Outro bom exemplo do caráter maravilhosamente complexo desta obra: a frase "イッヒュ が イーガルっぽい アニマル を アスペクシー." (ihhyu ga iigaruppoi animaru o asupekushii), inclusa no "monólogo" do Sonho nº15, carrega tantas conotações sobrepostas que talvez tenha representado, sozinha, nosso maior desafio em toda a adaptação. Aqui (como no restante do capítulo) a sintaxe é puramente japonesa, se bem que "ocidentalizada": percebe-se um esforço consciente por parte da autora em evitar construções, por assim dizer, "exóticas" a ouvidos indo-europeus; e a estrutura das frases, todas iniciadas por "eus" de diversos idiomas e completas com verbos em latim, sugere uma reprodução ou paródia do estilo bíblico, particularmente do Apocalipse de São João. O tom grandiloquente e profético, repleto de simbolismos, concilia-se perfeitamente com os temas de morte e renascimento que permeiam estas páginas.
O detalhe essencial, contudo, é a palavra "イーガルっぽい" (iigaruppoi), mencionado apenas essa única vez em todo o livro (constituindo, portanto, um hápax legómenon): o sufixo nativo "-っぽい", escrito em hiragana, corresponde inegavelmente ao "-like" inglês nesse contexto; "イーガル", por outro lado, é bem mais difícil de se compreender. A maior parte das traduções internacionais o lê "eagle" (seguindo o exemplo da primeira edição americana, onde se encontra "I have beheld an eagle-like animal"), rendendo sempre algo semelhante a "Eu vi um animal como a águia"; diversas versões alemãs, todavia, preferem adaptar o trecho como "Ich habe ein igelartiges Tier angeschaut", ou seja, "Eu vi um animal como o ouriço". Algumas destas últimas o fazem de forma irrefletida; outras reconhecem a ambiguidade do termo, e tentam, em apêndices como este, oferecer alguma justificativa (como, por exemplo, o fato de a frase começar com "ich") para sua escolha.
Agora, é claro que, para esta nossa tradução do Columbarium, tal minúcia não deveria ser relevante em absoluto; "Igel" e "eagle" são leituras igualmente válidas de "イーガル", e a passagem em questão é por demais obscura e surreal para elucidar o problema. Feita uma leitura superficial da obra, e consideradas as tentativas prévias de tradução, estaríamos em nosso pleno direito caso resolvêssemos relegar a decisão entre as duas possibilidades (ou quaisquer outras que por acaso existam) aos dados do destino.
E é claro também que, como é de praxe em nossa profissão, a solução não é assim tão fácil.
Ocorre que os seguidores da senhorita Tomokawa já vêm desenvolvendo, há muito tempo (conforme pudemos verificar, desde antes de a autora atingir notoriedade internacional), suas próprias ideias sobre a identidade do iigaruppoi animaru. Certa teoria, bastante difundida, especula que haja ligação entre este e o ハリネズミ (Harinezumi, máquina de guerra descrita como um tanque recoberto de espigões) mencionado no Sonho nº5. O fato de existir aí um elemento designado abertamente pelo termo japonês para "ouriço" talvez implicasse que "イーガル" devesse denotar outra criatura; entretanto, a teoria afirma exatamente o oposto: que o "animal como o ouriço" é o Harinezumi (o emprego do alemão naquele caso não carregando em si qualquer significado especial), e que o cenário apocalíptico pintado pelo monólogo do Sonho nº15 se refere a um Apocalipse literal, um conflito armado de proporções aterradoras que subjazeria ao enredo de ambos os capítulos.
Ramificações dessa hipótese, é bom adicionar, envolvem o livro inteiro em uma narrativa única, tão ampla quanto tácita; algumas chegam mesmo a atribuir qualidades sobrenaturais aos relatos oníricos, tratando-os por verdadeiras profecias.
Parte do nosso trabalho aqui, portanto, é tentar adivinhar o que a autora poderia ter querido dizer com o que de fato disse; embrenhar-se no sentido fundamental da obra, ainda que a contragosto. Por um lado, talvez acabe por afetar a suspensão de descrença dos fãs que uma obra apresentada como simples compilação de sonhos possua, afinal, uma trama tão concreta e abrangente; por outro, quem há de dizer que não era essa mesmo a proposta? Não precisará o leitor desta labiríntica pérola que lhe sejam expostos, a esta altura, os muitos e extraordinários caminhos que a ficção pode tomar.
São situações como esta, enfim, que revelam a delícia e o tormento de nosso ofício: quando não se tem opção além de interferir ativamente naquilo que, por definição, deveríamos meramente transportar de um idioma a outro. Nestes casos, só nos resta torcer para que, mais do que estar "certos", estejamos suficientemente inspirados para a tarefa.