Hypokeimenon

I cando eu ía cara ó meu fin
(Mirá que o digo ca alma pesada)
Non ides crer o que aló vin:
Coma unha soia, vinte luniñas
Todas cosidas nun ceo de viñas
Anque cada unha ben separada
(Gonçalo Fernandes, Tódalas Noites dos Homes)

Um belo início para este texto; talvez o único possível. Vejamos. Em um canto esquecido da biblioteca da Universidade Nacional de Córdoba, sobre uma estante agora congelada em uma fina lâmina de minha memória, costumavam descansar dois singulares artefatos: um manuscrito de umas duzentas páginas, denominado Más Allá de los Ríos del Tiempo, e uma curiosa caixa metálica cujo uso por muito tempo permaneceu ignoto. Ambos foram confeccionados e lá colocados pela mesma pessoa: Julieta Siciliani, imigrante italiana que, apesar de sua origem camponesa, demonstrara desde a juventude grande habilidade para os prodígios da eletricidade que iam maravilhando o mundo na segunda metade do século XIX. Ambos, também, foram de lá retirados por uma mesma pessoa: Carlos Romero, aluno da Universidade, destinado desde sempre a descobri-los e os compreender. Desde então, o paradeiro dos artefatos permanece desconhecido.
O livro, dedicado a profundas especulações filosóficas e ponteado por versos do esquecido poeta brasileiro tais como os que abrem este relato, foi escrito por Siciliani em antecipação à exposição de seu gênio ao mundo: seu prefácio descrevia já, em detalhes, a forma como seria recuperado da biblioteca; entre metáforas e sofismas, foram registradas conversas tão insólitas quanto inexplicáveis, que se deram mediante uso do supramencionado objeto metálico. Este, por sua vez, passou anos hibernando sob camadas de poeira e ferrugem; até que, em uma tarde de maio de 1969 (“durante um período de convulsão dos povos”, conforme previsto nas linhas do manuscrito), de seu interior ecoou uma voz que, de forma ruidosa mas claríssima, dizia “sou Julieta Siciliani, e procuro por Carlos Romero”.
Demorou alguns dias, na confusão daquela época, para que o bibliotecário localizasse o estudante; assim que isso ocorreu, entretanto, seguiram-se horas e mais horas de diálogos fantásticos entre dois pontos distintos do tempo e do espaço. O que se fez claro através das crípticas palavras da sábia foi que aquela sua magistral criação se tratava de uma entidade quadridimensional, engendrada antes mesmo da concepção da métrica de Minkowski: existia simultaneamente na virada do século, em uma modesta fazenda de alguma colônia agrícola na periferia de Córdoba, e na biblioteca da Universidade Nacional durante a Revolución. A filosofia de Más Allá de los Ríos del Tiempo, aliás, propunha exatamente uma aproximação não-Euclideana à ontologia, mesclada a meditações esotéricas algo relacionadas à Teosofia. As citações da poesia de Gonçalo Fernandes, por exemplo, mencionavam seres pós-humanos semelhantes a águas-vivas etéreas (o que havia sempre sido tomado como uma alegoria), que viveriam além do tempo e pensariam e se comunicariam através da superposição de quadros telepáticos tridimensionais. O destino último daquela revelação, a “missão” de que o jovem Carlos Romero foi incumbido, era então a de transmitir tais conhecimentos à humanidade, assim promovendo sua evolução espiritual.

É claro que nada disso é real. Enquanto que é verdade que a senhora Siciliani, minha avó materna, foi uma gênia autodidata, sua mente brilhante jamais se havia aproximado da Física Teórica durante seus anos mais produtivos. Ela possuía, sim, uma imaginação e um senso criativo ímpares: ainda na juventude, começara a conceber um conto fantástico em que duas pessoas de épocas e locais diferentes se comunicavam através de um tipo de “telefone transtemporal”. Desses anos advêm os primeiros rascunhos da poesia de Gonçalo Fernandes (seu “filho”, como ela viria a chamá-lo, criado como um indecifrável híbrido de D’Annunzio e Martín Fierro); assim como os cilindros de cera contendo sua voz, gravados em um fonógrafo caseiro tão ou mais refinado que aquele elaborado por Edison. Fazia-o meramente por prazer, imagino que sem jamais pensar em mostrá-los a qualquer outra pessoa.
