Brasis

O deputado Jean Wyllys escreveu, algum tempo atrás, que a “divisão” de nosso país aparentemente exposta durante e após as eleições é na verdade muito mais antiga e profunda do que o horário eleitoral nos quis fazer crer: falou do abismo, típico de regimes capitalistas, que existe entre ricos e pobres, brancos e não-brancos, héteros e LGBTs etc.; em certo ponto, usou literalmente a expressão “esses dois ‘brasis’”. Evidente que, por mais bem-intencionado que tenha sido, seu posicionamento político acabou impresso no texto, na medida em que buscou demonstrar que essa “linha” tem se diluído nos últimos tempos. Sem discordar inteiramente da opinião do deputado, e no entanto sem querer impor qualquer pendor partidário (ainda que admitindo a possibilidade de que isso ocorra de forma inadvertida), eu gostaria de ir um pouco além nessa análise.
Comecemos pelo começo. Os únicos Brasis tangíveis, definíveis e inevitáveis, são dois: o Brasil espaço geográfico, este que começa no Chuí e termina no Oiapoque, cujas fronteiras são (para fins oficiais) muito bem delimitadas; e o Brasil entidade política, a máquina estatal propriamente dita, legitimado (ao menos entre seus pares) como responsável pela administração daquele e ao qual, tendo aqui nascido, somos submetidos. Quaisquer outros Brasis não passam de projeções abstratas, subjetivas e superpostas umas às outras: a cultura “brasileira”, por exemplo, é apenas um conjunto extremamente heterogêneo de movimentos que, por este ou aquele percalço da história, calharam de acontecer por estas bandas; à exceção das poucas instâncias de intercomunicação do governo com os que aqui habitam (as variadas formas de manifestação popular, independentemente de seu pretenso efeito prático), não há relação direta entre o Brasil e os brasileiros.
E ainda assim temos orgulho; isso, ou algo de subconsciente que em efeito prático o simula. Patriotismo ou patriotada, levamos um “Brasil” uníssono na mente, um amálgama dessa confusão toda, que nos emerge à mente ao olharmos a bandeira ou ouvirmos o hino. Esse reino etéreo nós o construímos durante a vida, moldamo-lo de acordo com nossas opiniões e preconceitos particulares (comerciais de cerveja à parte) e o rotulamos de “único”. Instintivamente acreditamos que o Brasil do vizinho é o mesmo nosso, talvez por convicção, talvez por comodidade.
Poder-se-ia replicar, é claro, que esse é o mesmo esquema intelectual pelo qual compreendemos a identidade de qualquer coisa identificável; o ponto aqui é como, nesse caso específico, a compreensão de cada indivíduo acaba influenciando a toda a população.
É redundante falar em “divisão” do Brasil, sob qualquer perspectiva; se o momento político dos últimos meses nos afetou em algo, foi exatamente em coagular opiniões consideravelmente diferentes em dois blocos vagos. A tendência a um raciocínio simplista e inflamado por amores irracionais (quase sempre agradável aos titereiros do status quo e portanto alimentado pela mídia de massa) é, mais do que uma efeméride do processo eleitoral, uma falha profunda da comunicação humana que talvez mereça um outro ensaio algum dia; o caso é que, dos que votaram no candidato A no segundo turno, há uma percentagem que verdadeiramente o apoiava, uma outra que simplesmente era contra o candidato B, outra que confiou na dica do candidato C em que votou no primeiro turno… E uma vasta gama de projetos e ideias, talvez muito mais afins às dos votantes, foram descartadas na base da especulação eleitoreira: candidatos ditos “pequenos” não foram eleitos apenas porque se presumiu, antecipadamente, que não o seriam.
No fim das contas restam duas metades tortas, talvez mais desiguais internamente do que entre si; que o diga essa aberração neo-fascista que explodiu após o fim das eleições e propôs tornar a “linha” transbrasileira (do modo como a enxergam) em um limite físico, essa que nem o pitoresco Olavo de Carvalho sonha em adotar. Essas pessoas já existiam e já pensavam assim, apenas não haviam tido ainda uma oportunidade de extravasar suas psicoses; seu levante surgiu como uma excrecência (talvez) imprevista do atrito entre os dois lados, dessa dicotomia ainda não desconstruída do nosso paradigma cultural. Não pertencem oficialmente a nenhum dos dois, mas ambos culpam um ao outro por sua criação.
Enfim, como frequentemente ocorre, o fato é que o próprio ato de procurar por linhas as torna verdadeiras. Os abismos existem, mais profundos e complexos do que o velho par-ou-ímpar, uns dentro dos outros e impassíveis a categorizações rígidas; por consequência, assim também devem ser as tentativas de união, do contrário não farão senão nos segregar ainda mais.

Crônicas do Fim do Mundo XI - Verbum pro Verbo

Áno ppuset fóla djor/O vóla kháno tor pjuset, escreveu Emýra, maior poeta do temól clássico. “O vento leva as folhas de outono/E o vento leva as folhas de outono”, é a tradução literal; as sutis e melancólicas conotações de cada arranjo sintático, entretanto, passam despercebidas a quaisquer ouvidos leigos. O que, hoje, equivale a dizer qualquer ouvido que não seja o meu.
As conotações passam despercebidas; despercebidas as conotações passam; passam as conotações despercebidas: o português é uma linguagem insípida, enfadonha. Cada unidade semântica é fechada em si própria; os joguinhos inócuos dos nossos escritores, buscando abrir novos caminhos de significância, redundam contudo em ampla saturação. Tal limitação é inerente à organização (essencialmente linguística) de nossos pensamentos.
É por isso que eu dediquei meus melhores anos (meus únicos anos, diria) à pesquisa do temól. Um idioma que não possui nenhuma unidade básica fixa; os signos, fluidos, se distribuem em um equilíbrio tanto livre quanto rítmico, como os átomos de um cristal. Um idioma extinto, cujas características eu precisei mendigar em diversos e esquecidos livros escritos em outros diversos e esquecidos idiomas; o conteúdo acessível online a respeito não passava de um punhado de comentários superficiais e notas de rodapé. Todo o corpo ainda existente da língua eu passei compilando, por quinze longos anos; mesmo que algumas lacunas eu tenha que ter preenchido por conta própria, tudo se encaixava cabalisticamente e sem qualquer contrariedade.
E então veio a Guerra. Veio e passou. Eu me havia trancado em um escritório da universidade; dali fugi às pressas para o bunker subterrâneo quando os clarões começaram, e dali de volta para o escritório quando eles cessaram novamente. O esforço foi só o de carregar os velhos papéis de um lugar para o outro; em momento algum meu trabalho foi interrompido. A Guerra, então, veio.
Eu deveria ter previsto que isso aconteceria, por conta da dificuldade que tive em encontrar cada gota de informação; meu empenho não me permitiria jamais parar, mas acho que eu sempre soube. Os escassos especialistas que eu consegui contatar, mesmo antes das bombas começarem a cair, estavam todos muito concentrados em projetos “mais importantes”; logo estavam todos muito mortos para qualquer projeto. Não havia ninguém; ninguém mais no planeta possuía um nível de conhecimento suficientemente avançado para ler sequer uma frase em temól.
E o que é um livro, por mais denso e minucioso que seja, se ninguém pode lê-lo? O que são os símbolos de nosso alfabeto latino, tão adoravelmente organizados e práticos, sem uma mente humana para lhes atribuir significado? E eu, isolado em pensamentos quase extintos, o que sou? Isolado em quase extintos pensamentos, o que sou eu? O que sou, em pensamentos quase extintos isolado, eu?
Eco.