I Know the Pieces Fit

- Nós somos estranhos. - disse ela, os olhos fixos na lua através das nuvens, o torso um pouco tenso sobre os cotovelos, deitada na grama úmida.
Nós.
Eu poderia ler camadas e camadas de significado naquele rosto que tanto se esforçava pra não dizer nada (ou pra dizer sem falar, a mensagem saindo de um cérebro pra já adentrar o outro, essa harmônica telepatia com que sonham os funcionalistas); mas foi a um detalhe semântico que eu me ative. Um detalhe que sozinho me pareceu conter mais significado que o resto todo.
Nós. Porque “eu” sou automático, preguiçoso; quem realmente se atreve a mergulhar dentro de si? De repente os budistas que estão certos, e eu me desconstruindo de dentro pra fora não encontraria ninguém; mas nós somos opcionais. Nós somos a diluição intencional da fronteira entre eu e tu: se eu não existo, nós não existimos juntos. Tem algo de absurdamente reconfortante nisso; o que me vem à mente é a imagem de duas células se fundindo, algo como a formação de um zigoto ou coisa parecida. Talvez Freud explique; ou Lacan; ou Anaximandro, sei lá. Buscar uma explicação seria impossível sem acentuar a distância, a différance entre nós; sejamos estúpidos e inexplicáveis.

“Nós somos estranhos”. Eu poderia ter discordado, eu poderia ter concordado; eu poderia até ter respondido. Mas nós somos, e isso é tudo que importa.

Crônicas do Fim do Mundo X - Blasthrophocandra

Noite passada eu sonhei que comia uma aranha
Em um campo de TVs quebradas
E meus amigos todos estavam vivos

“Estamos aqui!”, alguém gritou
Egoísta e rudemente, e
Esperamos que eles chegassem

Mas as palavras na tela grande diziam
“Blasthrophocandra! Skranagdullasva!”
E nós ficamos parados

Ninguém gritou, ninguém chorou, ninguém
Mãos muito frias até pra respirar
Mãos muito frias até pra pensar

Nós só dançamos sobre a poeira, e
Nadamos alto na luz queimante
Mãos muito frias até pra piscar

Mas o homem no terno fino disse
“Blasthrophocandra! Kyrtasvartoror!”
Do alto da colina

E nós dormimos, um por um
Como pequenos enet em um lassentil

P.S.: forma mais reproduzida (em tradução extra-oficial) do poema que veio a ser conhecido popularmente como Blasthrophocandra ou Spider Eater; o original, um grafite descoberto em meio às ruínas de Seattle e registrado por Eric Ahn em sua fotografia vencedora do Pulitzer Dust Laughs, inclui um pequeno número de discrepâncias.  
Esta versão, entretanto, atingiu um nível de proeminência sem precedentes quase que imediatamente após ser publicada online. Durante os tumultos de 2106, grupos de jovens saíram às ruas usando camisetas que continham o verso “last night I dreamt I ate a spider” para reivindicar os direitos dos habitantes da superfície; os protestos culminaram com a inauguração do New Manhattan Memory House, que abriga trabalhos relacionados à Guerra e cujos lucros são parcialmente revertidos a ações de caridade. Dentre as muitas obras expostas, apenas uma discreta escultura, que recebeu o nome da histórica fotografia de Ahn, faz homenagem direta ao poeta: um simulacro de um muro de tijolos, trabalhado em poliestireno expandido e papelão, que porta a inscrição “DUST LAUGHS - Dedicated to the unknown author of ‘Blasthrofocandra’ [sic], may his talent and inspiration never be forgotten”.

