Uma Coisa

Uma coisa tênue
Uma coisa oca
Uma coisa de pimenta e ar
Como um fogo que queima os olhos
Mas não ferve o sangue

Como a dor já bem cicatrizada
Que se relembra com um quase prazer
Com uma quase doçura

Como o ferro frio que te corta as flores
Que te corta os frutos
Que te algema as asas e te come as aspas
Mas não toca a carne

O gosto agridoce
Que revolta
E se revolve
No céu da boca

Uma mancha
Uma gota
Uma coisa

Versos Inauditos

Um guaxinim verde desliza montanha acima, enquanto uma trilha de pós-metal toca ao fundo; ele passa por uma abertura geometricamente perfeita na face da rocha, e trilha por labirínticos caminhos cavernosos durante alguns minutos; encontra, enfim, o mítico morango neon radiativo, descansando sobre um altar de mármore; e, quando está prestes a comê-lo, uma vaca cai do céu e o esmaga em uma poça de sangue. Os créditos rolam, citando nomes de pessoas que nunca existiram.
Para a maioria das pessoas, a descrição da cena final de Bellpeppers of Death soa como um semi-sério esforço pré-adolescente em emular uma peça surrealista; para os fãs de Marcos da Silveira, contudo, ela representa o último fragmento de uma narrativa complexa e altamente simbólica.
Da Silveira foi um animador autodidata, de cuja biografia só o que se sabe é que nasceu no Brasil e se radicou nos Estados Unidos. Durante sua curta mas prolífica carreira, publicou centenas de vídeos em seu website ApocalypticMutilationDaSilveira, em sua maioria curtas dinâmicos e temperados com humor nonsense. Sua obra passou anos na obscuridade, vindo a ser descoberta apenas no fim de sua vida; este último período, entretanto, foi seu mais produtivo e bem-sucedido.
Pode-se dizer que o que alavancou seu trabalho à fama repentina foi a postagem no fórum 4chan de um trecho de sua animação Popcorn, sob a alegação de que esta incluiria mensagens subliminares relacionadas à Illuminati; apesar de tal ponto de vista ser hoje predominantemente rejeitado pelos fãs, foi esse escrutínio que levou muitos internautas a perceber uma série de pistas contidas em seus vídeos, as quais sugeriam um enredo muito mais profundo e sólido “oculto” sob a superfície cartunesca. Boatos e teorias a respeito foram se espalhando pela web; e, conforme novos episódios iam sendo produzidos, mais e mais pessoas se uniram no esforço de interpretar sua criação como um todo.
O curta mencionado no início deste texto, por exemplo, contém uma série de referências mais ou menos óbvias aos seguidores mais ferrenhos (como a vaca, ou a cor do personagem principal); mas é mais notável por apresentar a seguinte inscrição, visível somente em um freeze frame aos 5min30seg: “For hast thou read the tales unwritten/Of craven love and hope undying?”. A origem dos versos é incerta: enquanto que alguns creem que seja uma composição própria, certas fontes os atribuem ao igualmente obscuro poeta brasileiro Gonçalo Fernandes (o original em português seria “Pois leste tu os inauditos versos/De amor covarde e eterna espera?”); de qualquer forma, a alusão apenas reforçou a suspeita dos fãs de que o mistério por trás da série remetia a uma paixão secreta do autor.
Mesmo com sua popularidade recente (ou, talvez, em função dela), Marcos aparentemente passava por um período conturbado em sua vida pessoal; a relação de tal com o conteúdo de seu trabalho é desconhecida, e foco de muita especulação. O fato é que, em outubro de 2018, o animador postou em seu site uma carta de suicídio, entremeada de frases enigmáticas e saturadas do humor negro que lhe era característico. Apesar do choque com o falecimento súbito de seu ídolo, o trecho mais espantoso para os fãs possivelmente tenha sido a revelação que ele deixou sobre sua obra:

