Palmo a Palmo

Dorme sem sangue e sem dor
Depois de escorrer das janelas
Latejando pelas vielas
Descansa nos subsolos
Aninhada entre os tijolos
Onde talvez te sintas segura

Eu te procuro nas rachaduras
Nos cantos sem sombra e sem luz
Aonde minha sede conduz
Nos despertares repentinos:
Tortas catedrais sem sinos
Esqueletos de carne e cimento
Torres balançando ao vento
Em esquinas de sonhos vadios

A cidade és tu nos meus olhos vazios
O câncer morno que me bate à porta
Que enquanto mata, conforta
Corta e já lambe as feridas
Suprindo de sobrevidas
Minhas manhãs sem sono nem cura

Eu te procuro nas fechaduras
Do lado de lá dos abismos
Nas cismas de proselitismos
E no cair de cada eterno muro
Minhas mãos ainda teimam, no escuro
Em esculpir no ar tua imagem viva
E eu levo sempre na minha saliva
O gosto da pele dos teus quadris

A cidade és tu nos meus olhos febris
Que palmo a palmo vão tateando
Palmo a palmo vão te devorando
Por entre bocas entreabertas
Da tua larga alma deserta
Sem medo nem chão nem pudor

*

Dorme sem sangue e sem dor
Depois de escorrer das janelas
Latejando pelas vielas
Descansa nos subsolos
Aninhada entre os tijolos
Onde talvez te sintas segura

