Pelos 87 anos de sua vida, Elizabeth Morgan mantivera um segredo, silenciosa em sua casinha próxima às docas de Woolwich. Foi apenas pela ocasião de sua morte e da imediata ação da polícia que alguns velhos papéis guardados como herança de família foram por acaso encontrados e então levados a público. Entre muitos jornais e alguns documentos de pouco valor, o que mais chamou a atenção da imprensa foi um tomo de pouco mais de 500 páginas parcialmente deterioradas: um diário que outrora pertencera ao tataravô da falecida, o missionário Thomas Gibson Morgan. Tão logo soube da descoberta, o neto de Elizabeth, George, apressou-se em reclamar a posse das relíquias e as oferecer a museus dispostos a adquiri-las; entretanto, logo a totalidade de seu conteúdo vazou, e hoje é tema de discussão em fóruns da internet sobre assuntos que vão de inócuas aspirações de arqueólogos amadores a teorias conspiratórias das mais imaginativas.
Thomas, autor do diário, tivera seus quinze minutos de fama ainda em vida. Em 1797, então com apenas vinte e dois anos, ele foi um dos dezessete enviados pela London Missionary Society ao Taiti, liderados por Henry Nott, a bordo do The Duff. O navio levou um ano para voltar à Inglaterra e, quando novamente carregado e seguindo à ilha, foi capturado por marinheiros franceses, à época em guerra com os britânicos. Durante os cinco anos de espera por suprimentos, coisas terríveis aconteceram aos membros da empreitada, e poucos conseguiram dar continuidade à missão. Foi então que o jovem missionário sumiu de todos os registros históricos, apenas para reaparecer quase 30 anos depois.
Em fevereiro de 1826, os habitantes de Lahaina, então capital do reino do Havaí, viram chegar a seu litoral um estranho caucasiano, envelhecido e cansado, remando uma tradicional canoa polinésia. A situação foi tão atípica que o estrangeiro foi recepcionado pela própria Kaahumanu, rainha regente e madrasta do rei Kamehameha III; mas logo foi acolhido pelos missionários cristãos presentes na cidade, e se descobriu que era, de fato, Thomas Gibson Morgan.
Ainda antes do fim do ano, conseguiu voltar a Londres, onde houve certo alarde sobre seu misterioso desaparecimento; mas Morgan nunca comentaria nada a respeito. Viveria mais muitos anos, casado e cercado de filhos, nenhum deles se atrevendo a perguntar sobre a lacuna na vida de seu pai: uma vida pacata na mesma casinha próxima às docas de Woolwich onde sua tataraneta agora morria.
A descoberta do diário traz uma possível solução para o grande enigma, ainda que alguns outros menores sejam levantados. O lugar onde o missionário passara 29 anos de sua vida deveria ser, pela lógica, alguma ilha entre a Polinésia Francesa e o arquipélago do Havaí. “Muito possivelmente”, como sugeriu o professor Black, Ph.D. em geografia pela UCL, “uma das Espórades Equatoriais”. Isso faria de Morgan um pioneiro, senão um descobridor de terras; mas essa hipótese esbarra num problema: apesar de o diário remeter ostensivamente a contatos com nativos, a arqueologia oficial desconhece qualquer ocupação daquelas ilhas nos últimos séculos. Enquanto, portanto, a maior parte da comunidade científica considera o diário do missionário um mero exercício de literatura, alguns poucos como o professor Black seguem confiando na (e buscando provas condizentes com a) veracidade do relato.
De uma forma ou de outra, Morgan o escreveu na forma de um simples diário pessoal, talvez para se manter são durante os anos de espera no Taiti pelo retorno do navio com os suprimentos. As primeiras páginas descrevem o desespero de seus companheiros, tendo alguns desertado, outros morrido, alguns mesmo ficado loucos.
Logo vem a descrição de sua partida da ilha numa canoa, sozinho e com poucas provisões. Por alguns dias ele teria viajado, sem rumo definido; segundo suas próprias palavras, “só sabia que estava muito ao sul de casa, portanto deveria ir para o norte”. Acabou por chegar a uma ilha, “uma pequena ilha, bem menor que a do Taiti”, que tinha “uma larga lagoa em seu interior”. Ali teria sido bem recebido pelos nativos, sendo considerado um mensageiro dos deuses e recebendo muitos presentes e um lar.
Com a simpatia dos líderes locais, Morgan teria aprendido muito sobre sua sociedade e seus costumes, além de obter privilégios a que nenhum outro habitante poderia ter acesso. “A língua deles”, escreveu o missionário, “é, segundo consegui apreender de um dos chefes, um idioma antigo, que eles não criaram; antes o assimilaram de alguma poderosa cultura anterior, e o tratam com muita reverência”. Seguem então algumas palavras e frases que os nativos lhe teriam ensinado e ele tentara transcrever baseado na fonologia inglesa.
