O Temido Último Post

A quem interessar possa, venho informar que este blog está sendo "fechado"; ele continuará disponível por algum tempo, mas nada de novo será postado. Em algum ponto indeterminado do futuro, ele deverá desaparecer.
Já há alguns meses eu venho alimentando a ideia de traduzir meu trabalho e eventualmente passar a escrever somente em inglês. O plano inicial era o de fazê-lo concomitantemente com a criação e postagem de novos textos, até que todos os antigos estivessem transpostos; isso, porém, se mostrou impossível (a não ser que eu abdicasse de minha regra auto-imposta de publicar alguma coisa ao menos uma vez por mês, e isso sempre esteve fora de questão). Eu precisei escolher me dedicar integralmente à tradução, e determinar que este blog devesse "congelar" em algum momento. Este momento é agora.
Assim, portanto, um outro local será criado, tão logo quanto conteúdo suficiente esteja disponível; quaisquer novos absurdos que eu venha a conceber até lá nascerão já contaminados por um thought-process na língua d'O Bardo, e serão postados junto a seus predecessores de forma aleatória. Talvez esse transcurso todo merecesse um ensaio próprio; mas aí já são outros quinhentos.
Por fim, adianto que, assim que o novo blog houver sido criado e posto em marcha, eu virei editar esta postagem para ofertar o link a quem quer que seja que venha a calhar por aqui. Até lá, deixo meu muito obrigado a todos que acompanharam esta bobagem, e meu see you soon aos que ainda não perderam o suficiente de sua sanidade.

Má Fé

Não. Eu já disse mil vezes, e vou dizer mais mil se for necessário: eu não sou um charlatão. Os senhores me desculpem, eu desconheço a definição legal de “charlatanismo”; mas em termos de moral, do que é certo e do que é errado, não tenho dúvidas de que essas acusações são infundadas.
Digam-me: pergunta-se a todos os médicos que intenções os levaram ao juramento hipocrático? Quantos, imaginem, não o fazem também por dinheiro? Ou por status? Não existem essas “dinastias”, vamos dizer, em que o ofício passa de pai para filho com a maior naturalidade? A intenção é irrelevante. Ninguém questiona a de um médico em sua profissão, desde que ele possua as credenciais necessárias e seja competente no que faz.
Por que a comparação não seria válida? Eu sou o primeiro a reconhecer que a astrologia é uma pseudociência (do contrário nós nem estaríamos aqui, não é verdade?), mas o meu argumento se mantém: é absurdo que se use a opinião pessoal de um profissional como critério para desqualificar sua conduta ética.
Não é cabível tampouco levar em consideração apenas um ou dois testemunhos escolhidos a dedo, com todo o respeito. Via de regra, os clientes não mudam suas convicções de uma visita a outra: os céticos, claro, tendem sempre a atribuir qualquer eventual acerto a mera casualidade; os crentes, por outro lado, antes deformam a visão que têm de si mesmos do que suas crenças. É justo (e lógico) dizer que nós raramente somos procurados por aqueles que entendem, eles próprios, da disciplina.
O que os senhores precisam aceitar é que a astrologia é um sistema de conhecimento muito bem definido, por arbitrários e irracionais que sejam seus preceitos. Ainda que um verdadeiro vigarista saiba sempre se expressar de forma dúbia a fim de mascarar seu embuste, existe, por exemplo, um modo certo de se interpretar cada elemento de um mapa astral. É possível estabelecer, de forma plenamente objetiva, o quão capacitado um astrólogo é; nesse sentido, a justiça faria melhor em acusar esses pastores que andam por aí criando e recriando seus próprios dogmas.
Se bem que os parâmetros da acusação pareçam variar de caso a caso, não é mesmo?
Enfim, para concluir, gostaria de dizer que minha consciência permanece imaculada. É verdade, sim, que eu considero a astrologia um monte de bobagens sem fundamento, não me envergonho de repeti-lo; a questão é que eu passei anos de minha vida estudando esse besteirol (visando, sim, o lucro; quem dos senhores nunca houver cedido à ganância que atire a primeira pedra), e penso ser o maior especialista no assunto da região, senão de todo o país. Muitos de meus “colegas” entram para a profissão porque acreditam piamente ter um dom: agem por instinto, ignoram regras, e ainda assim são deixados em paz para trabalhar; mas entre um cético qualificado e um assecla incompetente, eu devo lhes perguntar, quem de fato é o charlatão?

Queimadura

Que doa, mas que se cure
Ferida aberta
Que arda, mas cicatrize
E se costure

Os olhos da cara;
Ainda que cegos
Que se fortaleçam
As mãos e os peitos

E que o medo, mesmo cortante
Não seja mais
Que medo

Que sangre, mas que sossegue
Os calafrios
Que retorça e que lateje
Mas deixe livre

O suor da pele;
Mesmo febris
Que não descansem
Línguas e lábios

E o desamor, mesmo cruel
Não seja mais
Que medo

Possa a mesmice
Massacrante
Não iludir
Nem ser masmorra
A nenhum grito

Queimadura lave o corpo
E deixe escrito:
“Ainda não,
Ainda não”

