Se Ipsum Alit


Por muitos anos, desde pequeno, o homem ouvira as histórias contadas ao redor da fogueira sobre o Dragabul. Ninguém na tribo ousaria duvidar delas, não quando a anciã líder se pronunciava. Suas palavras eram claras como o próprio fogo; e as crianças, ao mesmo tempo exaltadas e assustadas, por vezes quase se queimavam no hálito do monstro conforme ela narrava seus feitos terríveis: sangue sobre gelo, fogo sobre pedra, e almas arrancadas de homens como o couro era arrancado das focas; tudo por entre nesgas de fumaça, a fragrância doce da madeira em brasa, evocando um mundo desconhecido além do monótono branco. Aquele que nascera humano lentamente era levado, distorcido, decomposto; até que, brusca e dolorosamente, era já o que era: uma criatura de horror, um monstro obrigado a se alimentar apenas de vida recém-tirada, o Dragabul das montanhas. E ela sempre terminava as histórias com a frase mais abismal de todas, para assombro dos pequenos: o Dragabul nunca morre.
Certo dia, então, um dia entre todos os dias brancos que nasciam sobre a tribo, o homem resolveu que não tinha medo das histórias contadas ao fogo. Fosse o que fosse a criatura, houvesse o que houvesse de verdade nas palavras da anciã, ele iria descobrir por si próprio; e, se existisse realmente um Dragabul nas montanhas distantes, ele iria matá-lo, queimar apropriadamente seu corpo e livrar aquela pobre alma da maldição ancestral. Ao saber disso, naturalmente, a velha líder da tribo tentou de todas as formas evitar a inglória expedição; além de alertar o aventureiro dos perigos que ele encontraria, ela recitou, com a mesma precisão hipnótica, o absurdo de seu objetivo final: o Dragabul nunca morre. O homem, entretanto, não se deixou convencer por aqueles velhos argumentos; estava já pronto para partir, e nada o impediria até que ele chegasse ao fundo daquele abismo.
Por muitos dias, portanto, ele andou pela terra plana, abrindo caminho por grossas camadas de neve, guiado apenas por seu espírito impetuoso e uma sombra remota no horizonte que ele interpretava como um sinal das montanhas. Exausto, lutando contra o frio insone, seguiu se arrastando por entre árvores secas e traiçoeiras planícies de gelo fino. Caçou para sobreviver, e logo a fome o levou a ignorar os costumes em relação ao tratamento da comida; como o Dragabul que perseguia, ele acabou por precisar se esconder e atacar como um animal acossado e faminto. Nessas horas, quando o que havia ainda de humanidade em sua alma o aconselhava a desistir e voltar, retornava, como um trovão ecoando entre as luzes boreais, a voz da anciã, seu ensinamento mais primitivo e terrível: o Dragabul nunca morre; e o desafio o impelia à frente. Muitos haviam tentado tal feito ao longo dos séculos, e ele pretendia ser o primeiro a voltar para contar de sua vitória.
Quando por fim chegou ao pé das montanhas, já quase cego e sem forças, não precisou ir longe para encontrar seu alvo: o Dragabul sentira seu cheiro à distância e fora a seu encontro; raramente comia carne humana, e não perderia essa chance. De frente para o monstro que caçou por tanto tempo, o homem, mesmo com a mente entorpecida pelo cansaço, se impressionou com a familiaridade daquela figura: ainda que nu, sujo e ferido, o Dragabul não parecia diferente dos homens da tribo; não fisicamente, ao menos. Mas isso já não importava; assim que o medo e a hesitação iniciais foram superados, os dois se engajaram em uma batalha irracional, uma disputa bruta pela própria sobrevivência. O homem conquistaria, finalmente, sua vitória; mas o que lhe foi tomado acabou sendo muito mais do que ele poderia imaginar: privado, logo cedo, de sua faca e suas roupas, coberto de cicatrizes e cheio de raiva, em poucos instantes ele já não era em nada distinto de seu adversário. Arremeteu-se contra o outro com nada além de unhas e dentes, e o superou meramente por seu estado físico ligeiramente mais preservado; e, morta a criatura, faminto e esgotado como ele estava, devorou sua carcaça sem pudores e sem cuidados, bebendo de seu sangue como se bebesse de um riacho. Sabia, sentia em seus ossos e nos pelos de seu corpo, que jamais voltaria a sua antiga vida na tribo; se agora já mal conseguia se lembrar dela, o tempo se encarregaria de levar seus últimos vestígios embora.
E quando o tempo por fim vencesse a esperança de seus familiares e companheiros, as mulheres chorariam, os homens o homenageariam, as crianças seriam ensinadas a não pronunciar mais seu nome; mas a líder anciã, segura e amarga em sua sabedoria, repetiria, com pesar e reverência, o que o peso dos anos lhe havia ensinado de mais profundo e verdadeiro: o Dragabul nunca morre.