Rings of Smoke through the Trees

Arthur acordou com o primeiro raio de sol e imediatamente se pôs de joelhos, ainda não totalmente liberto das garras do sono, para enunciar seu juramento. Eu sou um guerreiro da Marca, e meu dever é proteger esta fronteira do perigo da Guerra até que meu Senhor me dispense ou a Morte reclame minha alma. Somente então se ergueu e caminhou, espreguiçando-se, até a pequena mesa de sua câmara. A refeição já estava posta, como de costume; o homem não pensou muito a respeito, pois o pão estava fresco e o vinho se espalhou por seu corpo como uma centena de línguas de fogo, despertando-o definitivamente. Frio, disse a si mesmo, sentindo os pelos do braço se eriçar devido à brisa que soprava do exterior. Terminou de comer depressa e tratou de vestir sua armadura e capa, calçar as botas e cingir a espada, aprumando-se para suas tarefas diárias; trancou a janela inconscientemente, antes de se dirigir às escadas. 
Aquele dia transcorreu sem maiores problemas. Arthur montou guarda sobre as ameias, patrulhou as antigas galerias e visitou cada profunda cela e masmorra da poderosa fortaleza. A solidão, a escuridão e a poeira eram suas confidentes; o aço em seu cinto, seu amigo mais confiável. Juntos, homem e pedras suportaram o peso de mais uma vigília, a determinação insone do vento de inverno em suas faces e a opressão das florestas escuras que os circundavam; estoicos, imóveis, certos de estarem cumprindo fielmente sua missão sagrada. Quando a lua começava a se erguer no céu, o guerreiro então retornou a seus aposentos para suas merecidas horas de descanso; sua consciência tranquila por seu reino e seu Senhor, deitou a cabeça sobre o travesseiro na expectativa de sonhos agradáveis. 
Arthur acordou alguns minutos antes do nascer do sol e imediatamente se pôs de joelhos, livrando-se apressadamente das garras do sono, para enunciar seu juramento. Eu sou um guerreiro da Marca, e meu dever é proteger esta fronteira do perigo da Guerra até que meu Senhor me dispense ou a Morte reclame minha alma. Somente então se ergueu e esquadrinhou o quarto, desorientado, pela fonte de seu tormento. Frio, sua mente gritava; e em segundos seu corpo se arremessava bruscamente sobre a cama para bloquear a violenta ventania que vinha do exterior. Trancou a janela, e se esforçou tanto quanto pôde para evitar lembrar que já o havia feito no dia anterior. Andou, ainda tonto, até a mesa de sua câmara. A comida já estava lá, como no dia anterior; mas ele comeu mecanicamente, pois o pão estava envelhecido e o vinho se espalhou por seu corpo como uma neblina espessa e morna, entorpecendo-o ligeiramente. Terminou de comer depressa e tratou de vestir sua armadura e capa, calçar as botas e cingir a espada, aprumando-se para suas tarefas diárias; desceu as escadas degrau por degrau, concentrado apenas em não tropeçar.
Aquele dia foi um verdadeiro teste de resistência. Arthur correu por sobre as ameias, vagou demoradamente pelas antigas galerias e revirou cada profunda cela e masmorra da venerável fortaleza. Não sabia bem o que procurava; mais tentava não encontrá-lo, o que quer que fosse. Um som persistente o perseguia, contudo, como se atravessasse as paredes no afã de se fazer ouvir: um ruído constante e indecifrável, como uma sinfonia de sussurros, gemidos e arrastar de pés. Os malditos ratos de novo, ele repetia para si mesmo, e avançava para o próximo cômodo. Malditos ratos. Mas o pior veio quando a lua começava a se erguer no céu: das ancestrais florestas negras que o cercavam, o guerreiro viu surgir uma nuvem luminosa que lentamente subiu até tomar um lugar de destaque entre as estrelas, como que em uma mímica deturpada do esplendor angélico; essa nuvem então tomou forma humana, um espectro de longos cabelos escuros e vestido de maneira exótica, pairando imponente sobre a vastidão desconhecida.
- Não adianta fingir, não haverá final feliz, estou vivo e a escuridão é minha ferramenta... - cantou o espectro, sua voz zombeteira ecoando pelo firmamento, clara como o relâmpago.
Impotente diante daquela cena patética, o homem fugiu para seus aposentos, buscando no conforto da cama a bênção do esquecimento. Mesmo com o ruído persistente avolumando-se pelas paredes ao seu redor, agora ainda somado ao som de nuvens negras que trovejavam cada vez mais próximas, ele repetia para si próprio que havia cumprido suas tarefas, que havia sobrevivido mais um dia protegendo o reino e seu Senhor; que isso era sua missão sagrada. A última coisa que pensou antes de dormir, no entanto, foi que durante todos os seus anos de guarda na fronteira ele jamais vira um rato pelos corredores.
Arthur acordou no meio da madrugada e imediatamente se pôs de joelhos, como se ainda dentro de um pesadelo, para enunciar seu juramento. Eu sou um guerreiro da Marca, e... Mas o ímpeto de suas palavras subitamente se desfez quando ele sentiu as gotas escorrendo por seu rosto. Meu dever é proteger esta fronteira, forçou-se a continuar, seu corpo tremendo incontrolavelmente sob a fúria da tempestade que invadia sua câmara; do perigo da Guerra, o barulho das venezianas chocando-se contra o batente da janela, que ele tantas vezes trancara, misturava-se ao ribombar dos trovões quase que harmonicamente, como se intencionalmente trabalhassem para o desespero do guerreiro; até que meu senhor me dispense, e a comida novamente sobre a mesa, novamente sem ninguém lá para pô-la; ou a morte reclame minha alma, mas o pão estava podre, o pão estava podre e a janela estava aberta, e o vinho cheirava a cobre. Ele respirou fundo, cerrou os punhos e reuniu o que restava de suas forças; então tratou de vestir sua armadura e capa, calçar as botas e cingir a espada, lutando para se recordar de suas tarefas diárias; fugiu desabalado pelas escadas, tropeçando e se levantando sem nem sentir. 
Aquele dia foi o inferno. Entre a potência das forças da natureza decididas a derrubar a decrépita fortaleza e a orgia demoníaca dos ratos invisíveis vindos sabe-se lá de onde, Arthur sentiu-se minúsculo e sozinho. O aço em seu cinto enferrujado e sem fio, seu mundo se desconstruindo em uma ruína amorfa. Lembrar-se-ia com clareza, apenas, da visão que teve quando a lua começava a se erguer no céu: mais uma vez, das opressivas florestas circundantes surgiu um espectro, agora na forma de um homem de cabelos louros e peito nu, que cantava com uma voz obscenamente feminina. 
- A taça está erguida, o brinde está feito mais uma vez; uma voz é clara acima do barulho... - foi o que o guerreiro ouviu, e então o nada.

