Torre de Nada

Quantas vezes isso já aconteceu?
Quantas noites mal-dormidas
Vivendo não-vividas vidas
No escuro dos teus pensamentos?

E dias estudando os ventos
Frutos de mortas saudades
Ansiando por quaisquer verdades
Que por acaso quisessem brotar

Tijolo a tijolo de ar
Erguendo uma torre de nada
De pesadelos inflada
E de volúveis lembranças

Fazendo de vãs esperanças
Senhoras do teu juízo

Por que escravizar teu sorriso?
Por que render teu futuro
Aos devaneios, no escuro,
De vidas que nunca existiram?

Já muitos intentos ruíram
À beira de bifurcações
Esfíngicos, ocos leões
Tecidos em fumaça e medo

Porque o mais mudo segredo
Que te devora sozinho
É a pedra no teu caminho
Por ti mesma colocada:

Tuas aflições profiláticas
Tão influentes, dogmáticas
Alicerçadas em nada

Cenouras Invisíveis

A noite seguia graciosamente perfeita, como se houvesse sido minuciosamente ensaiada. Ele fazia piadas, ouvia com paciência as longas histórias da futura sogra, parecia totalmente confortável. Também havia amado a sua comida, o que poderia ter sido um ponto importante. A certo ponto do jantar, ela teve a certeza de que mesmo seu falecido pai o teria adorado.
 - Mas me conta, Owen... - sua mãe então se dirigiu ao rapaz, após o esvaecer de mais uma sessão de risadas, com tanta naturalidade quanto já o fazia desde a segunda taça de vinho; não tinha nenhuma questão específica em mente, pretendia apenas trazer um novo assunto qualquer à conversa. - Como que você virou astronauta?
 - É uma longa história. - sua voz era como o mar batendo contra a praia... Profunda, constante, quase hipnótica, mas ao mesmo tempo suave e agradável. - O meu pai era pescador em Dublin. Um dia, vocês vão até achar graça, ele saiu pra comprar cigarro e voltou trazendo uma daquelas TVs antigas à válvula; vocês conhecem?
 Naturalmente, ele já estava preparado para seguir seu pequeno conto, e a pausa não deveria ter durado mais que alguns segundos; quando, contudo, o silêncio se tornou incômodo, ele percebeu que algo estava errado. Ela sentiu o coração subir imediatamente à garganta, e tornou o olhar bruscamente para a mãe; esta mirava o chão, paralisada. Assim ficaram os três, congelados em uma cena de tensão quase palpável, por vários instantes.
 - O que houve? - ele perguntou, sussurrando, para ninguém em particular; sua confusão era sincera e evidente.
 - Eu acho - respondeu, não sem um tanto de hesitação, sua ex-futura sogra. - que é melhor você ir, Owen.
 Somente uma vez ele tentou entender, tentou procurá-la; foi necessário apenas mais um momento de amargo e frustrante silêncio para ele partir sem olhar para trás. Ela não procurou se explicar; não havia explicação. Foi melhor assim. Com certeza ele não demorou a encontrar um novo amor, menos complicada e possivelmente mais bonita e interessante.
 Já ela não teve escolha senão se acostumar à solidão. Aquela havia sido sua primeira e última tentativa de compartilhar sua intimidade com outra pessoa. Sua mãe a confortava sem palavras; e ela precisava se refugiar em desabafos desconexos e anônimos em um blog. Nem mesmo aos estranhos da internet, entretanto, se atrevia a se abrir totalmente.

