Crônicas do Fim do Mundo V - Cidades-Fantasma


O Common Heritage Remembrance Program (CHRP) foi instituído pelo governo americano nos primeiros anos pós-guerra para, com a ajuda dos internautas, enfrentar o admirável desafio que era reconstruir a História das pequenas cidades e recantos esquecidos (talvez agora completamente aniquilados) do interior do país. Contava primariamente com fóruns online, em que os próprios habitantes podiam colaborar com suas memórias pessoais, e programas de busca que vasculhavam a web à procura de nomes que (ainda que vagamente) lembrassem o de uma cidade; estes, é claro, precisavam para funcionar do filtro de uma inteligência humana, que, como tal, era sujeita a falhas. E assim, de um começo ousado e grandioso, o projeto acabou, menos de dois anos depois, por ser cancelado de forma não menos espetacular.
O desespero e a desistência vieram a principiar da forma mais inocente possível: um belo dia, fazendo o seu trabalho como todos os dias, um funcionário do programa percebeu que seu computador encontrara menção a uma tal Nord, MN, que não constava absolutamente nos registros oficiais (os quais, é bom que se diga, foram seriamente danificados ou perdidos durante a guerra). Sem se preocupar em checar a referência, o funcionário apressou-se em criar um tópico no fórum, pedindo informações aos habitantes de Minnesota, “caso esse lugar realmente exista”.
Por três semanas, as únicas respostas que se obteve foram de uma meia dúzia de internautas, todos completamente alheios à existência de tal localidade. Foi então que uma pessoa se identificando como morgoth2071 postou o seguinte parágrafo:

É, eu acho que eu conheço esse lugar, se é o mesmo lugar onde eu ia passar as férias com meus avós. Fica (ou ficava) em Winona County, perto de St. Charles, num lugar bem afastado, onde nem tinham internet xD População 100, no máximo. Na verdade, talvez fosse oficialmente parte de St. Charles, mas eles viviam como uma comunidade isolada, poucas famílias, todos descendentes de noruegueses. De qualquer forma, tenho certeza de que chamavam o lugar de “Nord”. Me lembro de ir pescar com meu avô no rio Whitewater, tirar leite das vacas, ir àqueles cultos estranhos na igreja local... Era bizarro, mas eu com certeza lembro :D