Tal mirabolante empresa, que hoje talvez considerássemos uma forma de expressão artística multimídia, acabou descansando por anos a fio no porão de nossa casa, indiferente às gerações que por lá iam passando. Apenas quando eu comecei a cursar a faculdade de Filosofia (e honestamente não sei explicar por que fui o escolhido) ela decidiu apresentar-me seus trabalhos secretos; já então havia páginas e mais páginas de escritos, além de cilindros e mais cilindros de conversas entre ela e seu personagem Carlos Romero. Dizer que eu me maravilhei diante daquele obelisco da criatividade humana soaria como um eufemismo: aquilo se tornou uma obsessão, o sentido maior de minhas horas de vigília, até quase o fim de minha vida.
Fui eu que enriqueci a narrativa original de Julieta Siciliani com algo de embasamento científico (tanto quanto meu pouco conhecimento do campo me permitiu, e de acordo com as convenções da época), assim como elaborações metafísicas que se lhe coubessem. Acabamos finalizando Más Allá de los Ríos del Tiempo (o título já havia sido escolhido por ela décadas antes) juntos, como uma espécie de ensaio acadêmico dedicado a uma área desconhecida e entremeado de ilusões de escritura sagrada. Fui eu também que construí a caixa metálica que comportaria o fonógrafo e os controles que permitiriam escolher, à distância, qual cilindro seria reproduzido. Apenas os versos do fictício poeta brasileiro, escritos em um “português” aprendido na Galícia, permaneceram por mim intocados: minha avó exigiu que os mantivesse tal qual ela os havia composto, e eu concordei sob a esperança de que nossos vizinhos lusófonos não conhecessem tão a fundo o passado de seu próprio idioma a ponto de perceber nossa licença estilística; e, se hoje já os vi sendo mencionados lado a lado com os de Machado de Assis e Olavo Bilac, creio não ter estado tão errado.
Foram umas boas três décadas de labor e espera. Eventualmente teríamos a chance de lançar ao mundo nosso projeto, aquela charada conceitual e labiríntica que povoou nossos sonhos por tanto tempo. Minha avó partiu em 1955; mais ainda então obriguei-me a persistir, decidido a manter sua memória por meio da manutenção de sua criação. Porém, é justo dizer que tomei tal incumbência com um tanto de liberdade; o passar dos anos em que estive envolvido com a obra só a fez mais minha.
Enfim, durante a revolução, durante aqueles dias terríveis para nossa educação, eu me encontrava trabalhando como bibliotecário na Universidade de Córdoba, já que a disciplina que eu me acostumara a ensinar havia sido tachada de “imoral”. Já então os primeiros sinais de minha doença começavam a se manifestar, e transportar para lá os frutos do trabalho meu e de minha avó era a única coisa lógica e significativa que eu poderia fazer de minha vida. Foi justamente nessa época que eu afinal encontrei Carlos Romero, quando este adentrava a biblioteca procurando por um livro que no fim das contas jamais levou. Não há, é claro, nada de paranormal nisso: esse Carlos Romero foi apenas o primeiro, dos muitos a portar tal comuníssimo nome no mundo latino, com quem eu travei contato; e, tomando a oportunidade diante de mim, escolhi-o prontamente como “vítima” de meu pequeno esquema. Sem que ele percebesse minhas intenções, levei o estudante ao local onde o curioso “telefone” estava escondido, e deixei que o descobrisse por conta própria; controlando de longe a execução das gravações de voz, consegui, de forma rudimentar mas crucial, convencer Romero de que travava mesmo um diálogo com a falecida Julieta Siciliani; e assim eu o guiei à leitura do manuscrito, e ao clímax absurdo da narrativa.