Caso Oblíquo

Talush acordou de sonhos irrequietos, e permaneceu sentado em sua rede por alguns instantes. Sentiu uma raiva familiar crescer lentamente em seu íntimo. Pôs-se de pé de um salto; cruzando o véu que delimitava seus aposentos, foi ter com sua mãe. A velha Kumar o saudou de forma carinhosa, mas ele constatou de pronto que ela havia estado chorando. Seu pai não estava ali; a raiva se expandiu como a dor de uma estocada, em espasmos quentes e regulares.
Deixando a tenda, o rapaz se dirigiu ao centro da aldeia com um objetivo claro em mente. Fazendo questão de se desviar dos olhares funestos das entidades que vigiavam a entrada do Templo, tomou o caminho lateral, enfrentando alguns metros de mata fechada, até dar na clareira exatamente atrás do grande edifício. Ali, alguns companheiros estavam reunidos em torno de um trono baixo e tosco; uma mulher o ocupava, e aninhava no colo um ídolo de madeira.
- Kundik e Amuab, que filhos desnaturados! - exclamava Niazat, o fantoche, na voz da mulher. - Os deuses só podem ser montes de esterco se não podem dar à pobre Banir uma família decente! Ela que sempre foi uma filha respeitosa, uma esposa fiel e mãe dedicada…
Os espectadores se divertiam com a cena. Aquelas palavras, saídas da garganta de qualquer um, seriam blasfemas o suficiente para render uma sentença de morte; todavia, o pequeno boneco que habitava atrás do Templo era livre para falar sempre o que quisesse, sobre tudo e todos.
Paciente, Talush aguardou de pé por uma oportunidade de se sentar no trono. Quando sua vez chegou e um companheiro lhe alcançou a figura, tomou-a nos braços com cuidado e reverência, e pigarreou um instante antes de lhe dar voz: ao abrir os lábios de palha, Niazat subitamente explodiu em fúria contra Talik, pai de Talush. Afirmou que o homem, caçador renomado na aldeia, era um bêbado e um covarde; que sua bravura só durava enquanto estivesse acompanhado de outros homens, e que se batia apenas com mulheres e crianças quando a sós. Disse muito mais coisas, ridículas e terríveis, maldições que soavam como berros animalescos, para deleite de sua plateia.
O jovem respirou fundo quando enfim o fantoche terminou de falar. Percebera que Talik havia estado ali fazia algum tempo, rindo junto aos outros; entregou então o ídolo ao companheiro seguinte, e foi prestar seus cumprimentos ao pai. Os dois se abraçaram de forma cordial.
Talush sentia agora o corpo pesado como se houvesse caminhado por horas; mas havia ainda uma tarefa a cumprir. Refazendo a rude trilha que ladeava o Templo, ele evitou mais uma vez os guardiões e se desviou para o rio. Mergulhou até que as águas o cobrissem completamente, e permaneceu assim enquanto seus pulmões permitiram; então emergiu, e se deixou ficar flutuando, imerso em pensamentos, por longos e preguiçosos minutos.
Quando entendeu que já havia gasto todo o tempo de que dispunha, o rapaz mergulhou novamente, agora concentrado e deixando transparecer apenas o mais ligeiro indício de impaciência; com um movimento rápido e preciso, apanhou o primeiro peixe que enxergou: um grande e gordo bagre. Com o sacrifício em mãos, Talush retornou ao centro da aldeia pela última vez naquele dia.
Enfim se atreveu a desafiar os olhares das entidades, e atravessou o majestoso pórtico do Templo. Seguindo o longo corredor de imagens sagradas, marchou de forma serena e digna até a última edícula: aquela sem adereços, sem estatuetas, sem ícones e sem divindade; aquela cujo altar, dentre os numerosos que ali havia, era o mais frequentemente honrado. O jovem se ajoelhou perante o espaço vazio e depositou sua própria pequena oferenda; tomando em mãos um pedaço de carvão de uma fogueira havia muito apagada, rabiscou um lacônico “perdão” no chão de pedra; então se ergueu novamente e retornou a sua tenda, e dormiu.

Crônicas do Fim do Mundo XV - Atalhos

CAMILLA: You sir, should unmask.
STRANGER: Indeed?
CASSILDA: Indeed it’s time. We all have laid aside disguise but you.
STRANGER: I wear no mask.
CAMILLA: (Terrified, aside to Cassilda.) No mask? No mask!
(Robert W. Chambers, The King in Yellow: Ato 1 - Cena 2d)