Ars Amatoria

Outro dia, vagando pelos confins menos iluminados da internet, eu tomei conhecimento de uma prática japonesa interessantíssima chamada nyotaimori, que consiste basicamente em se servir sushi sobre o corpo de uma mulher nua. Ok, a noção pode ser um pouquinho difícil de digerir pro nosso paladar ocidental, então eu vou repetir de forma mais delicada: no Japão, existem pessoas que se fazem de bandeja pra outras; tomam um banhinho, deitam sobre uma mesa, têm então a comida disposta sobre o corpo e daí esperam por horas, sem se mover, enquanto os clientes (?) fazem sua refeição . É uma coisa, quer dizer, tem até um nome pra isso (e eu acredito que a expressão “body sushi”, com todo o pragmatismo plástico do inglês, não faça muito jus à ideia).
Não que eu esteja em posição de julgar ninguém; nem é minha intenção, e perdão se eu soei muito puritano. O que me chamou a atenção ao pesquisar o assunto, na verdade, foi um detalhezinho que eu percebi no artigo da wikipedia: o nyotaimori é categorizado concomitantemente como fetiche sexual e forma de arte; e, se isso não tem em si nada de essencialmente errado (nenhuma criança lê meu blog, né?), eu não pude evitar parar por um momento pra refletir sobre as duas categorias.
Arte e sexo (e moda e culinária e turismo e trabalho e…) têm passado por um longo e intenso processo de redefinição (ou des-definição, como queiram) faz pelo menos um meio século, isso é fato. Tabus são quebrados diariamente, talvez só pelo prazer de quebrá-los; como já é notório, é difícil estabelecer com certeza o que é o quê nesta nossa civilização pós-tudo. Acaba que qualquer coisa pode ser considerada performance artística, qualquer coisa pode ser a tara de alguém; aliás, com sete bilhões de nós por aí, acho que é seguro dizer que qualquer coisa vai ser considerada uma performance artística e uma tara por alguém em algum momento (quiçá pela mesma pessoa). É engraçado, mas se a gente tentasse estabelecer limites objetivos mínimos pra definir arte e sexo, poderia muito bem dizer que são literalmente a mesma coisa: formas de usar o corpo que transgridem normas de comportamento e não possuem uso prático (em termos de convívio em comunidade) direto. A única diferença é extremamente subjetiva: os sentimentos e intenções dos envolvidos. E é exatamente aí que eu quero chegar.
Qualquer criatura neste mundo (não-humanas inclusas) tem pelo menos alguma noção do que a, digamos, estimula, ainda que subconsciente; quer dizer, ainda que não admita a si mesma. Portanto, quando um homem vai a uma prostituta e pede pra só vê-la tirando a roupa, ou pra ser chicoteado por ela, ou pra que ela coma paçoca e lhe jogue as migalhas na cara (só um exemplo, gente), ele tá fazendo sexo; ela tá só cumprindo mais um dia de labuta, surreal e muito possivelmente nem um pouco gratificante. Questões sociais pertinentes à parte, o caso é que ambos se permitem definir a situação a partir de sua própria perspectiva; e nós, analisando o caso de fora, conseguimos tranquilamente compreender ambas. Agora, pensemos na arte: o mesmíssimo cenário (a nudez, as chicotadas, a paçoca) poderia muito bem ser visto como um espetáculo, desde que nos fosse apresentado como tal; ninguém atribui o rótulo de “arte” a nada sem uma sugestão prévia de um “artista”, e os critérios que utilizamos pra atribuir ou não esse rótulo (isso sem nem entrar no mérito do significado) são todos externos a nós. Claro que tem uma estrutura profunda e bem lucrativa em torno desse processo (até porque o sujeito precisa ser legitimado como artista por alguma “autoridade” antes de se tornar uma autoridade ele próprio, num ciclo vicioso fechado), que aqui tá muito simplificada; mas, de um ponto de vista individual, a definição da arte é realmente feita de forma passiva. Numa analogia de volta ao sexo, é como se um cara aleatório chegasse pra nós com um sashimi pendurado na jeba e a reação socialmente aceita fosse ficar excitado sem discutir.
De repente é só mais um tabu a ser quebrado. Longe de mim querer reviver o Freud, mas talvez o impulso criativo seja mesmo libidinoso na origem. Quem sabe ele próprio não tenha sentido um certo tesão em escrever o que escreveu, na época coisas tão escandalosas? Ninguém tem hoje como saber. A pretensa “sacralidade” das diversas formas de expressão humana é o que faz com que sejam regulamentadas, hierarquizadas; ainda que simule em detalhes gráficos o coito propriamente dito, a arte mantém a aura de “arte”: distante, self-fulfilling, “oficial”. Impenetrável, com o perdão do trocadilho. A expressão sexual, em comparação, só se tornou livre (ignorando-se, é claro, os eventuais Bolsonaros da vida) a partir do momento em que as pessoas pararam de pensar em como o sexo “deveria” ser feito e passaram a simplesmente fazer: assim, na prática, sem pretensão, tomaram pra si o direito de estabelecer a sua definição pessoal de sexualidade. Talvez falte na arte, na nossa acepção mesmo do que é arte, um contato mais íntimo entre os “praticantes”: uma relação menos de reverência e mais de cumplicidade, de troca mútua; de promiscuidade, até.
Ou seja, um pouquinho mais de sacanagem. Obrigado, boa noite, não esqueçam da camisinha.

