A pior coisa deste mundo é se arrepender de um
desejo. Sério, a gente luta uma vida pra conseguir o que quer, e quando
consegue vê que tudo não valeu um milésimo do esforço. Seria melhor ter deixado
tudo na imaginação. Quando eu era pequena, me ensinaram que em algum lugar eu
ia encontrar um príncipe, um castelo, todo um conto de fadas construído só
pra mim; apesar disso, ao longo da vida eu me acostumei com a ideia de que só o
que existe lá fora é caos, e que eu teria que aprender a me aproveitar disso
pra sobreviver; e quando eu finalmente descobri que tinha estado errada esse
tempo todo, bom... Acho que eu passei a sentir falta do caos.
A revelação não foi nada de épico ou monstruoso, nem
aconteceu de uma hora pra outra. Começou com um encontro um pouco constrangedor
no metrô, às três horas da manhã; um desses pequenos momentos inusitados da
vida, uma coisa que eu talvez pudesse ter esquecido completamente depois
de chegar em casa. Talvez. Foi com um homem, acho que um executivo ou
coisa parecida: um cara de meia-idade, vestindo um bom terno e carregando
uma maleta. O estereótipo encarnado do “cidadão de bem”. Pensando agora
com os meus botões, é meio engraçado um executivo pegar o metrô.
Sentei mais ou menos em frente a ele,
e notei que ele ergueu os olhos pra me espiar. Pouca gente pega o metrô no
meio da madrugada, e aquela noite tava particularmente vazia; tentei me
distrair brincando com a correntinha do meu medalhão. Não sei quantos minutos
se passaram nisso.
- A leitura de mão é 20 dólares, querido. - eu falei,
então, quando vi que ele não ia parar de me encarar. Não sei o que pode
ter mais chamado a atenção dele: o turbante, os brincos de pena, a maquiagem,
os anéis...
- Ah, perdão... - ele riu, um riso estranho pra alguém
que parecia tão sério; estranhamente ingênuo. Ou muito bem disfarçado. Hoje eu
tendo mais a acreditar na segunda hipótese. - Você é aquariana?
Aquela pergunta me pegou de surpresa. Não por ele
saber o meu signo (o meu medalhão tinha o símbolo de Aquário; podia ser por
causa da “Era de Aquário” e essa merda toda, mas... Não era), mas por ele
demonstrar interesse por esse tipo de coisa. Astrologia não deve ser o assunto
mais comum em escritórios de empresas.
- Sou, m... - e parei no meio da palavra. Me veio um
instinto inexplicável de ser honesta com o cara, mas eu me segurei. Por um
instante.
- Mas não acredita em nada disso, certo? - ele
gargalhou, mas sem deixar transparecer um pingo de deboche. - Eu entendo, a
imensa maioria das cartomantes, videntes, psicógrafos, são todos charlatães. E
o ceticismo é um traço típico dos aquarianos.
Eu fiquei um bom tempo olhando pra cara dele, menos
ofendida do que curiosa. Não conseguia desvendar aquele homem; o que ele
falava (e a forma como falava) e a aparência dele se contradiziam. E, sim, tudo
aquilo era a mais pura verdade.
- Eu tenho uma filha pra criar. Se as pessoas procuram
charlatães, por que eu deveria me sentir culpada? Eu faço o que elas me pedem,
elas me pagam, todo mundo fica feliz.
- Claro, claro... Não foi uma crítica, só um
comentário. - ele continuava rindo, da mesmíssima maneira. - Eu só
pensei que tinha finalmente encontrado alguém que acredita no sobrenatural.
Então eu tive que rir.
- Por quê? Você acredita?
- Menina - ele agora falava em um tom mais sério, quase um sussurro;
cruzou as mãos sobre a maleta e inclinou o corpo pra frente. -, eu acho que
tenho uns bons anos de experiência a mais que você. Eu já vi coisas. Já vivi
coisas. Eu poderia até... - aí ele fez uma pausa; olhou em volta, como se
de repente se sentisse atordoado. - Não, não, é uma ideia horrível.
Curiosidade também deve ser um traço típico dos
aquarianos.
- O quê? Poderia o quê?
- Você não acreditaria. Eu respeito isso. Não quero
ser inconveniente...
- Mas me fala, eu quero saber. Faz de conta que
eu acredito.
- “Faz de conta”... - agora o riso dele
tinha um quê de ironia. - Seria como provar um pouco do próprio remédio, não
seria? Você não tem muito a perder.
- É.
- Tudo bem. - largou a maleta sobre o banco, se
levantou e parou de pé no meio do corredor; me levantei também. - Um acordo.
- Acordo com o diabo?
- Faz de conta que sim. Eu ofereço uma, digamos, habilidade
especial...
- Em troca de...
- De um detalhe extra que pode ser um pouco
desagradável.
- Ok. Posso saber do que se trata?
- Sonhos premonitórios. Você vai poder ver o futuro...