O meu primeiro contato com a Guilda dos Incendiários aconteceu em decorrência de uma coincidência boba: eu tinha acabado de ler uma nota sobre a turbulenta disputa de sucessão de alguma insignificante monarquia europeia (esses eram então os meus divertimentos); o termo que me chamara a atenção era o adjetivo “talossano”: ainda que o site garantisse que o pretendente a carregá-lo era um farsante, de uma “dinastia” que não era mais do que uma ficção elaborada, o gentílico havia me soado estranhamente familiar. Levando a questão à minha inspirada amiga Tessália, tão bem-informada e lúcida quanto a paranoia permitia, as minhas suspeitas foram confirmadas: parece que os membros de uma casa ainda menor tinham contratado a Guilda pra eliminar todo indício da existência palpável do Reino de Talossa, suas Histórias e Gramáticas e diferentes registros legais, no intuito de o fazer passar por invencionice (e assim, claro, deslegitimar qualquer ligação genealógica afirmada pelo governante). Os talossanos continuam a viver como sempre viveram, dissera a Tessália, entre uma carreira e outra de pó mágico, mas, no que diz respeito ao resto do mundo, o país não existe.
Em outra ocasião, eu bem poderia ter gasto alguns minutos de retórica e saliva debatendo o que exatamente faz com que uma nação exista ou não; mas o mistério daquele grupo, aparentemente tão influente, havia despertado definitivamente a minha curiosidade. Além disso, como eu viria a descobrir mediante auxílio de outras amigas “conectadas”, os propósitos e métodos dos Incendiários convinham perfeitamente com as minhas ideias na época. O lema deles, “tudo eventualmente é esquecido”, orbitando tão graciosamente entre sutileza e cinismo, dava a entender uma espécie de niilismo trans-humanista: daqui um milhão de anos, praticamente todo traço da nossa passagem pela Terra vai ter sumido; de um ponto de vista cósmico, tudo que nós consideramos memorável é só questão de convenção. Hitmen de abstrações e estruturas em vez de homens; seria possível? Seria assim tão fácil pôr fogo no mundo?
Evidentemente, as minhas utopias foram murchando conforme eu pesquisava mais a respeito. Era lógico que os homens da Guilda deveriam ser, ao menos alguns deles, os próprios porcos que eu sonhava abater; ou seus titereiros, o que fosse. Como todo parasita, eles necessitavam de um sistema pra ir destruindo aos poucos, e morreriam quando (ou se) este morresse. Quem haveria de dizer que os conspiradores por trás dos ridículos conflitos dinásticos ao redor do globo não eram ministros das mesmas casas que derrubavam? Pecunia non olet, escrevera algum dramaturgo romano, e nunca tinham provado o contrário.
Só havia um serviço, enfim, que os meus escassos cobres poderiam me adquirir, e que (pensava eu) não voltaria depois pra me morder a bunda.
Estava então morando na pequena chácara que eu herdara dos meus avós, cá neste esquecido canto meridional do que um dia foi o Brasil; um inexplicável surto de idealismo me fizera crer que passar o resto da vida subsistindo daquilo que eu conseguisse tirar da terra (o que, aliás, não era muito) e chapinhando nas poças de um inverno quase incessante seria tanto a minha opção mais digna como a mais viável. Era a minha vida. Minha aversão aos fiapos de autoridade que ainda teimavam em agoniar o mundo não era, como nunca havia sido, gratuita: vinha da ânsia por liberdade da minha alma, tão intransigentemente anarquista, e de um ou outro percalços do meu passado que não convêm comentar. Eu agora só queria sumir; desaparecer de tudo aquilo que se rotula oficial, das leis dos homens que ainda me acorrentavam, e construir a minha própria Talossa de geada e suor.
Pagara o que eu imaginava ser minha última dívida; agora seria uma náufraga, isolada (literalmente, se a chuva não sossegasse logo) em um país inexistente, sem lenço nem documento. Um fantasma.
A Tessália tinha rido como um chimpanzé alucinado, a imbecil, quando eu contei meu segredo. Fora durante um sarau na casa dela; a noite inteira a mulher vinha engolindo umas pílulas roxas como se fossem balas de goma, e tudo então soava “maravilhoso”. As outras meninas falavam uma língua que eu não entendia, e em alguns momentos ela me parecia uma pessoa desconhecida. Se tinha algum senso naquela cacofonia de guinchos e gemidos, nunca fiquei sabendo; também nunca mais a vi.
Lembrei dela certa manhã, e da pantomima toda, enquanto levava a chaleira ao fogo e preparava o chimarrão. Cheguei a pensar que tudo, a Guilda e a História, o dinheiro e os países da Europa, tudo não passara de uma practical joke de péssimo gosto engendrada por minhas amiguinhas psiconautas. Consegui rir por um instante, e respirei sem pressa. Quando a água começou a ferver, eu ouvi o som das sirenes em frente ao portão.

Paralipomena

É sempre lamentável que se admita, ao fim de qualquer ato, que a razão deste tenha sido a ausência de outro: um talvez mais relevante e único, talvez menos meditabundo e melancólico. Que se estabeleça desde já, então, que este texto carrega mais em si de apologia do que de apêndice; que foi escrito sob a plena noção de que absolutamente nada mais serviria, e isso é tudo que se pode afirmar em sua defesa.
Um homem muito sábio certa vez disse: nossos pensamentos são as sombras de nossos sentimentos; houve um tempo em que eu discordaria sem pensar. Um tempo em que eu me imaginava perfeitamente transparente, perfeitamente nulo; quase como se a minha câmera fosse uma ponte direta entre dois mundos, e eu não fizesse mais que a carregar aonde ela quisesse (ou devesse) ir. Todo o amor e toda a tristeza, o horror e o êxtase, eu só me permitia crer sentir ao cabo da edição, quando já nada estaria sob meu poder.
Foi acompanhados dessa ingênua inspiração que nós fomos gravar La Plata, como alguns quiçá se lembrem; e, como todos fazem questão de mencionar, foi então que aquela “terrível demonstração da ironia divina” (palavras repetidas, compartilhadas e “noticiadas” à exaustão, na época) nos atingiu. Nós morremos; sobrei eu. Eu e minha câmera, renascidos de um milagre, sobrevivemos para seguir nosso trabalho sagrado.
A princípio, foi realmente essa a forma que tomou meu luto: a de ainda mais ânimo, ainda mais determinação. Por eles, diziam-me; é o que eles teriam querido. Contra a angústia e o choque, eu fui em frente e terminei de contar a história que nós acháramos que precisava ser contada; contra olhares que talvez me julgassem (se é que não fosse já um sinal prematuro do remorso que eu viria a sentir), lutei para que o documentário fosse distribuído e divulgado. Por mais que desde então o tenha jogado fora, o Oscar que costumava se pavonear em minha estante dava-me a sensação de ser um homem bem-sucedido.
Isso, é claro, foi antes da bebida, do eco das vozes que sussurravam (não sei se por pena ou por escárnio) “não é sua culpa”, dos remédios; antes das noites passadas em claro perguntando a deus “por que eu?” aos gritos; antes da necessidade de dizer a mim mesmo que deus não existe e que a vida é feita de acasos vazios, pois do contrário teria perdido completamente o juízo.
Eu fiquei quieto. No início, o silêncio parecia lógico; com o tempo, se tornou inevitável. Nunca chegou o momento certo de me manifestar; eventualmente os jornalistas pararam de perguntar, as esposas e maridos deixaram de me procurar, e eu me escondi em um casulo de escapismo. Nunca mais usei minha câmera; nunca mais fiz a barba; nunca passei do segundo capítulo de Em Busca do Tempo Perdido… E os anos passaram. Nossa história nunca foi contada; no silêncio, em função do silêncio, muitas abomináveis especulações nasceram. Eu acompanhei tudo pela internet, onde os pudores e honrarias da mídia tradicional nem sempre têm efeito.
Aqui, tudo deveria ter um fim: eu poderia pintar a mais bela e sanguinolenta descrição do acidente, em detalhes gráficos e tom hollywoodiano, para saciar as perversões mais infames; ou, quem sabe, simplesmente deixar uma nota de suicídio a quem quer que se importasse, e fazer aquilo que já deveria ter feito há anos. Infelizmente, sou um covarde íntegro: não mancharei a memória de meus amigos com sensacionalismos baratos, e ainda devo viver um punhado de anos envergado sob o peso de minha consciência. A verdade é que eu deixei passar todas as oportunidades cabíveis de redenção: já milhares de vezes pensei em continuar de onde parei, completar La Plata com a real história daqueles que arriscaram (e todos, exceto um, perderam) as vidas para filmá-lo, enfim quebrar o silêncio… Mas não sou mais aquele jovem transparente e ingênuo; a película que roda em loop por minha mente foi por demais contaminada com anos de álcool, desejos secretos e lágrimas para manter sequer um rasgo de legitimidade. Mais mal faria eu a revelando do que continuando a guardá-la para minha própria e patética apreciação.
Não há conclusão; não mais que o selo na tumba de uma memória enterrada viva. O ápice de meu egoísmo, eu bem sei. Nada que eu pudesse relatar, contudo, viria a mudar qualquer coisa (com certeza não para melhor, ao menos). Sigamos todos com as mesmas opiniões, as mesmas raivas e as mesmas culpas. Isto era só, e era tudo, o que eu tinha para dizer.

