Crônicas do Fim do Mundo VIII - Entropia

Dizem que quando Marco Polo, o homem que percorreu boa parte do mundo conhecido no século XIII e reuniu suas memórias no livro que veio a ser pejorativamente chamado Il Milione (por conta de seus supostos exageros), se encontrava em seu leito de morte, o padre que havia ido lhe dar a extrema-unção o aconselhou a confessar a falsidade dos seus relatos fantásticos e assim evitar morrer em pecado. A resposta do explorador até hoje me arrepia: “o que contei não foi nem metade do que vi”.
 Pode ser só uma anedota surgida no telefone-sem-fio dos séculos, é verdade; mas isso não a torna menos impactante. Fechado neste buraco apertado, esse é basicamente o sentimento que me mantém vivo.
 Eu sou um caçador de memórias. Desde criança, desde que eu consigo me lembrar (com certeza eu tenho uma nota sobre isso em algum lugar aqui), eu tenho um medo terrível de perder pedaços da minha vida, por mais insignificantes que sejam. Anos atrás, eu gastaria horas e mais horas pesquisando na internet a respeito de, sei lá, desenhos que marcaram minha infância, filmes... Meu pai sempre me contava sobre um filme que ele tinha assistido quando criança, um western sobre uma cidade que era atacada por índios e o único sobrevivente era um bêbado preso na cadeia local, que então se encontra com uma professora de Boston... Eu não descansei até desvendar minha “presa”: Copper Sky, de 1957, lembro até hoje. Péssimo filme, incrivelmente monótono.
 Enfim, estourou a Guerra, nós corremos pros nossos buracos como ratinhos assustados... E hoje eu sinto que preciso das minhas notas pra sobreviver. Perco alguma, e então tenho que escrever outra sobre a lembrança de tê-la escrito. Ou sobre como eu deveria ter comprado um arquivo quando ainda podia. Nem sei se ainda fabricam essas coisas; acho que o meu pai tinha um no escritório dele. Não posso esquecer como eles eram.
 Agora mesmo, por exemplo, tenho em mãos um dos meus textos mais longos, um dos meus maiores orgulhos: a descrição minuciosa de um fóssil que eu descobri na juventude. Não sei se já mencionei, mas eu fui um paleontólogo em algum ponto da minha vida; antes, bem antes da Guerra, disso eu tenho certeza. Numa mina de ardósia nos Pirineus espanhóis, acredito que na Catalunha, eu encontrei o espécime mais bem-preservado do peixe pré-histórico anteriormente conhecido como Stensioella heintzi. Essa descoberta me possibilitou concluir que a criatura não era, como se pensava, um placodermo, mas um holocéfalo; o que provou que estes se separaram dos tubarões ainda antes da radiação evolutiva dos seláceos no período Devoniano. O novo gênero eu nomeei Protodermodonta, em função de sua característica mais peculiar, os dentículos dérmicos que toda a classe Chondrichthyes herdou; e a espécie, P. marigoriana, em alusão à Marigoria, um ser mitológico dos povos ibéricos pré-romanos. Todos esses detalhes eu guardei, por capricho, por vaidade, que seja. Tudo pra que as enciclopédias da posteridade não esquecessem um bichinho de 10 centímetros e 400 milhões de anos. Eu nem sei se ainda existem enciclopédias; Deus, eu nem sei se a Catalunha ainda existe...
 Aliás, eu adorava assistir aos jogos do Barcelona quando era criança. Depois que o meu pai morreu, eu e minha mãe sempre levávamos um par de chuteiras dele ao estádio, e eu colocava sobre uma cadeira e imaginava ele ali do meu lado. Acho que eu era pequeno demais pra entender que ele não ia mais voltar, depois da Guerra, depois de tudo... Foram os ibéricos que esculpiram a famosa Dama de Elche, uma representação da deusa cartaginesa Tanit; houve acusações de que se tratava de uma fraude moderna, mas acredito que já esteja bem provado que a escultura é autêntica. Tenho que checar minhas notas.
 Agora, é óbvio que isso acabou se tornando uma obsessão pra mim, eu admito. Meu sonho era ser escritor, mas a condição financeira da minha família nunca me permitiria me dar esse luxo; ainda assim, eu guardei todos os contos e crônicas da minha infância e adolescência que consegui resgatar, e reescrevi os que se perderam com o tempo. Claro, essas “reinterpretações” nunca eram totalmente fiéis ao estilo original, e eu escrevia sempre um comentário, como que um apêndice, explicando e detalhando o processo. Ainda tenho tudo isso aqui, em algum lugar; eu deveria ter comprado um arquivo quando ainda podia. Nem sei se ainda fabricam essas coisas; acho que o meu pai tinha um no escritório dele. Não posso esquecer como eles eram.
 Mas o pior sintoma da minha desorganização é que ele é um ciclo vicioso: quanto mais eu escrevo, mais eu preciso escrever. É muita informação pra digerir, e eu sempre preciso voltar atrás e fazer tudo de novo. Deve ser por isso que os críticos odiavam os meus livros; metade do tempo parecia que eu tava lendo um almanaque de curiosidades. Não posso culpar os desgraçados. Copper Sky era pra ser um livro sobre filmes western B; só que, durante as minhas pesquisas, de alguma forma eu acabei chegando num arquivo da Wikipédia sobre um peixe pré-histórico.
Eu gostaria de ser escritor. Antes da Guerra, eu teria adorado ser escritor. Mas eu já vivi demais e já pensei demais, preso neste maldito buraco, pra sequer decidir onde começar. Aliás, se não fosse por todas essas pilhas de papéis cheios de símbolos ao meu redor, eu não saberia dizer se já escrevi alguma coisa na vida.