Arthur acordou com o sol do meio-dia incidindo diretamente sobre seus olhos. Seu corpo todo doía e qualquer mínimo movimento lhe era difícil, mas sua atenção se focou na primeira coisa que viu ao livrar-se da névoa do sono: a profunda imensidão azul de um céu sereno e sem nuvens. Pela primeira vez em muito, muito tempo, não pensou em deveres ou sacralidades; apenas pôs-se de pé, cuidadosamente, analisando sem pressa a calmaria do mundo: a brisa gentil vinha das árvores, das colinas infinitas, que agora pareciam vivas e alegres; foi então que ele percebeu que de alguma forma desmaiara ao relento, do lado de fora dos portões.
- Precisa de ajuda, companheiro? - uma voz, rouca mas afável, surgiu então às suas costas; ele se virou rapidamente para se deparar com um ancião encurvado sobre um cajado.
O instinto se reacendeu em um instante, e Arthur inconscientemente levou a mão à empunhadura de sua espada; sentia, entretanto, como se segurasse um mero pedaço de latão.
 - Não há necessidade de violência, meu amigo. - o velho se defendeu, sem qualquer mudança em sua expressão ou tom de voz. - Eu sou apenas um viajante explorando as ruínas, não tenho intenção de danificar nada.
Aquela resposta apenas fez brotar mais dúvidas na mente do guerreiro, e ele vacilou; um olhar rápido ao redor revelou uma paisagem que fazia menos sentido do que os acontecimentos dos últimos dias: pilhas de pedras gigantescas cobertas de musgo e vinhas, de um lado; do outro, uma inumerável multidão de espectros observando-o pacientemente; e aquele homem misterioso a encará-lo com olhos de quase piedade. Frio, sua mente lhe aconselhou, mesmo com um ar morno e primaveril a tocar seu rosto; e ele agarrou-se com mais força ao punho de sua arma.
- Enquanto durar a Guerra, ninguém pode passar daqui sem permissão do Rei. - declarou, sem ter absolutamente nada mais a dizer.
- Guerra? - o ancião ergueu as grossas sobrancelhas brancas, parecendo genuinamente surpreso. - Meu filho, de que guerra você fala? Você é muito jovem... Esta fortaleza caiu quando eu ainda era menino!
Naquele momento, todos os sons calaram exceto um. Arthur pôde ouvir com clareza, ecoando em seus ouvidos, os murmúrios dos ratos, e finalmente entendeu de que se tratavam. Risos. Todos os espectros ao seu redor, centenas, milhares, todos unidos em uma gargalhada grotesca; e, em meio ao barulho ensurdecedor, um daqueles fantasmas subiu mais alto que os demais, e cantou com uma voz como areia e cola.
- Como você se sente? De estar sozinho, sem rumo para casa, como um completo desconhecido? Como uma pedra rolando?
Por um instante, Arthur sentiu toda a sua força abandonar seu corpo; estava à beira de um precipício, na ponta dos pés, e já quase não conseguia mais manter o equilíbrio. Precisou buscar dentro de si, dentro de suas memórias mais profundas, o ímpeto para resistir.
- Meu jovem, você... - foram as últimas palavras que o maldito velho disse.
A reação de Arthur foi instantânea. Seu aço, subitamente vivo, subitamente afiado como se recém forjado, cortou ar e carne; sangue jorrou; e os espectros se calaram. Ele então se pôs de joelhos, ainda não totalmente ciente do que fazia, para enunciar seu juramento. Eu sou um guerreiro da Marca, e meu dever é proteger esta fronteira do perigo da Guerra até que meu Senhor me dispense ou a Morte reclame minha alma. Somente então se ergueu e caminhou, a passos largos, de volta para a segurança de sua poderosa fortaleza; comeu depressa e se aprumou para suas tarefas diárias.