Breve Compêndio de Pseudeisegeses IV - Uma Questão de Semântica III

A confluência arbitrária de alguns fatores de pouca importância (uma leitura superficial do conceito de “anarquismo epistemológico” de Feyerabent; o fortuito link à análise etimológica de Heidegger do termo grego “ἀλήθεια”; e as subsequentes e superpostas lembranças de certas pequenas fábulas de minha própria autoria) me levou, esta madrugada, a uma epifania: a solução do debate entre positivistas e pós-modernistas acerca da natureza da verdade talvez se encontre sob um manto semiótico.
Esclareço: a mais persistente crítica contemporânea à validade do método científico diz respeito ao fator humano (naturalmente subjetivo) envolvido na procura pelo conhecimento, e à demasiada dependência deste a noções preconcebidas; cientistas, por sua vez, repudiam tal “relativismo” como mera ignorância, e defendem o paradigma como havendo sido construído sobre experiências bem-sucedidas e comprovável sob similares circunstâncias em qualquer lugar e por qualquer um. Existe aí, contudo, um meio-termo: a descoberta de novas evidências força sempre uma reavaliação da ordem corrente, seja com a rejeição de uma ideia previamente aceita, seja com a criação de uma teoria ad hoc (dependendo da linha teórica por que se tem preferência). A revolução científica se dá apenas mediante constante reexame (e eventual substituição) das verdades em vigor.
Pode-se afirmar, então, que aquilo que os pós-modernistas definem como “verdade” é, talvez ironicamente, um conceito muito mais objetivo do que aquele de fato adotado pela ciência; ou, para ser mais preciso, a definição da palavra que os detratores liberalmente atribuem (no intuito de criticá-la) à busca do método científico está equivocada. Talvez existam fatos imutáveis no universo, mas mesmo que os alcançássemos nunca teríamos certeza de sua imutabilidade; nesse sentido, uma acepção unificada do termo será inerentemente subjetiva. Por outro lado, a perspectiva de mudança não deve tornar quaisquer hipóteses vigentes menos válidas: enquanto justificadas, práticas e em consonância umas com as outras, serão sempre verdadeiras.
Sugere-se, portanto, que por “verdade” se entenda um fluxo singular e contínuo de significado; cada percalço mudando a direção da corrente, mas nunca a dividindo. Como uma espiral, eternamente virando sobre si mesma, cada vez mais longe do próprio centro.
Tal proposição, é claro, redunda completamente hipócrita, já que é questionável sob sua própria definição (porquanto infalsificável); deve, assim, ser considerada falsa, ainda que em um nível intangível não o seja. De uma forma ou de outra, eu precisava de um terceiro texto este mês, então.

Kōan V‏

In this same time our Lord shewed to me a ghostly sight of his homely loveing. He shewed a littil thing the quantitye of an hesil nutt in the palme of my hand, and it was as round as a balle. I lokid there upon with eye of my understondyng and thowte, What may this be? And it was generally answered thus: It is all that is made.
(Juliana de Norwich, Revelations of Divine Love)

Tinha sido durante uma reunião de ex-colegas, James recordava, que ele ouvira a anedota. Teria acontecido, caso fosse mesmo verídica, a um amigo, ou a um amigo de um amigo (alguém preservado no fundo de sua memória, com certeza, como uma referência de educação e cultura), sabe lá Deus quantas décadas atrás; passava agora em sua cabeça como uma peça de teatro, distinta de todas as outras vezes mas mantendo o mesmo enredo básico: a aula de Psicologia de uma universidade pública; a aflição dos estudantes diante do anúncio de uma prova surpresa; o professor apanha um dos assentos e, sorrindo de forma quase obscena, lança o desafio: provem pra mim que esta cadeira não existe. Os discípulos se desfazem em verborragias, regurgitando citações a todo teórico que lhes surge à mente, revirando cada pequeno neurônio em busca da correta linha de raciocínio; e eis que apenas um entre eles passa no teste: apenas um único desgraçado, que se contentou em escrever “que cadeira?” e deixou a sala muito antes dos outros.
“Esses cara são tudo louco”, James se pegou dizendo a si mesmo, sem saber por que lembrara daquilo. O pensamento o distraiu por um instante de seu propósito; a percepção veio brusca, como um reflexo involuntário; e ele notou, resmungando, ter perdido mais uma vez O Jogo.