Aparentemente, esse post foi suficiente para reavivar a memória de dezenas de moradores de Winona County, que passaram a se manifestar a respeito com cada vez mais frequência e riqueza de detalhes. Detalhes, aliás, que chegaram a chamar a atenção mesmo de quem não tinha nada a ver com a cidadezinha rural perdida no meio-oeste. O comentário relacionado aos cultos da igreja local, em particular, gerou considerável agitação: muitas pessoas trouxeram à tona estranhíssimas lembranças relacionadas a supostos rituais realizados no local e ao comportamento idiossincrático dos habitantes. Conforme mais informações eram adicionadas, mais interessados apareciam para dar sua contribuição, e uma narrativa mais ou menos concisa sobre a origem e a História da pequena Nord foi se formando.
Segundo ela, os colonizadores daquele pedaço dos Estados Unidos eram famílias de noruegueses que por gerações haviam vivido na Groenlândia. Apesar de esta ser oficialmente um território dinamarquês, essa população de alguma forma mantivera o uso de seu idioma natal. Consta, também, que trouxeram da ilha uma outra língua (que se especulou ser o kalaallisut, língua dos esquimós groenlandeses), que usavam apenas para propósitos litúrgicos. A data em que houve a migração para a América permaneceu um mistério; alguém chegou a comentar que seus antepassados mantinham a crença que, quando a primeira leva organizada de imigrantes noruegueses chegou a Minnesota, na segunda metade do século XIX, Nord já estava lá. Contudo, se isso era verdade, o encontro entre os dois grupos não foi amistoso, e os recém-chegados, extremamente religiosos, acabaram por ignorar e isolar a pequena comunidade. Por mais de dois séculos, então, a cidadezinha havia conseguido se manter, cercada de lendas de bruxaria e satanismo (que os internautas agora relatavam aos montes): alguns diziam que os habitantes locais eram um grupo de adoradores do diabo que praticavam incesto e assassinavam forasteiros em cerimônias macabras; outros os culpavam pela enchente de 2007, que assolou vários estados do meio-oeste e ainda estava na memória dos mais velhos; um ou outro ainda disseram que o local todo era um gigantesco templo de veneração à entidade Shub-Niggurath, e que existira desde os primórdios da civilização.
Tamanho foi o ímpeto dos colaboradores, e tão repentino, que os responsáveis pelo programa decidiram que era necessária uma investigação mais profunda do assunto; não tardou a encontrarem sua falha. Ocorre que a alusão a “Nord, MN” descoberta pelo funcionário era na verdade simplesmente um erro de digitação: o texto original se referia a Nordman, uma antiga banda de folk rock sueca. Assim, não apenas o tal funcionário foi demitido, como se foi percebido que toda aquela intrincada narrativa não passava de um exercício coletivo de ficção, estimulado pela postagem inicial. Diante da convulsão midiática subsequente, do caos burocrático e da possibilidade de que eventos semelhantes já houvessem acontecido e entradas falsas já tivessem sido incluídas no banco de dados, não houve escolha senão cancelar todo o projeto e destruir o trabalho de meses.
Há de se notar, contudo, que, embora morgoth2071 tenha admitido que sua resposta, que inspirou todas as conseguintes, fosse uma completa invenção de sua mente, muitos dos que participaram da chamada “fraude do século” seguiram afirmando que suas lembranças eram estritamente verdadeiras. Acusaram o governo de inserir informações falsas e fantasiosas no relato, além de subornar vários dos participantes, apenas para invalidar o projeto e por fim fechá-lo. A motivação para a suposta conspiração nunca foi esclarecida.

Quase-coisas


Partindo-se de uma perspectiva da ontologia estritamente fenomenológica, chegando às raias do solipsismo (do qual podemos fugir, mas nunca efetivamente nos afastar), deparamo-nos com toda uma nova classe de “coisas”, se assim quisermos chamá-las, que talvez nos tenha passado despercebida: essas “quase-coisas” são sequelas da busca constante de nossos cérebros por padrões reconhecíveis no caos de dados que são recebidos a todo momento. Aí não se encaixam apenas os erros básicos da tão humana pareidolia; com efeito, qualquer coisa que se possa interpretar de um conjunto momentaneamente indistinguível emerge como uma entidade objetiva, mesmo que um instante depois a reconheçamos como meramente uma combinação de partes quaisquer de outras coisas.
Ocorre que, não existindo esse segundo momento de reflexão, por força do acaso ou de algum interesse particular, a quase-coisa assume em definitivo uma identidade própria: passa a ser, para todos os efeitos, uma coisa para a qual há um nome, que passa a ser signo e por si um padrão que a mente posteriormente identificará. Quem já procurou fantasmas nos tons indistintos de uma noite escura o compreenderá de pronto.
Há, entretanto, uma conotação que é um tanto mais sutil e subterrânea (e, portanto, mais perigosa) neste comentário: depois de apropriadamente inclusa no idioma, imediatamente identificável por qualquer mortal, a quase-coisa, agora promovida, passa, pela tendência natural da humanidade de evitar a mudança a qualquer custo, a ser intocável. Ainda que destrutível por qualquer mísero sopro de lógica, será inexoravelmente defendida pelo sistema límbico dos falantes, sempre pronto para se autorrecompensar ao reforçar um conceito já plenamente sedimentado; dificilmente poderá ser, como queria certo filósofo de nosso passado, desconstruída.
Em outras palavras: na prática, qualquer coisa pode, de fato, ser uma quase-coisa; qualquer ideia pode ter falhas tão elementares que só não vemos por puro comodismo; e quem se atreverá a mergulhar nas profundezas da linguagem para desvendá-las? Ainda vemos fantasmas...