Notas da Tradução do "Columbarium" de Olivia Tomokawa

#22 - concernente à etimologia de "イーガルっぽい" (iigaruppoi)

Outro bom exemplo do caráter maravilhosamente complexo desta obra: a frase "イッヒュ が イーガルっぽい アニマル を アスペクシー." (ihhyu ga iigaruppoi animaru o asupekushii), inclusa no "monólogo" do Sonho nº15, carrega tantas conotações sobrepostas que talvez tenha representado, sozinha, nosso maior desafio em toda a adaptação. Aqui (como no restante do capítulo) a sintaxe é puramente japonesa, se bem que "ocidentalizada": percebe-se um esforço consciente por parte da autora em evitar construções, por assim dizer, "exóticas" a ouvidos indo-europeus; e a estrutura das frases, todas iniciadas por "eus" de diversos idiomas e completas com verbos em latim, sugere uma reprodução ou paródia do estilo bíblico, particularmente do Apocalipse de São João. O tom grandiloquente e profético, repleto de simbolismos, concilia-se perfeitamente com os temas de morte e renascimento que permeiam estas páginas.
O detalhe essencial, contudo, é a palavra "イーガルっぽい" (iigaruppoi), mencionado apenas essa única vez em todo o livro (constituindo, portanto, um hápax legómenon): o sufixo nativo "-っぽい", escrito em hiragana, corresponde inegavelmente ao "-like" inglês nesse contexto; "イーガル", por outro lado, é bem mais difícil de se compreender. A maior parte das traduções internacionais o lê "eagle" (seguindo o exemplo da primeira edição americana, onde se encontra "I have beheld an eagle-like animal"), rendendo sempre algo semelhante a "Eu vi um animal como a águia"; diversas versões alemãs, todavia, preferem adaptar o trecho como "Ich habe ein igelartiges Tier angeschaut", ou seja, "Eu vi um animal como o ouriço". Algumas destas últimas o fazem de forma irrefletida; outras reconhecem a ambiguidade do termo, e tentam, em apêndices como este, oferecer alguma justificativa (como, por exemplo, o fato de a frase começar com "ich") para sua escolha.
Agora, é claro que, para esta nossa tradução do Columbarium, tal minúcia não deveria ser relevante em absoluto; "Igel" e "eagle" são leituras igualmente válidas de "イーガル", e a passagem em questão é por demais obscura e surreal para elucidar o problema. Feita uma leitura superficial da obra, e consideradas as tentativas prévias de tradução, estaríamos em nosso pleno direito caso resolvêssemos relegar a decisão entre as duas possibilidades (ou quaisquer outras que por acaso existam) aos dados do destino.
E é claro também que, como é de praxe em nossa profissão, a solução não é assim tão fácil.
Ocorre que os seguidores da senhorita Tomokawa já vêm desenvolvendo, há muito tempo (conforme pudemos verificar, desde antes de a autora atingir notoriedade internacional), suas próprias ideias sobre a identidade do iigaruppoi animaru. Certa teoria, bastante difundida, especula que haja ligação entre este e o ハリネズミ (Harinezumi, máquina de guerra descrita como um tanque recoberto de espigões) mencionado no Sonho nº5. O fato de existir aí um elemento designado abertamente pelo termo japonês para "ouriço" talvez implicasse que "イーガル" devesse denotar outra criatura; entretanto, a teoria afirma exatamente o oposto: que o "animal como o ouriço" é o Harinezumi (o emprego do alemão naquele caso não carregando em si qualquer significado especial), e que o cenário apocalíptico pintado pelo monólogo do Sonho nº15 se refere a um Apocalipse literal, um conflito armado de proporções aterradoras que subjazeria ao enredo de ambos os capítulos.
Ramificações dessa hipótese, é bom adicionar, envolvem o livro inteiro em uma narrativa única, tão ampla quanto tácita; algumas chegam mesmo a atribuir qualidades sobrenaturais aos relatos oníricos, tratando-os por verdadeiras profecias.
Parte do nosso trabalho aqui, portanto, é tentar adivinhar o que a autora poderia ter querido dizer com o que de fato disse; embrenhar-se no sentido fundamental da obra, ainda que a contragosto. Por um lado, talvez acabe por afetar a suspensão de descrença dos fãs que uma obra apresentada como simples compilação de sonhos possua, afinal, uma trama tão concreta e abrangente; por outro, quem há de dizer que não era essa mesmo a proposta? Não precisará o leitor desta labiríntica pérola que lhe sejam expostos, a esta altura, os muitos e extraordinários caminhos que a ficção pode tomar.
São situações como esta, enfim, que revelam a delícia e o tormento de nosso ofício: quando não se tem opção além de interferir ativamente naquilo que, por definição, deveríamos meramente transportar de um idioma a outro. Nestes casos, só nos resta torcer para que, mais do que estar "certos", estejamos suficientemente inspirados para a tarefa.