A proposta de The Labyrinth não era (segundo lhe haviam contado, pelo menos) muito diferente de grande parte dos reality shows que vêm devorando espaços na grade de qualquer emissora nos últimos anos: largar dezesseis desconhecidos em um local isolado e os observar, 24 horas por dia, em sua ânsia pelo prêmio milionário. Os particulares menos importantes eram que a locação seria um verdadeiro labirinto subterrâneo, privado de luz solar ou qualquer outro método de mensuração de tempo; e que a competição se daria em forma de campeonato, pondo sempre dois participantes a disputar entre si uma vaga na etapa seguinte. O objetivo de tal disputa, o detalhe que os produtores mais se enrolavam para explicar, seria então “caçar” o oponente, emboscando-o (fosse nas sombras dos caminhos entrecruzados ou nas brumas do sono) e o eliminando.
- ‘Cês tão querendo que eu mato um cara? - James recordava ter perguntado, completamente aturdido, durante a audição.
- Não, não... - os dois homens responderam ao mesmo tempo, entre risos tão reconfortantes que pareciam nervosos; um deles então continuou. - Você só tem que pegar o seu adversário de surpresa, pular em cima dele ou só tocar nele por trás... O importante é que ele não veja você. Quando isso acontecer, a gente acompanha tudo pela câmera, a gente entra e confirma a sua vitória; você segue pra próxima rodada, ele volta pra casa.
James nascera, como ele próprio gostava de dizer (e possivelmente ouvira em algum seriado, sendo então atingido por um senso de romantismo eufemístico), “no lado errado da cidade”. Passar longos períodos de tempo em lugares escuros e apartados do mundo não era algo que lhe desse prazer, mas era algo em que (feliz- ou infelizmente) ele admitia possuir vasta experiência. Os produtores, no entanto, não o haviam questionado acerca disso além de um simples “sim ou não” no questionário de admissão; e, caso chegasse a ser campeão, o prêmio era mais do que suficiente para quitar todas as dívidas que fizera ou sonhara poder fazer na vida. Divorciado, sem filhos, ele literalmente não tinha coisa alguma a perder.
Os primeiros estágios do programa se passaram sem maiores problemas. Enquanto James estava acostumado a proceder com cautela e concentração absolutas, seus oponentes eram barulhentos, descuidados e se desesperavam muito facilmente; por mais que precisasse vagar sem rumo por uma imensidão de passagens intricadas, cedo ou tarde ele os encontrava chorando ou roncando em algum canto. O maior desafio, na verdade, era lidar com a ausência de um fluxo temporal perceptível: sem horários fixos para o que quer que fosse, ele já havia desistido de tentar estimar a duração de sua estada naquele lugar. Aquilo sempre o fazia pensar em um artigo que lera em certa ocasião, sobre como pessoas que viajam com frequência tendem a se “desprender” do tempo; uma aeromoça, ele lembrava nitidamente, relatara como havia feito três voos entre Barcelona e Los Angeles em um dia, almoçado três vezes e ainda chegado em casa antes de escurecer.
Era assim que James se sentia: como se um minuto pudesse durar uma eternidade, e mil passos não o levassem a lugar algum. As vistas ao longo do percurso apenas consolidavam esse sentimento: certas áreas ainda continham um ou outro traço marcante, e ele tentava manter suas localizações como a Arca da Aliança em sua mente; mas os longos túneis que as conectavam, as salas intermediárias e toda sorte de viela e encruzilhada e fim-da-linha, todos eram monotonamente idênticos. Com frequência, ele se deixava perder em reflexões, hipnotizado pela marcha regular e silenciosa; quando dava por si, de sobressalto, sentia-se repentinamente vulnerável, e se amaldiçoava por perder O Jogo.
Outras pessoas além de seu presente rival também habitavam o labirinto, todavia, em pequenas “vilas" aonde os participantes eram instruídos a ir para comer e dormir; mas eram todos personagens, representados por atores profissionais, preparados para reagir dessa ou daquela forma dependendo das ações de seus interlocutores. Um diretor lhe havia advertido a respeito, e James se convencera a interagir o mínimo possível com aquelas pessoas; julgava que permanecer em tais recintos por muito tempo o faria um alvo óbvio. O fato de os intérpretes serem periodicamente substituídos, fazendo com que um mesmo “morador” parecesse poder transmutar o rosto e a voz à vontade, não melhorava a situação.
De uma forma ou de outra, por habilidade ou por pura sorte, o fato é que James havia chegado à grande final. Como ocorrera ao conquistar as fases anteriores, foram-lhe mostrados clipes dos movimentos e táticas de seu próximo adversário, gravados durante as vitórias deste; mas isso acontecia em uma salinha adjacente ao curso principal do labirinto, habitualmente trancada, e nunca lhe foi permitido deixar o set por sequer um instante. Essas, aliás, eram as únicas ocasiões em que a produção do reality se fazia notar; e nenhum dos contrarregras que o acompanhavam, ele constatara desde o início, usava relógio. Não fazia diferença, porém: tudo em que ele conseguia pensar é que precisava apenas fazer, uma vez mais, o mesmo que já vinha fazendo havia sabe lá Deus quanto tempo.
E agora, agora que ele quase podia sentir a recompensa em suas mãos e visualizar tudo que adquiriria assim que saísse daquele arquipélago, era como se o fim de suas tribulações lhe fugisse. Sua presa parecia absolutamente indetectável. A princípio julgara que a ansiedade lhe estivesse a distorcer ainda mais a percepção do tempo, e que seus triunfos passados o houvessem tornado desatento; mas por fim tinha já a certeza de que a derradeira rodada da disputa estava se estendendo muito além do que deveria. Flashbacks de momentos desditosos de sua vida vieram assombrá-lo, conforme espreitava angustiadamente por esquinas mal iluminadas e vazias; os atores, quando os encontrava, só lhe provocavam asco com suas expressões preconcebidas. Ninguém lhe comunicara qualquer mudança de planos; e, no entanto, o outro finalista não estava em lugar algum.
Suas suspeitas começaram pelo trajeto mais lógico: não havia outro finalista. Era a única explicação possível; a questão era por quê? Aquilo tudo seria uma piada? Seria razoável imaginar que todas as etapas passadas teriam servido simplesmente de isca para convencê-lo da realidade da competição? Ainda assim, a fraude deveria ter um motivo. Precisava haver um motivo. Talvez ele de fato estivesse em um programa de televisão, algo como uma versão particularmente terrível d’O Show de Truman; ou, então, em um experimento de cientistas, psiquiatras, uma casta qualquer de malucos que se comprouvesse em assistir ao lento ocaso de suas esperanças e chamá-lo “estudo”. Esperava, ao menos, que alguém o estivesse observando.
Quem sabe... Quem sabe ele só precisasse admitir a derrota? Cair de joelhos, desabar em choro e gritar para câmeras invisíveis que não possuía em si mais forças para continuar; quem sabe essa fosse a condição necessária para a vitória, afinal de contas. Quem quer que fosse a mente por trás daquela pantomima, ela parecia ser sádica o suficiente para estipular tal regra. O medo de arriscar e acabar “morrendo na praia” (ou sofrendo sabe lá Deus que tipo de reprimenda), contudo, o mantinha de boca fechada.
Já não mais visitava as vilas, exceto quando a fome se tornava insuportável; então agarrava o primeiro alimento que visse e se punha em marcha novamente, mal captando uma insinuação de sentimento (que talvez fosse medo, talvez pena) nos rostos aparvalhados dos moradores. Quando encontrava sinais quaisquer de presença humana em suas andanças, julgava sempre que ele próprio os houvesse causado (mesmo que fossem sons vindos de outra sala, ou vultos em movimento em sua visão periférica). Convencera-se de que os outros desejavam que esperasse, e assim o fazia. Uma sensação inquietante lhe dizia que, quando enfim resolvessem lhe entregar o título de campeão do labirinto, descobriria que sua jornada inteira não durara mais que umas duas semanas. Até lá, manter-se-ia concentrado em sua paciência.
Se pensavam que ele estivesse cedendo à loucura, isso seria a última coisa que demonstraria (mesmo que fosse verdade).