O jovem, naturalmente, deixou a biblioteca completamente extasiado; eu então removi a “caixa falante” de lá antes que notícias daquela maravilha chegassem aos ouvidos de algum cético que pretendesse abri-la para averiguação. De modo oblíquo, o desaparecimento próprio do artefato acabou servindo como corroboração à veracidade da tramoia: evidentemente, ele só existira ali durante aquele único dia.
Por um tempo, então, parecia que um pequeno culto se estabelecera na Universidade. Invisível em meu posto de trabalho na biblioteca, eu ouvia nos sussurros de alunos palavras familiares; palavras que eu mesmo havia cunhado. Em meus delírios mais selvagens, cheguei a pensar que estivessem organizando-se para derrubar os tiranos do poder, e então estabelecer em nosso país uma sociedade pós-humana tendo como bíblia meus próprios escritos. Mas minhas visões quiméricas logo desapareceriam: os termos cabalísticos foram rareando, e os sussurros passaram a se centrar no nome Perón. Afinal eu constatei aquilo que a insipidez de minha profissão e a amorfia de meus pensamentos não me deixavam ver: havia um mundo lá fora, e seus dias seguiam passando.

E assim o drama terminou por se esvair em nada. Hoje, deitado neste leito de hospital sem esperança de cura, eu vejo o quão inútil e infantil foi meu comprometimento. Vez que outra, eu encontro em livros ou programas de televisão menção a algum personagem, tema ou ideia que eu percebo ter vindo diretamente de Más Allá de los Ríos del Tiempo; mas é só. O vazio tem sido meu companheiro constante. Há muito concluí que o que me encantara nesse empreendimento inglório e me fizera a ele dedicar tantos anos de minha vida foi simplesmente ter visto quanto esforço já se lhe havia sido aplicado: o conto fantástico de minha avó, que eu refinei e em grande medida reescrevi, era algo grandioso demais para se jogar fora; e eu criei toda uma Filosofia particular em seu entorno, tanto para compreendê-lo como para o proteger. Talvez eu não devesse nunca tê-lo apresentado a quaisquer dos Carlos Romero que conheci; talvez, como a genial Julieta Siciliani fez por tantos anos, eu devesse ter trabalhado em silêncio em um porão solitário, quiçá até morrer. 
De um modo ou outro, entretanto, eu acabei subconscientemente permitindo que esse “conhecimento” influenciasse a própria organização de meu raciocínio. Ainda fascinado por um universo em que o todo da existência se dá precisamente no mesmo instante eterno, eu me vi assumir uma concepção por demais pragmática em relação à essência do ser; uma fantasia basicamente teleológica, em que tudo o que existe o faz porquanto tenha um uso ou razão fundamental. Ainda hoje, confesso que preciso me esforçar para evitar surpreender-me, por exemplo, quando o marcador de meus livros não desaparece em pleno ar quando termino a leitura.
O que eu demorei a admitir a mim mesmo é que, no afã de criar uma novíssima ciência, eu buscava não mais que a comprovação de alguma, qualquer que fosse. Nestes tempos em que a compreensão humana vem-se tornando redundante, em que sabemos tanto que é como se não soubéssemos nada, consumia-me por dentro apenas a vontade de descobrir algo a ser descoberto. E o que eu descobri foi apenas que novos esquemas e categorizações meramente se sobrepõem às antigas, e que a substância subjacente a tudo permanece tão intangível à razão e a experiência como Kant a via: assim, uma criança criada sem nunca aprender o nome de coisa alguma veria à sua frente, a todo o momento, simplesmente um deserto multiforme e ignoto entre si e suas próprias costas, a um mundo de distância.