Contudo, conforme foi aprendendo mais sobre o idioma e os costumes do povo da ilha, o inglês recontou haver notado uma característica peculiar daquela sociedade. “(...) existe algum tipo de feitiçaria, ou tradição, muito importante para eles... (aí se segue um borrão ininteligível)... Como já disse, existem dois povoados. Mas as pessoas de um deles, mesmo os líderes, só podem se encontrar com as do outro sob condições muito específicas. E mal conseguem se comunicar. Eu só percebi isso porque me deixam transitar livremente”. Esse tal “comportamento”, explicado em mais detalhe nas páginas subseqüentes, seria mais bem definido como o que hoje chamamos de tabu: entretanto, no caso dessa tribo, seria algo muito mais profundo e importante nas relações entre os membros.
“Eles o chamam”, eventualmente adicionou Morgan, “de kow-rah (escrevo esta palavra de acordo, tanto quanto me é possível, com a pronúncia inglesa). É um conjunto de regras sobre absolutamente tudo, não apenas sexo e morte, enfim, as coisas que nós, ocidentais, consideramos profanas. E, como não podem falar a respeito, vários eufemismos surgiram para as coisas mais banais; mas estes não são compartilhados entre as aldeias, pois nasceram de forma íntima, quase obscena, dentro das casas e entre os vizinhos mais próximos (?) (aqui há mais um borrão)... exatamente o mesmo idioma, e o preservando (ou “preservarem”) com todo o rigor, dificilmente conseguem se entender com pessoas da aldeia ao lado”. Além disso, quis alguma ironia do destino (ou a mente exageradamente criativa do missionário britânico) que alguns desses eufemismos fossem exatamente iguais nas duas aldeias, porém representando “kow-rah” diferentes. É assim no relato do nativo que “aos prantos contou a seus amigos do outro povoado sobre a morte da esposa no ritual de pular de uma alta plataforma de madeira, dizendo que ela ‘teve a noite entre seus dedos’, e eles tiveram de segurar o riso, tendo imaginado a mulher se masturbando”; e também na história da “senhora que, depois de casar pela segunda vez, disse ao marido, chefe da aldeia vizinha, ter ‘jogado flores ao mar’, por ter esquecido o relacionamento anterior e querer se dedicar totalmente ao novo, e levou uma surra do companheiro por este pensar que ela havia errado a ordem das oferendas no templo”.
Ainda em relação a esse assunto, em um ponto posterior do diário, Morgan descreveu suas tentativas de convencer os chefes a criar um código para esquematizar os “kow-rah” e assim facilitar a comunicação. “Mas eles não me ouvem. ‘Você pode conhecer todas as palavras de kow-rah’, me disse o chefe da aldeia norte, ‘porque veio dos deuses. Mas eles da outra aldeia não podem conhecer nossas palavras de kow-rah, nem nós podemos conhecer as deles’. ‘Por que não?’, eu perguntei, e o chefe me olhou com uma expressão de espanto, como se a resposta fosse a coisa mais óbvia do mundo. ‘Porque é kow-rah.’, ele disse, e não consegui arrancar mais nada dele”.
Finalmente, após descrições minuciosas de sua vida durante todos os anos na ilha, o diário do missionário Morgan chega ao fim com sua partida, tomando uma canoa dos nativos e seguindo ainda mais ao norte, indo parar no Havaí. Suas últimas palavras escritas foram “e esse há de ser meu segredo para sempre”.
Ainda muito estudo há de ser feito antes de se atestar ou desmentir a autenticidade das páginas escritas pelo antepassado da falecida senhora Elizabeth. Os trechos borrados e ilegíveis precisam ser restaurados, se possível; e já há interessados em estender o empenho arqueológico naquela região do Pacífico em busca de respostas. O professor Black segue confiante. “Tenho a mais absoluta certeza”, disse ele, “de que, com um pouco de esforço e abdicando de nossos preconceitos, podemos fazer uma descoberta histórica de considerável importância”.
Infelizmente para aqueles preocupados com o mistério, as pesquisas dificilmente poderão ter prosseguimento. A maioria das ilhas das Espórades Equatoriais, exatamente por seu isolamento, são protegidas como santuários de vida selvagem, e a presença humana nelas é restrita; além disso, sendo os detalhes geográficos presentes no diário muito vagos, poderia demorar anos até que se estabelecesse o lugar mais provável onde Morgan teria vivido sua aventura. Enquanto, portanto, alguns poucos como o professor Black seguem confiando na (e buscando provas condizentes com a) veracidade do relato, a maior parte da comunidade científica considera o diário do missionário um mero exercício de literatura.