Certa vez, recordou-se de um trecho de um livro que um dia lera, chamado Livro das Coisas Sem Nome: “A dissonância que se percebe entre a memória de um querido objeto da infância e a aparência que porta o mesmo ao ser encontrado anos depois. Se tal dissonância deve ser atribuída a um mistério ontológico ou a meros fatores psicológicos depende das inclinações filosóficas de cada um”, dizia, letra por letra, a descrição de um termo inexistente. James se divertiu ingenuamente com a lembrança, quase como se pudesse tomar seu significado nas mãos; então compreendeu, talvez muito tarde, que mais uma vez se havia permitido distrair-se; estalou os dedos diante do rosto, apressou o passo e tentou esquecer ter perdido O Jogo.

Paradoxos Lógicos da Era 16-bit

Dia desses, quando eu ainda jogava Super Metroid, uma passada pela wiki (não que eu precisasse de ajuda com uma parte difícil, claro que não; eu sou ótimo em sair de Norfair pelo caminho certo e sem ter que atravessar uma sala cheia de lava) me levou, de link em link, a descobrir um detalhe muito interessante sobre certo trecho do jogo; um detalhe minúsculo, mas que levanta questões profundas sobre a lógica dos videogames (e, quem sabe, da vida real também).
Antes de eu explicar, um pouco de contexto: o trecho a que eu me refiro é a batalha contra um chefe chamado Draygon, um dragão/peixe/lagosta que passa o tempo todo ou voando de um lado pro outro da tela ou cuspindo gosma pegajosa. O método mais comum pra vencer o bicho é simplesmente desviar das investidas e disparar mísseis na barriga dele (o que vai ficando cada vez mais difícil, porque ele se move mais rápido quanto mais perto de morrer); mas existe um truque que torna a coisa toda despudoradamente fácil: cada parede da sala tem dois canhões que disparam bolas de energia; a ideia é explodir um deles, daí deixar que o Draygon agarre a Samus (a personagem jogável) do chão e então mirar o grappling beam (uma arma de raio que funciona como um gancho) no vão destruído e faiscante. Em teoria, o que acontece é que a eletricidade é conduzida através da armadura da heroína e atinge o monstro; na prática, só o que importa é que ele morre em segundos com esse macete, poupando horas de ânimo e paciência do jogador.
Agora, o detalhe interessante que eu li a respeito é que, aparentemente, não é a eletricidade que causa a morte do chefe. Hacks de Super Metroid mostraram que a mesmíssima técnica pode ser usada também com os grapple points comuns, esses que servem de eixo pra Samus se balançar (usando o grappling beam como um cipó) e evitar abismos ou armadilhas. O caso é que, no local onde a batalha acontece, os únicos grapple points disponíveis são os destroços dos canhões; foi necessário adicionar um outro, não-elétrico, no meio da sala pra provar que o Draygon morre de qualquer forma.
O grande enigma aqui, então, é: do ponto de vista “de dentro”, pensando a questão como se ela fosse real, o que é, afinal de contas, que mata o chefe?
Não é fácil achar uma única resposta; eu até desenhei um diagrama (que eu não vou incluir neste texto por motivos de: senso de ridículo) pra entender melhor a relação entre os elementos, mas ainda daria pra argumentar por ambos os lados. Pode-se dizer, acho eu, que seja uma questão de aparência versus realidade: a eletricidade parece ser responsável, e é a culpada mais óbvia; mas um exame mais minucioso (no caso, a “descoberta” dos hackers seria uma metáfora do método científico) demonstra que essa suposição é errada. Ao mesmo tempo, o hackeamento pode ser visto como uma interferência que altera o resultado dos eventos; aí a versão “alterada” do jogo é considerada fundamentalmente distinta da original, e qualquer detalhe particular a ela passa a ser irrelevante.
Eu ainda tentei imaginar uma analogia do problema com alguma situação mais palpável, mas acabou sendo inútil; o paradoxo em si, eu tive que constatar, não é restrito só à ficção, mas à forma de mídia que é o videogame. Ele depende de uma anomalia, basicamente: um acontecimento que vai contra as leis do seu próprio universo; mesmo a interpretação mais criativa de um livro ou filme, por exemplo, não contradiz o que foi estabelecido pelo criador (geralmente o foco é o que não foi estabelecido). Hackear um jogo, por outro lado, é como inserir um personagem no meio de uma cena ou mudar a ambientação de um capítulo, e então ver como as coisas se desenrolariam de acordo com as regras que os programadores mesmos definiram. O código, o conjunto de leis que rege o comportamento de todos os objetos dentro do mundo virtual, é tão parte da narrativa quanto a backstory de qualquer série.
Ou seja: a dissonância entre o que visivelmente acontece e o que com certeza aconteceria é que permite que duas ideias opostas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Talvez o negócio seja aceitar que a eletricidade é e não é o que mata o Draygon, mesmo.