Helena, a Meio-Vidente

A pior coisa deste mundo é se arrepender de um desejo. Sério, a gente luta uma vida pra conseguir o que quer, e quando consegue vê que tudo não valeu um milésimo do esforço. Seria melhor ter deixado tudo na imaginação. Quando eu era pequena, me ensinaram que em algum lugar eu ia encontrar um príncipe, um castelo, todo um conto de fadas construído só pra mim; apesar disso, ao longo da vida eu me acostumei com a ideia de que só o que existe lá fora é caos, e que eu teria que aprender a me aproveitar disso pra sobreviver; e quando eu finalmente descobri que tinha estado errada esse tempo todo, bom... Acho que eu passei a sentir falta do caos. 
 A revelação não foi nada de épico ou monstruoso, nem aconteceu de uma hora pra outra. Começou com um encontro um pouco constrangedor no metrô, às três horas da manhã; um desses pequenos momentos inusitados da vida, uma coisa que eu talvez pudesse ter esquecido completamente depois de chegar em casa. Talvez. Foi com um homem, acho que um executivo ou coisa parecida: um cara de meia-idade, vestindo um bom terno e carregando uma maleta. O estereótipo encarnado do “cidadão de bem”. Pensando agora com os meus botões, é meio engraçado um executivo pegar o metrô.
 Sentei mais ou menos em frente a ele, e notei que ele ergueu os olhos pra me espiar. Pouca gente pega o metrô no meio da madrugada, e aquela noite tava particularmente vazia; tentei me distrair brincando com a correntinha do meu medalhão. Não sei quantos minutos se passaram nisso.
 - A leitura de mão é 20 dólares, querido. - eu falei, então, quando vi que ele não ia parar de me encarar. Não sei o que pode ter mais chamado a atenção dele: o turbante, os brincos de pena, a maquiagem, os anéis...
 - Ah, perdão... - ele riu, um riso estranho pra alguém que parecia tão sério; estranhamente ingênuo. Ou muito bem disfarçado. Hoje eu tendo mais a acreditar na segunda hipótese. - Você é aquariana?
 Aquela pergunta me pegou de surpresa. Não por ele saber o meu signo (o meu medalhão tinha o símbolo de Aquário; podia ser por causa da “Era de Aquário” e essa merda toda, mas... Não era), mas por ele demonstrar interesse por esse tipo de coisa. Astrologia não deve ser o assunto mais comum em escritórios de empresas.
 - Sou, m... - e parei no meio da palavra. Me veio um instinto inexplicável de ser honesta com o cara, mas eu me segurei. Por um instante.
 - Mas não acredita em nada disso, certo? - ele gargalhou, mas sem deixar transparecer um pingo de deboche. - Eu entendo, a imensa maioria das cartomantes, videntes, psicógrafos, são todos charlatães. E o ceticismo é um traço típico dos aquarianos.
 Eu fiquei um bom tempo olhando pra cara dele, menos ofendida do que curiosa. Não conseguia desvendar aquele homem; o que ele falava (e a forma como falava) e a aparência dele se contradiziam. E, sim, tudo aquilo era a mais pura verdade.
 - Eu tenho uma filha pra criar. Se as pessoas procuram charlatães, por que eu deveria me sentir culpada? Eu faço o que elas me pedem, elas me pagam, todo mundo fica feliz.
- Claro, claro... Não foi uma crítica, só um comentário. - ele continuava rindo, da mesmíssima maneira. - Eu só pensei que tinha finalmente encontrado alguém que acredita no sobrenatural.
Então eu tive que rir.
- Por quê? Você acredita?
- Menina - ele agora falava em um tom mais sério, quase um sussurro; cruzou as mãos sobre a maleta e inclinou o corpo pra frente. -, eu acho que tenho uns bons anos de experiência a mais que você. Eu já vi coisas. Já vivi coisas. Eu poderia até... - aí ele fez uma pausa; olhou em volta, como se de repente se sentisse atordoado. - Não, não, é uma ideia horrível.
 Curiosidade também deve ser um traço típico dos aquarianos.
 - O quê? Poderia o quê?
 - Você não acreditaria. Eu respeito isso. Não quero ser inconveniente...
 - Mas me fala, eu quero saber. Faz de conta que eu acredito.
 - “Faz de conta”... - agora o riso dele tinha um quê de ironia. - Seria como provar um pouco do próprio remédio, não seria? Você não tem muito a perder.
 - É.
 - Tudo bem. - largou a maleta sobre o banco, se levantou e parou de pé no meio do corredor; me levantei também. - Um acordo.
 - Acordo com o diabo?
 - Faz de conta que sim. Eu ofereço uma, digamos, habilidade especial...
 - Em troca de...
 - De um detalhe extra que pode ser um pouco desagradável.
 - Ok. Posso saber do que se trata?
 - Sonhos premonitórios. Você vai poder ver o futuro...
