In this same time our Lord shewed to me a ghostly
sight of his homely loveing. He shewed a littil thing the quantitye of an hesil
nutt in the palme of my hand, and it was as round as a balle. I lokid there
upon with eye of my understondyng and thowte, What may this be? And it was
generally answered thus: It is all that is made.
(Juliana de Norwich, Revelations of Divine Love)
Tinha sido durante uma reunião de
ex-colegas, James recordava, que ele ouvira a anedota. Teria acontecido, caso
fosse mesmo verídica, a um amigo, ou a um amigo de um amigo (alguém
preservado no fundo de sua memória, com certeza, como uma referência de
educação e cultura), sabe lá Deus quantas décadas atrás; passava agora em sua
cabeça como uma peça de teatro, distinta de todas as outras vezes mas mantendo
o mesmo enredo básico: a aula de Psicologia de uma universidade pública; a
aflição dos estudantes diante do anúncio de uma prova surpresa; o professor
apanha um dos assentos e, sorrindo de forma quase obscena, lança o desafio: provem
pra mim que esta cadeira não existe. Os discípulos se desfazem em
verborragias, regurgitando citações a todo teórico que lhes surge à mente,
revirando cada pequeno neurônio em busca da correta linha de raciocínio; e eis
que apenas um entre eles passa no teste: apenas um único desgraçado, que
se contentou em escrever “que cadeira?” e deixou a sala muito antes dos
outros.
“Esses cara são tudo louco”,
James se pegou dizendo a si mesmo, sem saber por que lembrara daquilo. O
pensamento o distraiu por um instante de seu propósito; a percepção veio
brusca, como um reflexo involuntário; e ele notou, resmungando, ter perdido
mais uma vez O Jogo.
A proposta de The Labyrinth não
era (segundo lhe haviam contado, pelo menos) muito diferente de grande parte dos
reality shows que vêm devorando espaços na grade de qualquer emissora
nos últimos anos: largar dezesseis desconhecidos em um local isolado e os
observar, 24 horas por dia, em sua ânsia pelo prêmio milionário. Os
particulares menos importantes eram que a locação seria um verdadeiro labirinto
subterrâneo, privado de luz solar ou qualquer outro método de mensuração de
tempo; e que a competição se daria em forma de campeonato, pondo sempre dois
participantes a disputar entre si uma vaga na etapa seguinte. O objetivo
de tal disputa, o detalhe que os produtores mais se enrolavam para explicar,
seria então “caçar” o oponente, emboscando-o (fosse nas sombras dos caminhos
entrecruzados ou nas brumas do sono) e o eliminando.
- ‘Cês tão querendo que eu mato
um cara? - James recordava ter perguntado, completamente aturdido, durante a
audição.
- Não, não... - os dois homens
responderam ao mesmo tempo, entre risos tão reconfortantes que pareciam
nervosos; um deles então continuou. - Você só tem que pegar o seu adversário de
surpresa, pular em cima dele ou só tocar nele por trás... O importante é que
ele não veja você. Quando isso acontecer, a gente acompanha tudo pela câmera, a
gente entra e confirma a sua vitória; você segue pra próxima rodada, ele volta
pra casa.
James nascera, como ele próprio gostava
de dizer (e possivelmente ouvira em algum seriado, sendo então atingido por um
senso de romantismo eufemístico), “no lado errado da cidade”. Passar longos
períodos de tempo em lugares escuros e apartados do mundo não era algo que lhe
desse prazer, mas era algo em que (feliz- ou infelizmente) ele admitia possuir
vasta experiência. Os produtores, no entanto, não o haviam questionado acerca
disso além de um simples “sim ou não” no questionário de admissão; e, caso
chegasse a ser campeão, o prêmio era mais do que suficiente para quitar todas
as dívidas que fizera ou sonhara poder fazer na vida. Divorciado, sem filhos,
ele literalmente não tinha coisa alguma a perder.
Os primeiros estágios do programa se
passaram sem maiores problemas. Enquanto James estava acostumado a proceder com
cautela e concentração absolutas, seus oponentes eram barulhentos, descuidados
e se desesperavam muito facilmente; por mais que precisasse vagar sem rumo por
uma imensidão de passagens intricadas, cedo ou tarde ele os encontrava chorando
ou roncando em algum canto. O maior desafio, na verdade, era lidar com a
ausência de um fluxo temporal perceptível: sem horários fixos para o
que quer que fosse, ele já havia desistido de tentar estimar a duração de sua
estada naquele lugar. Aquilo sempre o fazia pensar em um artigo que lera
em certa ocasião, sobre como pessoas que viajam com frequência tendem a
se “desprender” do tempo; uma aeromoça, ele lembrava nitidamente, relatara
como havia feito três voos entre Barcelona e Los Angeles em um dia, almoçado
três vezes e ainda chegado em casa antes de escurecer.
Era assim que James se sentia: como se
um minuto pudesse durar uma eternidade, e mil passos não o levassem a lugar
algum. As vistas ao longo do percurso apenas consolidavam esse
sentimento: certas áreas ainda continham um ou outro traço marcante, e ele
tentava manter suas localizações como a Arca da Aliança em sua mente;
mas os longos túneis que as conectavam, as salas intermediárias e toda sorte
de viela e encruzilhada e fim-da-linha, todos eram monotonamente
idênticos. Com frequência, ele se deixava perder em reflexões, hipnotizado pela
marcha regular e silenciosa; quando dava por si, de sobressalto, sentia-se
repentinamente vulnerável, e se amaldiçoava por perder O Jogo.