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Numa nota distinta mas não completamente desconexa, seria talvez oportuno colocar aqui uma outra questão: se um dilema lógico não tem absolutamente qualquer aplicabilidade na vida real, o quão relevante pode ser (mesmo que simplesmente como exercício de pensamento) discuti-lo? Que insight isso pode nos dar sobre o funcionamento do nosso universo, além de criar ainda mais perguntas sem resposta? E em que ponto essas perguntas vão definitivamente perder todo o valor semântico e virar só recursos retóricos? Quantas mais eu posso encaixar aqui sem apresentar uma conclusão nem deixar o leitor sair achando que este texto inteiro foi uma perda de tempo absurda? Boa noite.

Notas da Tradução do "Columbarium" de Olivia Tomokawa

#22 - concernente à etimologia de "イーガルっぽい" (iigaruppoi)

Outro bom exemplo do caráter maravilhosamente complexo desta obra: a frase "イッヒュ が イーガルっぽい アニマル を アスペクシー." (ihhyu ga iigaruppoi animaru o asupekushii), inclusa no "monólogo" do Sonho nº15, carrega tantas conotações sobrepostas que talvez tenha representado, sozinha, nosso maior desafio em toda a adaptação. Aqui (como no restante do capítulo) a sintaxe é puramente japonesa, se bem que "ocidentalizada": percebe-se um esforço consciente por parte da autora em evitar construções, por assim dizer, "exóticas" a ouvidos indo-europeus; e a estrutura das frases, todas iniciadas por "eus" de diversos idiomas e completas com verbos em latim, sugere uma reprodução ou paródia do estilo bíblico, particularmente do Apocalipse de São João. O tom grandiloquente e profético, repleto de simbolismos, concilia-se perfeitamente com os temas de morte e renascimento que permeiam estas páginas.
O detalhe essencial, contudo, é a palavra "イーガルっぽい" (iigaruppoi), mencionado apenas essa única vez em todo o livro (constituindo, portanto, um hápax legómenon): o sufixo nativo "-っぽい", escrito em hiragana, corresponde inegavelmente ao "-like" inglês nesse contexto; "イーガル", por outro lado, é bem mais difícil de se compreender. A maior parte das traduções internacionais o lê "eagle" (seguindo o exemplo da primeira edição americana, onde se encontra "I have beheld an eagle-like animal"), rendendo sempre algo semelhante a "Eu vi um animal como a águia"; diversas versões alemãs, todavia, preferem adaptar o trecho como "Ich habe ein igelartiges Tier angeschaut", ou seja, "Eu vi um animal como o ouriço". Algumas destas últimas o fazem de forma irrefletida; outras reconhecem a ambiguidade do termo, e tentam, em apêndices como este, oferecer alguma justificativa (como, por exemplo, o fato de a frase começar com "ich") para sua escolha.
Agora, é claro que, para esta nossa tradução do Columbarium, tal minúcia não deveria ser relevante em absoluto; "Igel" e "eagle" são leituras igualmente válidas de "イーガル", e a passagem em questão é por demais obscura e surreal para elucidar o problema. Feita uma leitura superficial da obra, e consideradas as tentativas prévias de tradução, estaríamos em nosso pleno direito caso resolvêssemos relegar a decisão entre as duas possibilidades (ou quaisquer outras que por acaso existam) aos dados do destino.
E é claro também que, como é de praxe em nossa profissão, a solução não é assim tão fácil.
Ocorre que os seguidores da senhorita Tomokawa já vêm desenvolvendo, há muito tempo (conforme pudemos verificar, desde antes de a autora atingir notoriedade internacional), suas próprias ideias sobre a identidade do iigaruppoi animaru. Certa teoria, bastante difundida, especula que haja ligação entre este e o ハリネズミ (Harinezumi, máquina de guerra descrita como um tanque recoberto de espigões) mencionado no Sonho nº5. O fato de existir aí um elemento designado abertamente pelo termo japonês para "ouriço" talvez implicasse que "イーガル" devesse denotar outra criatura; entretanto, a teoria afirma exatamente o oposto: que o "animal como o ouriço" é o Harinezumi (o emprego do alemão naquele caso não carregando em si qualquer significado especial), e que o cenário apocalíptico pintado pelo monólogo do Sonho nº15 se refere a um Apocalipse literal, um conflito armado de proporções aterradoras que subjazeria ao enredo de ambos os capítulos.
Ramificações dessa hipótese, é bom adicionar, envolvem o livro inteiro em uma narrativa única, tão ampla quanto tácita; algumas chegam mesmo a atribuir qualidades sobrenaturais aos relatos oníricos, tratando-os por verdadeiras profecias.
Parte do nosso trabalho aqui, portanto, é tentar adivinhar o que a autora poderia ter querido dizer com o que de fato disse; embrenhar-se no sentido fundamental da obra, ainda que a contragosto. Por um lado, talvez acabe por afetar a suspensão de descrença dos fãs que uma obra apresentada como simples compilação de sonhos possua, afinal, uma trama tão concreta e abrangente; por outro, quem há de dizer que não era essa mesmo a proposta? Não precisará o leitor desta labiríntica pérola que lhe sejam expostos, a esta altura, os muitos e extraordinários caminhos que a ficção pode tomar.
São situações como esta, enfim, que revelam a delícia e o tormento de nosso ofício: quando não se tem opção além de interferir ativamente naquilo que, por definição, deveríamos meramente transportar de um idioma a outro. Nestes casos, só nos resta torcer para que, mais do que estar "certos", estejamos suficientemente inspirados para a tarefa.

