Ela era estranha, pra dizer o mínimo. Eu lembro bem do vestido azul escuro, fluido como uma túnica, contrastando com a pele branca daquele corpo quase anoréxico; o cabelo vermelho, na luz baixa da festa, parecendo uma pintura fauvista de tão antinatural; e aqueles olhos verde-limão, desbotados e grandes, muito grandes praquele rosto tão… Frágil, acho que é a palavra. Mas naquela noite mesmo eu fiquei sabendo que ela era ruiva natural: foram dois “ois” meio bêbados, um instante curto de silêncio e quando eu vi ela já tava me puxando pelo braço; não sei pra onde eu fui, como eu fui, mas eu fui. Eram aqueles olhos. Em cima da cama, em cima dela, era só pra eles que eu conseguia olhar.
A nossa relação foi se construindo com base nisso: esses silêncios desajeitados que se resolviam sempre com dois segundos de olhar. Evidente que nós dois tínhamos cada um ideias completamente diferentes do que aquilo significava na hora, mas eu me tranquilizava na serenidade dela e não fazia perguntas. Enquanto a paixão durou, os detalhes mais bizarros e sem motivo só me deixavam mais interessado; tudo o que ela não dizia soava super eloquente na minha cabeça. Não sei o que eu esperava, mesmo.
Ela era húngara; isso esclarecia muita coisa, já. Claro. Todas as húngaras têm cabelo vermelho-sangue e olhos gigantes. Eu até hoje nem imagino como ela veio parar no Brasil…
Uma época eu tive certeza de que ela não era humana. Esqueci de dizer antes: ela adorava ler sobre extraterrestres e Atlântida e essas coisas. Fazia todo sentido, oras. Ela só podia ser uma princesa atlante que sobreviveu ao apocalipse, viveu numa espaçonave por milênios orbitando a Terra (porque, viajando-se próximo da velocidade da luz, o tempo passa mais devagar), e desceu no século XXI porque… Sei lá, pra ficar comigo ou pra estudar a sociedade atual ou nem sei. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra; ela não falava da família nem da Hungria, mal falava do trabalho…
Na real, ela quase não falava. O nosso amor era uma coisa prática, de momento; cada segundo que passava vinha com uma saudade do anterior, dum toque ou dum sorriso ou dum olhar, e assim ia. Mas eu sou um cara romântico, porra. O que a gente fazia junto era só as coisas cotidianas, o mais básico de um relacionamento (tenho que desenhar?); e eu ficava sempre na expectativa de mais. Eu lia poesias pra ela, cantava músicas sobre olhos de esmeralda e cabelos de fogo (tem várias), fazia surpresas… Ela, quando muito, ria um riso meio envergonhado e sem som. Com o tempo isso foi começando a me preocupar, e eu não conseguia saber nem por quê. Sempre achando que um dia ela ia se render, se desatar em choro, me contar alguma história de vida horrível e dormir encolhida nos meus braços. Eu inventava mil cenários de como isso iria acontecer, fazia planos e tudo; uma hora tinha que acontecer.
Mas, né?, nunca aconteceu. Um belo dia, quando eu escrevia o segundo capítulo de um romance que eventualmente teria sido dedicado a ela (sobre dragões, viagens no tempo e aliens que falavam proto-urálico), ela sumiu. Assim, tipo, desapareceu. Não deixou um bilhete, não se despediu, nada; simplesmente não tava mais na cama quando eu acordei. E nunca mais nos vimos.
Foi curto, no fim das contas. Alguns amigos meus, os que não tiveram muito contato comigo nesses meses, até nem acreditam que ela existiu; o que é tão engraçado quanto assustador. Outros, felizmente, chegaram a nos ver juntos; mas os conselhos e comentários desses às vezes são ainda piores. Um certo cidadão, por exemplo, uma vez me perguntou se a guria era mesmo tão estranha ou se na verdade eu que não conseguia me conectar com ela. Essa pergunta me tirou umas boas noites de sono.
Mas o que me dói mais hoje não é pensar no que a gente viveu junto; porque, pra ser sincero, não teve lá muita coisa. A lembrança daqueles dois poços enormes (será que eram tão grandes, mesmo?), daquele silêncio da cor do mar, hoje não me diz mais nada. Isso de sentimento, sei lá, ou se acabou ou nunca existiu… O que me incomoda é o “nosso” futuro: todas as projeções que eu fiz, sozinho, enquanto planejava uma serenata ou coisa assim. Tanto que eu construí pra preencher os vazios que isso agora é parte de mim. Na minha cabeça, enquanto não cai a ficha, é como se o que ia acontecer (ou o que eu queria que acontecesse) ainda fosse; como se eu vivesse duas vidas paralelas, sabendo que uma hora, algum dia, cada uma vai dobrar pra um lado e terminar me rasgando ao meio.
Quem sabe um dia ela volta…