Kōan II

Linha do tempo #1

A tensão cresce na praça de alimentação do shopping popular. Alguns ainda permanecem por trás do cordão de isolamento, corajosa e estupidamente empunhando seus celulares contra aquela cena insólita, na esperança de captar em vídeo algo de interessante para postar na internet: a maleta, solitária em meio à floresta de mesas vazias, impetuosamente paciente como uma Esfinge, espera por seus desafiantes.
 O esquadrão antibombas chega abrindo caminho entre a multidão de curiosos e, com a pressa e cautela típica daqueles de cujo trabalho dependem muitas vidas, avança em direção ao seu alvo.
 - É, com certeza é uma bomba. - atesta Jack, o veterano amargo e irônico, após uma cuidadosa (ainda que um tanto rápida) inspeção do artefato. Não admite, mas aquele modelo, com seus três fios vermelhos e diferenciados apenas por etiquetas (numeradas com 0, 1 e 2), lhe é totalmente estranho.
 - Tem um papel aqui. - comenta Rachel, a novata, ansiando dar alguma contribuição e provar aos colegas que é mais do que apenas uma bonequinha perdida num mundo de perigo, decepções e grandes símbolos fálicos.
 Ajoelhando-se, Jack detecta, colado com fita adesiva sob a mesa, um bilhete escrito em caligrafia descuidada; e, tomando-o nas mãos, o lê sem esboçar qualquer sentimento:

Um mestre zen e seu discípulo um dia andavam por uma estrada. Em certo ponto, chegaram a uma bifurcação. E agora, mestre?, questionou o jovem, Que caminho tomaremos? Sem dizer qualquer palavra, o sábio virou-se e lhe desferiu um tapa no rosto. Naquele momento, o discípulo atingiu a iluminação.

- Que merda é essa? - pergunta Gus, o piadista despreocupado e ligeiramente psicótico. Sorri; mas então percebe que os outros dois estão completamente sérios.
 Por alguns minutos, então, os três se põem a pensar sobre o sentido daquele enigma. Tendo consciência de sua responsabilidade (caso não o tivessem, o timer cada vez mais próximo do zero faria questão de lhes recordar), cada um, à sua própria maneira, tenta relacionar o conteúdo do texto com as possibilidades de ação.
 - Só existe um caminho. - diz Rachel, finalmente; gagueja um pouco, demora para conseguir organizar sua ideia, mas tem total certeza de estar correta. Seus colegas interrompem seus fluxos de pensamento para ouvi-la. - O mestre repreendeu o aluno porque, independentemente da escolha que ele fizer, esse vai ser o caminho que eles vão percorrer. Só existe um caminho. A resposta é 1.
 Seus colegas a observam por um instante; são os últimos segundos, e o suor em seus rostos revela o silencioso desespero que os invade. Uma rápida troca de olhares confirma que não há absolutamente solução melhor, ou tempo para que se tente encontrar uma. Jack respira fundo; então, em um único movimento, fecha os olhos e corta o fio com a etiqueta 1.
 A bomba explode.

Linha do tempo #2

A tensão cresce na praça de alimentação do shopping popular. Alguns ainda permanecem por trás do cordão de isolamento, corajosa e estupidamente empunhando seus celulares contra aquela cena insólita, na esperança de captar em vídeo algo de interessante para postar na internet: a maleta, solitária em meio à floresta de mesas vazias, impetuosamente paciente como uma Esfinge, espera por seus desafiantes.
 O esquadrão antibombas chega abrindo caminho entre a multidão de curiosos e, com a pressa e cautela típica daqueles de cujo trabalho dependem muitas vidas, avança em direção ao seu alvo.
 - É, com certeza é uma bomba. - atesta Jack, o veterano amargo e irônico, após uma cuidadosa (ainda que um tanto rápida) inspeção do artefato. Não admite, mas aquele modelo, com seus três fios vermelhos e diferenciados apenas por etiquetas (numeradas com 0, 1 e 2), lhe é totalmente estranho.
 - Tem um papel aqui. - comenta Rachel, a novata, ansiando dar alguma contribuição e provar aos colegas que é mais do que apenas uma bonequinha perdida num mundo de perigo, decepções e grandes símbolos fálicos.
Ajoelhando-se, Jack detecta, colado com fita adesiva sob a mesa, um bilhete escrito em caligrafia descuidada; e, tomando-o nas mãos, o lê sem esboçar qualquer sentimento:

Um mestre zen e seu discípulo um dia andavam por uma estrada. Em certo ponto, chegaram a uma bifurcação. E agora, mestre?, questionou o jovem, Que caminho tomaremos? Sem dizer qualquer palavra, o sábio virou-se e lhe desferiu um tapa no rosto. Naquele momento, o discípulo atingiu a iluminação.