Patética Dialética

Eu não me considero exatamente uma pessoa cética. Às vezes, como os bokononistas daquele livro do Vonnegut, eu prefiro aceitar uma meia-verdade ou uma mentirinha inócua pelo bem da minha sanidade; a minha opinião muda com tanta freqüência que no fim das contas nem faz diferença. Mas, de qualquer forma, esta história não é sobre mim; esta é a história de um confronto épico e acirrado entre ideias igualmente estúpidas, e de como isso pode ser tão fascinante quanto é fútil.
Foi num fim de semana desses, tarde da noite; eu tava matando tempo num fórum sobre paranormalidade (eu acho um tópico interessante; não me julguem) e coisa e tal. Se vocês já frequentaram um site desse tipo, eu não preciso nem comentar quais são geralmente os assuntos: leituras de tarô, creepypastas, conspirações sem pé nem cabeça... Nada de muito promissor ou original, pra variar. Por mais que a gente queira acreditar, a maior parte das postagens é tão besta e vaga que é preferível continuar em dúvida.
Só que, claro (ou eu não teria começado a escrever isto em primeiro lugar), uma delas acabou se sobressaindo: um texto longo e pretensioso intitulado “a verdadeira magia”. A proposta já parecia intrigante pelo nome, mas o que chamou a minha atenção foi a menção a Gabrielle Madison; apesar de eu não ser um fã inveterado, o meu pai tinha vários dos livros dela (até é possível que tenham sido eles que despertaram em mim o gosto pelo oculto), e acho que eu posso dizer que entendo alguma coisa a respeito. Depois de decidir ir dormir assim que terminasse, então, eu fechei as outras abas e fui ler.
De cara deu pra ver que aquilo tinha saído da cabeça de alguém com uma paixão profunda (quase uma obsessão) pela obra da escritora; o estilo era aquela boa e velha salada pós-moderna de viagem surreal e jargão técnico, como o da própria. Se não fosse pelas referências a teosofia e Lovecraft, eu iria até pensar que era um caso de psicografia. Enfim, o cerne da coisa era uma reinterpretação de Pieces of Reality, partindo do razoável pressuposto de que o “mundo total” existe só dentro dos nossos cérebros (o autor nem tentou explicar como eles seriam conectados, mas eu imagino que isso não seja tão importante); uma espécie de solipsismo compartilhado, por mais contraditório que isso seja. Daí que os nossos “bugs mentais” não só afetariam a nossa própria percepção, mas em determinados casos a dos outros também: a “verdadeira magia” do título seria o domínio das “chaves” responsáveis por cada efeito, que (como nas falhas na lógica de um programa) na prática pareceriam completamente desconexos.
A conclusão que arrematou a teoria foi que todos os sistemas de magia e mistérios da História seriam como os “cultos à carga” melanésios: todos nascidos e esquematizados na tentativa dos nossos ancestrais de imitar os rituais reais (imitar de quem foi outra questão que ficou no ar; provavelmente astronautas alienígenas, como de costume), que eles simplesmente não conseguiam decifrar. Ou seja, tudo aquilo em que noventa por cento dos frequentadores do fórum acreditava seria bobagem pura.
Não demorou pra polêmica começar. Primeiro, vários seguidores da pensadora original (que por sinal eu nem sabia que existiam, que dirá que eram tantos) resolveram se manifestar: aquele “revisionismo” aparentemente só “manchava” uma hipótese de “correção científica perfeita” (palavras deles, é óbvio).  O OP então replicou, e foi  acompanhado por alguns recém-convertidos, que o ensaio dele era uma “progressão natural” das ideias da Madison; segundo ele, além de fazer ainda mais sentido, a nova tese esclarecia por que milênios de tradição esotérica não conseguiram nunca provar “a existência ou a efetividade dos seus princípios”. Esse último ponto atraiu pra briga também uma meia dúzia de místicos mais tradicionais, que retrucaram que a magia existe, sim e só não “funciona” pra quem não acredita/não é iluminado o suficiente. E, é claro, os trolls se misturaram a todas as facções, dando bomba só pra bagunçar a discussão.
Eu observei o debate por uns bons minutos, por várias divagações e digressões e insultos gratuitos; não sei se o que me prendeu foi a intensidade da conversa ou se no fundo eu queria acreditar que um dos lados tava certo. Talvez fosse tédio, mesmo. Pra resumir a fábula, eventualmente eu me convenci de que ninguém ali pretendia (ou tinha como, quem sabe, né?) apresentar evidências ou rebater premissas; só o que aconteceu foi que eu gastei meu precioso tempo entre argumentos de autoridade, numa disputa de egos sem sentido nenhum.
Logicamente, eu decidi naquela mesma hora dar um tempo com as pesquisas sobrenaturais; fechei o navegador e, assim que eu terminar de escrever este texto, vou fazer de conta que nunca ouvi falar dessa história.