Crônicas do Fim do Mundo VI - O Macaco Digitador


Uma coisa tão simples, e ainda assim tão complexa. Acho que nunca pensamos que o medo, logo o medo, pudesse ter alguma influência em nosso trabalho. Eu, pelo menos, nunca teria imaginado; e, se o medo que tive foi pelos outros e não por mim, isso agora não faz mais a mínima diferença.
Alguns homens, sejam os acomodados e obesos executivos de grandes multinacionais ou os pobres coitados que não têm nem o que comer, tendem a se preocupar apenas com aquilo que podem ver e tocar; outros, como eu e minha equipe, preferem se dedicar ao infinito, ao infinitamente distante, aquilo que, com a mais absoluta certeza, não poderemos nunca ver ou tocar. Esse é um assunto que sempre me fascinou; quando criança, eu costumava imaginar um livro tão longo, mas tão longo, que seria impossível lê-lo durante uma vida inteira... Acho que minha pequena mente não conseguia imaginar, na época, a angústia que resultaria dessa situação. Algo grande demais para qualquer um de nós, mesmo o mais brilhante, assimilar; derrotados por uma questão matemática básica: lendo-se no máximo tantas páginas por dia, vivendo-se no máximo outros tantos anos, ninguém, ninguém nunca conseguiria entender o livro em sua totalidade. Uma coisa tão simples.
Enfim, de qualquer forma, acredito que foi esse meu ímpeto infantil que me levou à ciência da computação, por acreditar que a capacidade de processamento de um computador eventualmente ultrapassaria a de um ser humano; que os cérebros eletrônicos nos trariam possibilidades ainda impensáveis, simplesmente porque nossos cérebros de carne não as conseguem imaginar. E o meu primeiro projeto nesse sentido foi justamente o Macaco.
O Macaco era um computador que nós desenvolvemos pra um único fim: escrever. Sim, outros desse tipo já existiram e talvez ainda existam; o próprio apelido que demos a ele advém de uma ideia antiquíssima, que alguém algum dia comentou: o fato de que um macaco sentado à frente de uma máquina de escrever, aleatoriamente batendo nas teclas, iria eventualmente, com tempo suficiente, escrever toda a obra de Shakespeare. Isso sem ter ou adquirir qualquer conhecimento relativo às questões existenciais de Hamlet ou ao amor impossível de Romeu e Julieta. Como um copista medieval cuja fonte é o infinito, o computador-macaco simplesmente escreveria sem parar até que, entre blocos e blocos de texto ininteligível, algo surgiria.
O que nós fizemos de diferente pro nosso Macaco foi utilizar um recurso que ainda é consideravelmente amplo nestes dias: a internet. Ele foi programado pra confrontar automaticamente os seus próprios textos com aqueles que encontrasse pela web, e assim, na base da comparação estatística pura e simples, refinar os algoritmos e reduzir drasticamente a quantidade de nonsense.
Por algum tempo, ficamos completamente estupefatos com o quão bem nosso projeto funcionava. A cada dia, seus escritos ficavam mais concisos, mais interessantes. E menos de um mês, ele já produzia textos longos e perfeitamente compreensíveis; muitos deles, e isso já era previsto, eram cópias de obras de autores famosos ou de bloggers anônimos, e toda vez que isso acontecia ele nos “comunicava” o ocorrido com um e-mail. Tudo ia impecavelmente bem; até que, um dia, algo absurdamente óbvio (e ainda assim inesperado) aconteceu.
Havíamos recebido, como muitas outras vezes nos últimos meses, um e-mail do Macaco nos avisando que ele havia encontrado um texto online que batia com exatidão com algo que ele escrevera: uma coisa banal, algo sobre criar galinhas ou coisa assim. Tudo normal, a mesma singela comemoração de sempre (já nos estávamos acostumando ao fato), quando um de nós percebeu um detalhe: a postagem fora feita cinco dias depois de o Macaco tê-la, por conta própria, escrito. E aí que revelação súbita nos ocorreu: dentre tudo que o Macaco escreveria, aleatoriamente agrupando palavras com um senso básico de gramática, estariam, sem dúvida, textos ainda não escritos.
Ainda que alguns entre nós tenham, naquele momento, demonstrado uma reação inicial de euforia, o sentimento geral naquela sala era de apreensão, senão de desespero. O que mais aquela máquina cega poderia descobrir? Um futuro best-seller, antes que o seu autor sequer nascesse? Notícias de todo o mundo, eleições, revoluções, guerras, anos antes dos próprios fatos acontecerem? Ou, quem sabe, as certidões de óbito de cada um de nós que trabalhamos pra criá-la, com nossos nomes, datas de nascimento, tudo numa perfeição robótica? Tudo isso era possível, posso dizer até que provável; e o pior é que nunca saberíamos com certeza o que seria real e o que seria simplesmente uma ficção incrivelmente precisa. E se um marido desconfiado lesse sobre a traição da esposa? E se um suicida visse sua própria carta de despedida? Hesitaríamos? Duvidaríamos? Juro que, do alto de todo o meu ceticismo, eu quase imaginei um macaco supremo, batendo infinitamente na máquina do destino, rindo histericamente de nossa ignorância.
Mas ficou claro pra nós, depois de um instante de reflexão, que estávamos diante de uma bifurcação importantíssima no curso de nossas carreiras e nossas vidas; uma ocasião quase religiosa. Ali, à nossa frente, manifestava-se em forma física o maior (e talvez único) mistério do universo, de onde muitos fizeram deuses e forças cósmicas: a aleatoriedade em si. O total das possibilidades deste mundo e de todos os outros. Algo profundo demais, perigoso demais, grande demais pra que nós ousássemos manusear. Por fim, nenhum de nós vacilou em considerar que o projeto deveria ser cancelado.
Forço-me, entretanto, a comentar um pormenor que é do conhecimento de poucos: os frutos desse trabalho, a grande obra do Macaco, não foram eliminados, pois isso iria contra nossos princípios e a política de nossos patrocinadores. As milhares (talvez milhões) de páginas estão todas arquivadas, em algum lugar, esperando pra serem lidas. Talvez enquanto durar o universo nenhuma delas tenha alguma utilidade; talvez só sirvam pra que um dia, quando o que restou de nosso mundo seja finalmente reduzido a cinzas, algum cientista ensandecido (e quem dirá que não serei eu mesmo?) sair gritando pelas ruas “eu sabia!”, “eu já sabia!”.
Uma coisa tão simples...