A existência deste, ao menos, eu hoje consigo perceber; defendo-a com o mesmo racional fanatismo, a mesma esperança furiosa e ingênua, com que o célebre doutor Johnson refutou o imaterialismo do bispo Berkeley: chutando uma pedra, matando uma barata, bebendo um gole de aguardente. Ainda que apenas dentro do caos de minha cabeça, o mundo é real.
E não há nada mais nele para mim além de vivê-lo. No silêncio destes meus últimos dias, tenho-me dedicado, pelo mesmo senso de diversão descompromissada que teria motivado qualquer outra atividade, a escrever a História de um reino imaginário. Quis fazer-me rei nos primeiros rascunhos, mas não tardei a perceber o caráter patético (e um tanto irônico) de minha soberba; possivelmente então por raiva de mim mesmo e de minha inevitável humanidade, transformei-me em um invasor genocida, um tirano das lendas e vilão das fábulas infantis, empenhado em destruir minha própria fantasia da forma mais avassaladora e definitiva possível; por fim, cansado, resolvi tornar-me um simples aldeão: um que, na escuridão de seu anonimato, talvez (e apenas talvez) pudesse ter concebido algum engenho ou ideia brilhante e potencialmente revolucionária; talvez e apenas talvez fadado a ver seu gênio soterrado pelos esporádicos mas persistentes surtos de sangue e hipocrisia das Histórias escritas por velhos como eu. Esta última versão, é claro, é a que o tempo tem me permitido desenvolver, e quem sabe chegue mesmo a terminá-la.

Mas esses são só devaneios de uma cabeça velha e enferma. Todas as visões, todos os murmúrios no escuro; sei que tudo são apenas sintomas perfeitamente mensuráveis e previsíveis de minha doença. Em certos momentos, de fato, sinto-a como uma presença física em meu corpo: nas febres, enxergo-a como uma pequena bola de plástico; vejo-a sendo posta em minha garganta por uns estranhos homens vestidos de cinza; sinto-a criar raízes como ridículos nano tubos de carbono (e aí me forço a recordar que não faço ideia do  que sejam essas coisas), escavando o caminho até meu cérebro e se entrelaçando a meus neurônios. Tudo isso eu percebo ao mesmo tempo, como uma única coisa marcada a fogo no centro de meus pensamentos; como, quiçá, quadros fantasmagóricos na mente de águas-vivas cósmicas. Não há, contudo, nada de paranormal nisso: são sinais da evolução da doença, apenas; eu ainda possuo suficiente controle de meu juízo para percebê-lo.
O leitor estará já cansado, é claro, desta ladainha abstrata. Não o culpo. O motivo por que decidi escrever este texto, aliás, é mesmo o de me livrar desta carga de responsabilidade que há tantos anos assumi. Não sei, realmente não sei, que sina sobreveio ao manuscrito original de Más Allá de los Ríos del Tiempo; mas sei que alguns há que certamente travaram contato com ele, e talvez ainda o considerem um verdadeiro prodígio. Com certa frequência recebo suas cartas, advindas de certo refúgio oculto sob as areias de Taklamakan; mas desconfio que não recebam as minhas: a cada vez parecem tratar de assunto diferente, como se ignorassem propositadamente minhas respostas; ou então nossa comunicação atingiu um nível de complexidade tão elevado que a mim se assemelha a um código secreto, e (talvez como mais um efeito nocivo de minha decadência mental) não mais a compreendo. De qualquer forma, espero que este desabafo atinja seus olhos, e faça cessar essa terrível correspondência.
O que eu desejo dizer, o que eu preciso dizer, é que me arrependo de ter começado esta tragicomédia infernal. Não tenho mais saúde ou qualquer migalha de vontade para continuar mantendo-a, e me dói sequer pensar a respeito. Não, não existem “seres superiores” além do tempo. Não há nenhuma revelação; não existe missão ou “destino último” para nossas vidas. Nenhum de nós possui uma alma imortal e atemporal: ao morrer, tendo bondade o universo, simplesmente deixamos de existir. Perdoem-me.