Patética Dialética

Eu não me considero exatamente uma pessoa cética. Às vezes, como os bokononistas daquele livro do Vonnegut, eu prefiro aceitar uma meia-verdade ou uma mentirinha inócua pelo bem da minha sanidade; a minha opinião muda com tanta freqüência que no fim das contas nem faz diferença. Mas, de qualquer forma, esta história não é sobre mim; esta é a história de um confronto épico e acirrado entre ideias igualmente estúpidas, e de como isso pode ser tão fascinante quanto é fútil.
Foi num fim de semana desses, tarde da noite; eu tava matando tempo num fórum sobre paranormalidade (eu acho um tópico interessante; não me julguem) e coisa e tal. Se vocês já frequentaram um site desse tipo, eu não preciso nem comentar quais são geralmente os assuntos: leituras de tarô, creepypastas, conspirações sem pé nem cabeça... Nada de muito promissor ou original, pra variar. Por mais que a gente queira acreditar, a maior parte das postagens é tão besta e vaga que é preferível continuar em dúvida.
Só que, claro (ou eu não teria começado a escrever isto em primeiro lugar), uma delas acabou se sobressaindo: um texto longo e pretensioso intitulado “a verdadeira magia”. A proposta já parecia intrigante pelo nome, mas o que chamou a minha atenção foi a menção a Gabrielle Madison; apesar de eu não ser um fã inveterado, o meu pai tinha vários dos livros dela (até é possível que tenham sido eles que despertaram em mim o gosto pelo oculto), e acho que eu posso dizer que entendo alguma coisa a respeito. Depois de decidir ir dormir assim que terminasse, então, eu fechei as outras abas e fui ler.
De cara deu pra ver que aquilo tinha saído da cabeça de alguém com uma paixão profunda (quase uma obsessão) pela obra da escritora; o estilo era aquela boa e velha salada pós-moderna de viagem surreal e jargão técnico, como o da própria. Se não fosse pelas referências a teosofia e Lovecraft, eu iria até pensar que era um caso de psicografia. Enfim, o cerne da coisa era uma reinterpretação de Pieces of Reality, partindo do razoável pressuposto de que o “mundo total” existe só dentro dos nossos cérebros (o autor nem tentou explicar como eles seriam conectados, mas eu imagino que isso não seja tão importante); uma espécie de solipsismo compartilhado, por mais contraditório que isso seja. Daí que os nossos “bugs mentais” não só afetariam a nossa própria percepção, mas em determinados casos a dos outros também: a “verdadeira magia” do título seria o domínio das “chaves” responsáveis por cada efeito, que (como nas falhas na lógica de um programa) na prática pareceriam completamente desconexos.
A conclusão que arrematou a teoria foi que todos os sistemas de magia e mistérios da História seriam como os “cultos à carga” melanésios: todos nascidos e esquematizados na tentativa dos nossos ancestrais de imitar os rituais reais (imitar de quem foi outra questão que ficou no ar; provavelmente astronautas alienígenas, como de costume), que eles simplesmente não conseguiam decifrar. Ou seja, tudo aquilo em que noventa por cento dos frequentadores do fórum acreditava seria bobagem pura.
Não demorou pra polêmica começar. Primeiro, vários seguidores da pensadora original (que por sinal eu nem sabia que existiam, que dirá que eram tantos) resolveram se manifestar: aquele “revisionismo” aparentemente só “manchava” uma hipótese de “correção científica perfeita” (palavras deles, é óbvio).  O OP então replicou, e foi  acompanhado por alguns recém-convertidos, que o ensaio dele era uma “progressão natural” das ideias da Madison; segundo ele, além de fazer ainda mais sentido, a nova tese esclarecia por que milênios de tradição esotérica não conseguiram nunca provar “a existência ou a efetividade dos seus princípios”. Esse último ponto atraiu pra briga também uma meia dúzia de místicos mais tradicionais, que retrucaram que a magia existe, sim e só não “funciona” pra quem não acredita/não é iluminado o suficiente. E, é claro, os trolls se misturaram a todas as facções, dando bomba só pra bagunçar a discussão.
Eu observei o debate por uns bons minutos, por várias divagações e digressões e insultos gratuitos; não sei se o que me prendeu foi a intensidade da conversa ou se no fundo eu queria acreditar que um dos lados tava certo. Talvez fosse tédio, mesmo. Pra resumir a fábula, eventualmente eu me convenci de que ninguém ali pretendia (ou tinha como, quem sabe, né?) apresentar evidências ou rebater premissas; só o que aconteceu foi que eu gastei meu precioso tempo entre argumentos de autoridade, numa disputa de egos sem sentido nenhum.
Logicamente, eu decidi naquela mesma hora dar um tempo com as pesquisas sobrenaturais; fechei o navegador e, assim que eu terminar de escrever este texto, vou fazer de conta que nunca ouvi falar dessa história.