- Eu sei o que é um sonho premonitório. - eu
já tava tão envolvida na história toda que queria pular direto pro
resultado, se fosse ter um. - Qual é o detalhe desagradável?
Nesse ponto ele parou e só me observou por alguns
instantes. O olhar dele tinha uma mistura estranha de malícia e inocência, como
se quisesse desafiar minha descrença e ao mesmo tempo se preocupasse com
ele. Com certeza ele era um ótimo ator.
- Os sonhos - ele recomeçou, falando devagar enquanto
coçava o queixo. -, veja bem, não vão ser frequentes, de forma que você
dificilmente vai poder fazer dinheiro com isso. Eles devem vir esporadicamente,
raramente até. A condição extra é que você nunca possa saber quais deles
são realmente proféticos e quais são simplesmente fantasias da sua cabeça.
Logo que ele falou eu juro que achei o “poder” um
pouco decepcionante. Deveria ter sido motivo suficiente pra eu negar a oferta;
mas eu não ia me perdoar se tivesse gasto aquele tempo todo pra nada. Se
arrependimento matasse...
- Qual é o preço?
- Esse é o preço. Viver as consequências de um
talento tão especial. Você aceita?
- Isso é uma pegadinha? Qual é o truque?
- Sem truques. Eu expliquei o pacto em todos os
detalhes possíveis. Você aceita?
- O que você ganha com isso?
- Você faz perguntas demais pra quem não tem nada a
perder. O acordo é esse. Você aceita?
- Aceito. - respondi, apertando a mão do homem
misterioso, sem ter certeza se queria ou não que aquilo tudo fosse real.
Nada aconteceu de imediato; nenhum flash de luz, nenhuma
gargalhada demoníaca, nada. Simplesmente nós sentamos de volta e tentamos
ignorar o silêncio desconfortável até o fim da linha. Descemos juntos, mas
quase sem olhar um pro outro.
- Pra que você se lembre. - foi a última coisa que ele
me disse, antes de me entregar uma estatuazinha de um gato com uns símbolos
chineses ou japoneses desenhados; e então seguiu na direção oposta à minha, e
nunca mais nos vimos de novo.
Por muito tempo ainda, a minha vida seguiu normalmente.
Claro, eu realmente não consegui esquecer aquela noite: eu costumava ter uns
sonhos bem estranhos, e ver o gato sobre ao criado-mudo logo que abria os olhos
não era a experiência mais agradável do mundo; mas eu logo me acostumei. Acabei
criando um tipo de ligação com aquela coisa, um sentimento que não tem
explicação; eu tinha convencido a mim mesma de que o melhor seria jogar ele
fora logo que chegasse em casa, mas... Sei lá, no fundo eu ainda queria que
alguma coisa “especial” acontecesse, e a estátua sempre me lembrava de
algum dia ainda poderia acontecer.
Até que um dia aconteceu. Fazia uns cinco anos, mais
ou menos, que eu tinha me encontrado com o cara no metrô; e umas três semanas
antes eu tinha sonhado com a morte do meu sobrinho. Não tinha parecido nada de
anormal; meus pesadelos eram geralmente bem trágicos mesmo. Eu já tinha quase
esquecido dele quando minha irmã me ligou. Eu atendi deitada, eram umas cinco
da manhã, eu ainda tava meio tonta do sono; e enquanto eu tentava entender o que
a voz do outro lado da linha dizia no meio do choro todo e começava a
sentir o coração subindo pra garganta, tudo que eu via era o maldito gato,
a patinha levantada como que dizendo “ei, lembra? Lembra? Lembra?”...
O velório foi feito com o caixão fechado, porque os
pedaços do menino que conseguiram juntar pra pôr lá dentro não chegavam nem
perto de formar um corpo humano. Acidente de trânsito, exatamente como eu
previ; a única diferença é que no meu sonho ele tava de moto, e na vida real o
ônibus em que ele tava bateu de frente com um caminhão. Claro que isso não me
fez sentir melhor em nada.
Daquele dia em diante, eu tive que aprender a conviver
com uma realidade que eu não aceitava nem compreendia. As consequências de
um talento tão especial. Eu descobri o “sentido da vida”, por assim
dizer: descobri que existe uma ordem, talvez até um objetivo final, na nossa
existência; um plano maior. E, Deus, eu daria tudo que eu tenho pra poder
esquecer. Agora já não adianta jogar o gato fora; o olhar dele parece até de
pena...
Mas o pior de tudo não é simplesmente poder ver o futuro.
Não, o preço a pagar, a grande piada cósmica por trás da coisa toda, é não
entender o que eu vejo até o momento em que a visão se materializa na minha
frente. Cada pesadelo horrível e realista tem exatamente a mesma chance de
acontecer dos sonhos mais bizarros e surreais. E eu já sonhei tantas vezes com
a minha própria morte, tantas vezes, que eu quase desejo que isso vire
realidade logo.