Smith... Você seria meu herdeiro... - e levou a mão ao ombro de seu interlocutor.
Aquele pensamento deixou Jacob tão repugnado que um sentimento de raiva começou a crescer dentro dele; deu um passo atrás e voltou a apontar a arma para o peito do homem à sua frente.
- Valeu a pena, Pavel? Valeu a pena matar seus seguidores, e... - enquanto falava, as peças começavam a se encaixar em sua cabeça, vencendo as barreiras de sua já moribunda crença. - Todos aqueles que sumiam, e depois apareciam... Esquartejados... Você fez tudo isso só pra que as pessoas engolissem essas... Essas historinhas ridículas...
- E deu muito certo, não deu? E esse é o ponto! Não importa no que eles acreditam, o que importa é acreditar. Imaginar. Quem é que acharia possível que a imaginação de um pequeno grupo de pessoas pudesse mudar a realidade? Mas pode! Você não vê?
- Você é louco.
- Louco? - então ele soltou uma gargalhada que ecoou noite afora; seus seguidores nunca o haviam visto nem mesmo rindo. - Rapaz, eu sou a pessoa mais lúcida deste mundo! Eu sou o renovador, o inspirador. É pra mim que todos olham quando querem pensar; eu sou o limite, os portões do infinito! Eu sou o farol! Eu sou D... - mas não conseguiu terminar sua frase: Jacob disparou seu revólver instintivamente, precisamente, num jato de ódio fresco e insuportável; e então caiu de joelhos no chão de folhas, em absoluto desespero.

O decorrer daquela madrugada demandou um esforço gigantesco por parte dos membros do grupo; de fato, foram suas últimas ações como um grupo. A notícia dos acontecimentos no bosque foi como o desplugar de um fio da tomada: de repente, nenhum habitante do rancho sabia o que fazer ou para onde ir. Voltar à clareira para buscar os corpos e lhes dar um enterro apropriado levou horas; muitas pessoas já haviam ido embora, muitas já haviam se suicidado. Por fim, a propriedade foi abandonada, e a “igreja” de Pavel Semyonovich Brezhnev foi definitivamente desmantelada.
Agora, é verdade que alguns ex-membros se ativeram à filosofia do russo, e organizaram suas próprias pequenas seitas para propagá-la. Uma delas, talvez a mais expressiva atualmente, é a dos “Fiéis Imaginativos”, que, conforme expresso em seu website, procura resgatar os ensinamentos do profeta da forma mais literal possível; seu principal objetivo é (segundo sua crença) vingar o assassinato de Brezhnev eliminando o líder dos minikyns, o maligno Jacob Smith.