Saudades Futuras

Ela era estranha, pra dizer o mínimo. Eu lembro bem do vestido azul escuro, fluido como uma túnica, contrastando com a pele branca daquele corpo quase anoréxico; o cabelo vermelho, na luz baixa da festa, parecendo uma pintura fauvista de tão antinatural; e aqueles olhos verde-limão, desbotados e grandes, muito grandes praquele rosto tão… Frágil, acho que é a palavra. Mas naquela noite mesmo eu fiquei sabendo que ela era ruiva natural: foram dois “ois” meio bêbados, um instante curto de silêncio e quando eu vi ela já tava me puxando pelo braço; não sei pra onde eu fui, como eu fui, mas eu fui. Eram aqueles olhos. Em cima da cama, em cima dela, era só pra eles que eu conseguia olhar.
A nossa relação foi se construindo com base nisso: esses silêncios desajeitados que se resolviam sempre com dois segundos de olhar. Evidente que nós dois tínhamos cada um ideias completamente diferentes do que aquilo significava na hora, mas eu me tranquilizava na serenidade dela e não fazia perguntas. Enquanto a paixão durou, os detalhes mais bizarros e sem motivo só me deixavam mais interessado; tudo o que ela não dizia soava super eloquente na minha cabeça. Não sei o que eu esperava, mesmo.
Ela era húngara; isso esclarecia muita coisa, já. Claro. Todas as húngaras têm cabelo vermelho-sangue e olhos gigantes. Eu até hoje nem imagino como ela veio parar no Brasil…
Uma época eu tive certeza de que ela não era humana. Esqueci de dizer antes: ela adorava ler sobre extraterrestres e Atlântida e essas coisas. Fazia todo sentido, oras. Ela podia ser uma princesa atlante que sobreviveu ao apocalipse, viveu numa espaçonave por milênios orbitando a Terra (porque, viajando-se próximo da velocidade da luz, o tempo passa mais devagar), e desceu no século XXI porque… Sei lá, pra ficar comigo ou pra estudar a sociedade atual ou nem sei. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra; ela não falava da família nem da Hungria, mal falava do trabalho…
Na real, ela quase não falava. O nosso amor era uma coisa prática, de momento; cada segundo que passava vinha com uma saudade do anterior, dum toque ou dum sorriso ou dum olhar, e assim ia. Mas eu sou um cara romântico, porra. O que a gente fazia junto era só as coisas cotidianas, o mais básico de um relacionamento (tenho que desenhar?); e eu ficava sempre na expectativa de mais. Eu lia poesias pra ela, cantava músicas sobre olhos de esmeralda e cabelos de fogo (tem várias), fazia surpresas… Ela, quando muito, ria um riso meio envergonhado e sem som. Com o tempo isso foi começando a me preocupar, e eu não conseguia saber nem por quê. Sempre achando que um dia ela ia se render, se desatar em choro, me contar alguma história de vida horrível e dormir encolhida nos meus braços. Eu inventava mil cenários de como isso iria acontecer, fazia planos e tudo; uma hora tinha que acontecer.
Mas, né?, nunca aconteceu. Um belo dia, quando eu escrevia o segundo capítulo de um romance que eventualmente teria sido dedicado a ela (sobre dragões, viagens no tempo e aliens que falavam proto-urálico), ela sumiu. Assim, tipo, desapareceu. Não deixou um bilhete, não se despediu, nada; simplesmente não tava mais na cama quando eu acordei. E nunca mais nos vimos.
Foi curto, no fim das contas. Alguns amigos meus, os que não tiveram muito contato comigo nesses meses, até nem acreditam que ela existiu; o que é tão engraçado quanto assustador. Outros, felizmente, chegaram a nos ver juntos; mas os conselhos e comentários desses às vezes são ainda piores. Um certo cidadão, por exemplo, uma vez me perguntou se a guria era mesmo tão estranha ou se na verdade eu que não conseguia me conectar com ela. Essa pergunta me tirou umas boas noites de sono.
Mas o que me dói mais hoje não é pensar no que a gente viveu junto; porque, pra ser sincero, não teve lá muita coisa. A lembrança daqueles dois poços enormes (será que eram tão grandes, mesmo?), daquele silêncio da cor do mar, hoje não me diz mais nada. Isso de sentimento, sei lá, ou se acabou ou nunca existiu… O que me incomoda é o “nosso” futuro: todas as projeções que eu fiz, sozinho, enquanto planejava uma serenata ou coisa assim. Tanto que eu construí pra preencher os vazios que isso agora é parte de mim. Na minha cabeça, enquanto não cai a ficha, é como se o que ia acontecer (ou o que eu queria que acontecesse) ainda fosse; como se eu vivesse duas vidas paralelas, sabendo que uma hora, algum dia, cada uma vai dobrar pra um lado e terminar me rasgando ao meio.
Quem sabe um dia ela volta…