- Que merda é essa? - pergunta Gus, o piadista despreocupado e ligeiramente psicótico. Sorri; mas então percebe que os outros dois estão completamente sérios.
Por alguns minutos, então, os três se põem a pensar sobre o sentido daquele enigma. Tendo consciência de sua responsabilidade (caso não o tivessem, o timer cada vez mais próximo do zero faria questão de lhes recordar), cada um, à sua própria maneira, tenta relacionar o conteúdo do texto com as possibilidades de ação.
 - É inútil. - murmura Jack, finalmente; sua voz soa mais fraca que o tique-taque da bomba, mas sua experiência lhe traz a resposta de forma quase instintiva. Seus colegas interrompem seus fluxos de pensamento para ouvi-lo. - O mundo é cheio de bifurcações, cada uma leva a outra... O erro está em procurar um caminho. Não existe caminho, só existe o caminhar. O fio certo é o 0.
 Seus colegas o observam por um instante; são os últimos segundos, e o suor em seus rostos revela o silencioso desespero que os invade. Uma rápida troca de olhares confirma que não há absolutamente solução melhor, ou tempo para que se tente encontrar uma. Jack respira fundo; então, em um único movimento, fecha os olhos e corta o fio com a etiqueta 0.
 A bomba explode.


Linha do tempo #3

A tensão cresce na praça de alimentação do shopping popular. Alguns ainda permanecem por trás do cordão de isolamento, corajosa e estupidamente empunhando seus celulares contra aquela cena insólita, na esperança de captar em vídeo algo de interessante para postar na internet: a maleta, solitária em meio à floresta de mesas vazias, impetuosamente paciente como uma Esfinge, espera por seus desafiantes.
O esquadrão antibombas chega abrindo caminho entre a multidão de curiosos e, com a pressa e cautela típica daqueles de cujo trabalho dependem muitas vidas, avança em direção ao seu alvo.
- É, com certeza é uma bomba. - atesta Jack, o veterano amargo e irônico, após uma cuidadosa (ainda que um tanto rápida) inspeção do artefato. Não admite, mas aquele modelo, com seus três fios vermelhos e diferenciados apenas por etiquetas (numeradas com 0, 1 e 2), lhe é totalmente estranho.
- Tem um papel aqui. - comenta Rachel, a novata, ansiando dar alguma contribuição e provar aos colegas que é mais do que apenas uma bonequinha perdida num mundo de perigo, decepções e grandes símbolos fálicos.
 Ajoelhando-se, Jack detecta, colado com fita adesiva sob a mesa, um bilhete escrito em caligrafia descuidada; e, tomando-o nas mãos, o lê sem esboçar qualquer sentimento:

Um mestre zen e seu discípulo um dia andavam por uma estrada. Em certo ponto, chegaram a uma bifurcação. E agora, mestre?, questionou o jovem, Que caminho tomaremos? Sem dizer qualquer palavra, o sábio virou-se e lhe desferiu um tapa no rosto. Naquele momento, o discípulo atingiu a iluminação.

- Que merda é essa? - pergunta Gus, o piadista despreocupado e ligeiramente psicótico. Sorri; mas então percebe que os outros dois estão completamente sérios.
 Por alguns minutos, então, os três se põem a pensar sobre o sentido daquele enigma. Tendo consciência de sua responsabilidade (caso não o tivessem, o timer cada vez mais próximo do zero faria questão de lhes recordar), cada um, à sua própria maneira, tenta relacionar o conteúdo do texto com as possibilidades de ação.
 - Vocês tão de brincadeira? - debocha Gus, finalmente; os semblantes concentrados de Jack e Rachel lhe são desconcertantes: ele tem a conclusão como óbvia. Seus colegas interrompem seus fluxos de pensamento para ouvi-lo. - O menino tinha a oportunidade de fazer uma escolha, mas preferiu perguntar pro mestre o que fazer. A “iluminação” significa tomar decisões, ser dono da própria vida; não procurar por um caminho certo. É isso que a bifurcação representa. Bifurcação. Dois. A resposta é 2.
Seus colegas o observam por um instante; são os últimos segundos, e o suor em seus rostos revela o silencioso desespero que os invade. Uma rápida troca de olhares confirma que não há absolutamente solução melhor, ou tempo para que se tente encontrar uma. Jack respira fundo; então, em um único movimento, fecha os olhos e corta o fio com a etiqueta 2.
 A bomba explode.