 - Eu sei o que é um sonho premonitório. - eu já tava tão envolvida na história toda que queria pular direto pro resultado, se fosse ter um. - Qual é o detalhe desagradável?
 Nesse ponto ele parou e só me observou por alguns instantes. O olhar dele tinha uma mistura estranha de malícia e inocência, como se quisesse desafiar minha descrença e ao mesmo tempo se preocupasse com ele. Com certeza ele era um ótimo ator.
 - Os sonhos - ele recomeçou, falando devagar enquanto coçava o queixo. -, veja bem, não vão ser frequentes, de forma que você dificilmente vai poder fazer dinheiro com isso. Eles devem vir esporadicamente, raramente até. A condição extra é que você nunca possa saber quais deles são realmente proféticos e quais são simplesmente fantasias da sua cabeça.
 Logo que ele falou eu juro que achei o “poder” um pouco decepcionante. Deveria ter sido motivo suficiente pra eu negar a oferta; mas eu não ia me perdoar se tivesse gasto aquele tempo todo pra nada. Se arrependimento matasse...
 - Qual é o preço?
 - Esse é o preço. Viver as consequências de um talento tão especial. Você aceita?
 - Isso é uma pegadinha? Qual é o truque?
 - Sem truques. Eu expliquei o pacto em todos os detalhes possíveis. Você aceita?
 - O que você ganha com isso?
 - Você faz perguntas demais pra quem não tem nada a perder. O acordo é esse. Você aceita?
 - Aceito. - respondi, apertando a mão do homem misterioso, sem ter certeza se queria ou não que aquilo tudo fosse real.
Nada aconteceu de imediato; nenhum flash de luz, nenhuma gargalhada demoníaca, nada. Simplesmente nós sentamos de volta e tentamos ignorar o silêncio desconfortável até o fim da linha. Descemos juntos, mas quase sem olhar um pro outro.
 - Pra que você se lembre. - foi a última coisa que ele me disse, antes de me entregar uma estatuazinha de um gato com uns símbolos chineses ou japoneses desenhados; e então seguiu na direção oposta à minha, e nunca mais nos vimos de novo.
 Por muito tempo ainda, a minha vida seguiu normalmente. Claro, eu realmente não consegui esquecer aquela noite: eu costumava ter uns sonhos bem estranhos, e ver o gato sobre ao criado-mudo logo que abria os olhos não era a experiência mais agradável do mundo; mas eu logo me acostumei. Acabei criando um tipo de ligação com aquela coisa, um sentimento que não tem explicação; eu tinha convencido a mim mesma de que o melhor seria jogar ele fora logo que chegasse em casa, mas... Sei lá, no fundo eu ainda queria que alguma coisa “especial” acontecesse, e a estátua sempre me lembrava de algum dia ainda poderia acontecer.
 Até que um dia aconteceu. Fazia uns cinco anos, mais ou menos, que eu tinha me encontrado com o cara no metrô; e umas três semanas antes eu tinha sonhado com a morte do meu sobrinho. Não tinha parecido nada de anormal; meus pesadelos eram geralmente bem trágicos mesmo. Eu já tinha quase esquecido dele quando minha irmã me ligou. Eu atendi deitada, eram umas cinco da manhã, eu ainda tava meio tonta do sono; e enquanto eu tentava entender o que a voz do outro lado da linha dizia no meio do choro todo e começava a sentir o coração subindo pra garganta, tudo que eu via era o maldito gato, a patinha levantada como que dizendo “ei, lembra? Lembra? Lembra?”...
 O velório foi feito com o caixão fechado, porque os pedaços do menino que conseguiram juntar pra pôr lá dentro não chegavam nem perto de formar um corpo humano. Acidente de trânsito, exatamente como eu previ; a única diferença é que no meu sonho ele tava de moto, e na vida real o ônibus em que ele tava bateu de frente com um caminhão. Claro que isso não me fez sentir melhor em nada.
 Daquele dia em diante, eu tive que aprender a conviver com uma realidade que eu não aceitava nem compreendia. As consequências de um talento tão especial. Eu descobri o “sentido da vida”, por assim dizer: descobri que existe uma ordem, talvez até um objetivo final, na nossa existência; um plano maior. E, Deus, eu daria tudo que eu tenho pra poder esquecer. Agora já não adianta jogar o gato fora; o olhar dele parece até de pena...
Mas o pior de tudo não é simplesmente poder ver o futuro. Não, o preço a pagar, a grande piada cósmica por trás da coisa toda, é não entender o que eu vejo até o momento em que a visão se materializa na minha frente. Cada pesadelo horrível e realista tem exatamente a mesma chance de acontecer dos sonhos mais bizarros e surreais. E eu já sonhei tantas vezes com a minha própria morte, tantas vezes, que eu quase desejo que isso vire realidade logo.