Breve Compêndio de Pseudeisegeses II - Cataratas da Alma

Algumas pessoas temem que a existência de um Deus, ser onisciente, implicaria necessariamente na inexistência do livre-arbítrio: ora, se o futuro é de alguma forma cognoscível, então é impossível alterá-lo; nossas vidas já estão definidas antes que as vivamos. Contudo, um pensamento ainda mais inquietante é que esse raciocínio pode se manter mesmo sem a interferência de uma entidade suprema.
Viver é o ato de fazer escolhas: antes de nascermos, já muitas delas foram feitas sem nosso consentimento; as condições sob as quais viemos ao mundo delimitam consideravelmente os caminhos que podemos tomar. Cada escolha nossa afunila ainda mais o leque de opções. É como descer um rio que se desdobra em um largo delta: a princípio, existe uma miríade de fozes pelas quais se pode chegar ao mar; entretanto, quanto mais se navega, menos e menos saídas restam. E não há como se remar de volta contra a corrente.
Em algum ponto ao longo do caminho, o caminho deve-se tornar previsível (mesmo que nós não o prevejamos); em algum momento, o viver se torna um não-viver, mas apenas um deslizar vida abaixo: apenas as consequências de escolhas pretéritas, amontoando-se umas sobre as outras em um ritmo exponencial. Paradoxalmente, quanto mais se vive, menos se vive. ​
E aí se encaixam todos os instantes de dúvida, todas as tentativas de se mudar de rumo ou se portar de forma inesperada: o desconsolo surge simplesmente em função de alguma decisão que foi ou não tomada no passado, e a “mudança” já estava então determinada. A ação mais ilógica e desesperada tem sempre uma motivação, mesmo que essa seja a de se agir desesperada e ilogicamente.
Isso talvez explique por que algumas pessoas dizem que a vida é feita de “ciclos”: vicia-se, arrepende-se, torna-se a recair; a necessidade de se obter mais dinheiro, a qualquer custo, vem da obtenção de muito dinheiro em primeiro lugar, e a eventual caridade é só um desencargo de consciência; o álcool pune o sexo que aquieta os traumas que se embalam em medos mais velhos que nós.
Talvez, também, isso explique por que alguns se encarregam de registrar o óbvio, como se isso de alguma forma os pudesse remover do ciclo; o que, é claro, é ridículo, mas inevitável.
        

Pragmatismo Surrealista

A lua vagava alto no céu sobre a branca floresta de Loldoreth naquela fria noite de inverno. A comitiva da princesa Gwendolyn, imbuída do senso de coragem e responsabilidade que é intrínseco aos protagonistas de romances de fantasia, seguia obstinada em sua missão sagrada para salvar o reino; naquela noite, entretanto, uma outra preocupação os acometia: Ulberth, o sábio ancião que vinha até aí servindo como mentor da jovem princesa, fora ferido em batalha e seu fim se acercava. O grupo se apressava em direção à vila mais próxima, na esperança de poder ainda resgatá-lo das garras da morte.
- É inútil, criança. - sussurrou Ulberth, em um sorriso resignado, enquanto o orc Grumb o carregava nas costas. - Minha hora chegou.
- Não! - respondeu a princesa, muito à frente de seus companheiros, andando a passos largos à procura de quaisquer indícios de presença humana na escuridão entre as árvores. - Estamos perto de Lorna, e de Muir-cael... Os camponeses vão nos ajudar...
- Você não pode se desviar demais do caminho para a Passagem. Grumb, me ponha no chão.
O orc aquiesceu, e a comitiva interrompeu sua marcha.
- Ulberth... - murmurou Gwendolyn, relutante em desistir de salvar seu velho mestre.
- Eu preciso partir, minha menina. Minha morte deverá demarcar o fim de sua inocência, e permanecer em seu coração como um incentivo ao seu desenvolvimento como líder...
A princesa sentiu seus olhos encherem-se de lágrimas, certa de que aquele bocado de astúcia narrativa representava em verdade um sinal definitivo de que vida se esvaía do corpo do ancião.
- Ouçam bem, vocês todos. - continuou ele, entre tosses e gemidos de dor. - O guardião da Passagem é uma Esfinge, um ser que se diz onisciente... Ela exigirá que vocês lhe façam uma única pergunta; caso não saiba a resposta, ou responda de forma errada, ela lhes dará passagem.
- E se ela responder certo? - perguntou Myrinox, a adorável abominação híbrida de coelho, pônei e porco-espinho que fornecia o alívio cômico à jornada.
- Ela os devorará, a todos.
Um grande pavor então tomou conta da comitiva, e uma discussão desordenada principiou.
- Escutem, escutem... - insistiu Ulberth, agarrando-se aos últimos fiapos de controle que ainda mantinha sobre sua mente. - Há um detalhe: o monstro pensa saber tudo, e isso em grande medida é verdade...
- Nós vamos morrer! - choramingou Myrinox. - Isso é suicídio!
- ... Mas ela não tem como saber o que não sabe que não sabe.
- Isso nem ao menos faz sentido! Nós vamos morrer!
- Princesa - o velho tornou-se para Gwendolyn, ignorando o tumulto ao seu redor; falou no tom mais formal e nobre que conseguiu conjurar com a garganta transbordando de sangue. -, isto talvez a auxilie na resolução do enigma.
Dito isso, puxou de dentro de sua túnica, com mãos trêmulas, uma correntinha de metal vulgar; e uma pequena haste cilíndrica, também metálica, atrelada àquela por uma argola em uma de suas extremidades e portando dois dentes retangulares na oposta.
- Uma chave? - perguntou a princesa, perplexa. - Eu não entendo como isto pode nos ajudar, meu amigo... O que ela abre?
Os olhos de Ulberth de repente se arregalaram, e ele gargalhou com todas as forças que ainda lhe restavam.
- Nada! - respondeu, simplesmente; e então morreu, em uma onda agonizante de lamúrias guturais e risos insanos, sobre o chão branco de Loldoreth.  