Outras pessoas além de seu presente
rival também habitavam o labirinto, todavia, em pequenas “vilas"
aonde os participantes eram instruídos a ir para comer e dormir; mas eram todos
personagens, representados por atores profissionais, preparados para reagir
dessa ou daquela forma dependendo das ações de seus interlocutores. Um diretor
lhe havia advertido a respeito, e James se convencera a interagir o mínimo
possível com aquelas pessoas; julgava que permanecer em tais recintos por muito
tempo o faria um alvo óbvio. O fato de os intérpretes serem periodicamente
substituídos, fazendo com que um mesmo “morador” parecesse poder transmutar o
rosto e a voz à vontade, não melhorava a situação.
De uma forma ou de outra, por habilidade
ou por pura sorte, o fato é que James havia chegado à grande final. Como
ocorrera ao conquistar as fases anteriores, foram-lhe mostrados clipes dos
movimentos e táticas de seu próximo adversário, gravados durante as vitórias
deste; mas isso acontecia em uma salinha adjacente ao curso principal do
labirinto, habitualmente trancada, e nunca lhe foi permitido deixar o set
por sequer um instante. Essas, aliás, eram as únicas ocasiões em que a produção
do reality se fazia notar; e nenhum
dos contrarregras que o acompanhavam, ele constatara desde o início, usava
relógio. Não fazia diferença, porém: tudo em que ele conseguia pensar é que
precisava apenas fazer, uma vez mais, o mesmo que já vinha fazendo havia sabe
lá Deus quanto tempo.
E agora, agora que ele quase
podia sentir a recompensa em suas mãos e visualizar tudo que adquiriria assim
que saísse daquele arquipélago, era como se o fim de suas tribulações lhe
fugisse. Sua presa parecia absolutamente indetectável. A princípio julgara que a
ansiedade lhe estivesse a distorcer ainda mais a percepção do tempo, e que seus triunfos
passados o houvessem tornado desatento; mas por fim tinha já a
certeza de que a derradeira rodada da disputa estava se estendendo muito além
do que deveria. Flashbacks de momentos desditosos de sua vida vieram
assombrá-lo, conforme espreitava angustiadamente por esquinas mal
iluminadas e vazias; os atores, quando os encontrava, só lhe provocavam
asco com suas expressões preconcebidas. Ninguém lhe comunicara qualquer
mudança de planos; e, no entanto, o outro finalista não estava em lugar algum.
Suas suspeitas começaram pelo trajeto
mais lógico: não havia outro finalista. Era a única explicação possível;
a questão era por quê? Aquilo tudo seria uma piada? Seria razoável
imaginar que todas as etapas passadas teriam servido simplesmente de isca
para convencê-lo da realidade da competição? Ainda assim, a fraude
deveria ter um motivo. Precisava haver um motivo. Talvez ele de fato
estivesse em um programa de televisão, algo como uma versão particularmente
terrível d’O Show de Truman; ou, então, em um experimento de cientistas,
psiquiatras, uma casta qualquer de malucos que se comprouvesse em assistir ao
lento ocaso de suas esperanças e chamá-lo “estudo”. Esperava, ao menos,
que alguém o estivesse observando.
Quem sabe... Quem sabe ele só precisasse
admitir a derrota? Cair de joelhos, desabar em choro e gritar para
câmeras invisíveis que não possuía em si mais forças para continuar; quem sabe essa
fosse a condição necessária para a vitória, afinal de contas. Quem quer
que fosse a mente por trás daquela pantomima, ela parecia ser sádica o
suficiente para estipular tal regra. O medo de arriscar e acabar
“morrendo na praia” (ou sofrendo sabe lá Deus que tipo de reprimenda), contudo, o
mantinha de boca fechada.
Já não mais visitava as vilas, exceto
quando a fome se tornava insuportável; então agarrava o primeiro alimento que
visse e se punha em marcha novamente, mal captando uma insinuação de sentimento
(que talvez fosse medo, talvez pena) nos rostos aparvalhados dos moradores.
Quando encontrava sinais quaisquer de presença humana em suas andanças, julgava
sempre que ele próprio os houvesse causado (mesmo que fossem sons vindos de
outra sala, ou vultos em movimento em sua visão periférica). Convencera-se de
que os outros desejavam que esperasse, e assim o fazia. Uma sensação
inquietante lhe dizia que, quando enfim resolvessem lhe entregar o título de
campeão do labirinto, descobriria que sua jornada inteira não durara mais que
umas duas semanas. Até lá, manter-se-ia concentrado em sua paciência.
Se pensavam que ele estivesse cedendo à loucura, isso seria a última
coisa que demonstraria (mesmo que fosse verdade).
Certa vez, recordou-se de um trecho de
um livro que um dia lera, chamado Livro das Coisas Sem Nome: “A
dissonância que se percebe entre a memória de um querido objeto da infância e a
aparência que porta o mesmo ao ser encontrado anos depois. Se tal dissonância
deve ser atribuída a um mistério ontológico ou a meros fatores psicológicos
depende das inclinações filosóficas de cada um”, dizia, letra por letra, a
descrição de um termo inexistente. James se divertiu ingenuamente com a
lembrança, quase como se pudesse tomar seu significado nas mãos; então
compreendeu, talvez muito tarde, que mais uma vez se havia permitido
distrair-se; estalou os dedos diante do rosto, apressou o passo e tentou
esquecer ter perdido O Jogo.