“(…) e eu espero que me perdoem por guardar este detalhezinho até o último momento. A verdade é que nunca existiu uma backstory “secreta” por trás da coisa toda. Eu menti; me processem.
Tipo, quando Popcorn começou a bombar, eu via vocês conversando sobre essas supostas ‘mensagens ocultas’ e eu ficava tipo ‘wtf?’; mas eu comecei a ter cada vez mais visualizações, e resolvi jogar o mesmo jogo. Sabem quando estudantes enchem seus ensaios com palavras bonitas e observações desnecessárias, pros professores de Inglês acharem que eles entendem de simbolismo? Então, foi mais ou menos isso que eu fiz. E porra, como funcionou! Era só eu colocar um personagem parado no fundo de uma cena, ou escrever qualquer bobagem num único frame, que logo os comentários tipo ‘[tal coisa] só comprova [tal teoria]’ apareciam. Se vocês forem completamente sinceros com vocês mesmos, nunca teve lógica nenhuma nessas paradas.
Sério, me desculpem por isso; mas vocês têm que admitir que foi bem engraçado.”

Aqueles há, contudo, que duvidam ainda da confissão final, e a consideram uma nobre tentativa póstuma de preservar sua Dulcineia misteriosa na tranquilidade do anonimato. A bem da verdade, não são poucos os que creem que da Silveira nem sequer morreu: à semelhança de outros gênios como James Dean e Jim Morrison, ele teria forjado a própria morte para escapar ao assédio dos fãs e da mídia, e deixado mensagens sobre isso também em sua obra; a busca por pistas continua até hoje.

Breve Compêndio de Pseudeisegeses I - A Silenciosa Sociedade Secreta‏

Todos os dias, jornais do mundo todo servem de veículo para um tipo de comunicação que passa despercebida aos olhos da imensa maioria dos leitores; alguns dos anúncios apresentados nas páginas dos classificados não se referem a uma propriedade real, e aqueles que (desconfiadamente ou não) ligarem para o número fornecido serão informados de que “a casa já foi vendida” ou desculpa equivalente. Apenas os poucos que possuem conhecimento da palavra-chave a ser dita durante o telefonema, ou o segredo da interpretação do sucinto texto da nota, compreendem o significado dessas mensagens.
Não há nenhuma evidência que suporte a veracidade das afirmações expostas no parágrafo acima; todavia, a tática não apenas é plausível, como também bastante prática. O uso de objetos ou eventos cotidianos para a transmissão de nuances mais profundas ou específicas não é uma invenção recente: durante a Era Vitoriana, por exemplo, havia uma “linguagem das flores” que permitia a expressão de sentimentos e desejos (os quais, pela moral da época, não poderiam ser revelados em voz alta) mediante a troca de pequenos buquês chamados tussie-mussie; fenômenos similares são encontrados em outras culturas ao redor do mundo, como a hanakotoba (花言葉) japonesa, e em diversos trabalhos da literatura mundial, da Bíblia a Shakespeare.
A diferença entre esses códigos e o proposto no início deste texto é que, no primeiro caso, a decodificação do simbolismo é sempre simples e acessível (na supramencionada Inglaterra Vitoriana, “dicionários florais” continham todo o conhecimento necessário a respeito); isso porque, enquanto que podiam ser utilizados para o envio de mensagens secretas, a existência em si desses sistemas não é nem nunca foi secreta.
Imaginemos, então, uma sociedade de pessoas que, desde sabe-se lá quando, têm se comunicado por intermédio de um arranjo semelhante; concedamos, contudo, que nenhum detalhe acerca deste seja publicamente conhecido. Apenas os membros o dominam, e portanto apenas os membros o reconhecem; seus motivos, seus interesses, sua dimensão ou sua influência: nada disso é ao menos verificável para os “de fora”. Como um mastodôntico easter egg universal, sua mensagem só é visível àqueles que já sabem que ela está lá.
A hipótese do uso de jornais, aliás, é puramente especulativa; a tal comunicação, se existir, pode ser feita por uma variedade de outros meios: comerciais de TV ou rádio, cartazes colados em muros, textos em blogs da internet etc. As possibilidades são virtualmente infinitas.