*

O grupo agora se aproximava da Passagem entre os picos de Ermenekh e Kerkhumehna, único caminho viável entre os dois lados da cordilheira de Ekh. O enterro de Ulberth fora breve, e nenhum dos viajantes parecia disposto a discutir sentimentos ou debater a validade de arquétipos mitológicos. Gwendolyn decidira que, sem os preciosos conselhos do ancião a guiá-los, mais dedicação e pressa ainda eram necessárias em sua jornada; os outros dois não ousaram ir contra sua vontade, por atemorizados que estivessem.
O desfiladeiro não era vigiado por sentinelas humanas, e o último vilarejo havia sido deixado para trás milhas antes. O ambiente que os circundava era uma simples estrada rochosa, vazia e soturna, que seguia inequivocamente em direção ao monstro que temiam em silêncio. Ninguém se atrevia a dizer palavra.
Foi apenas quando o sol poente lançava sombras longas adiante de seus passos que uma voz trovejante os fez congelar em seu percurso.  
- Bem-vindos, forasteiros. - pronunciou-se a Esfinge, e se arrojou de um penhasco baixo à esquerda, onde se havia ocultado nas trevas, para ir ao encontro da comitiva; sua aparência era a de um portentoso leão, mas seu rosto era de homem. Como nem a princesa nem seu séquito se atrevessem a responder, continuou. - Eu imagino que, havendo gasto seu tempo ao vir aqui, vocês compreendam o destino que lhes aguarda.
- Sim. - Gwendolyn enfim conseguiu falar. - Estamos aqui para vencer seu desafio, e seguir a Passagem até o outro lado da cordilheira.
- Menina tola - a criatura riu-se. -, ninguém jamais me derrotou.
- Eu serei a primeira.
- Pois então pergunte. Pergunte qualquer coisa; eu sei tudo!
Nesse momento, lembranças da morte de Ulberth voltaram à mente da princesa: ela enxergou a corrente, que agora trazia ao pescoço, envolta em uma névoa cor de sépia; ouviu o ancião pronunciar lentamente a enigmática frase “ela não tem como saber o que não sabe que não sabe”, entrelaçada ao ruído obsceno de sua gargalhada final. Aquilo precisava fazer algum sentido.
- Gwen... - balbuciou Myrinox, tomado de pavor, diante do silêncio da jovem. - Pergunta alguma coisa...
Em um movimento súbito, quase um espasmo, Gwendolyn então tomou o objeto de seu pensamento nas mãos, e o ergueu de forma calma e concentrada à frente de si.
- O que é isto? - perguntou, apenas.
Grumb ajoelhou-se ao chão e se entregou ao desespero; Myrinox sentiu um grito lancinante lhe subir à garganta, impedido de fluir por mero horror. A própria Esfinge teve de conter um riso de surpresa, e se permitiu alguns instantes para analisar a pergunta de forma mais profunda.
- É um truque. - respondeu, então. - Você deve definir se a pergunta se refere a esse adereço como um todo, ou apenas ao que está preso à corrente.
A princesa suspirou pesarosamente, e ainda ficou em silêncio por mais um segundo.
- O que está preso... - adicionou, em um sussurro.
O monstro gargalhou, deliciado, em antecipação à refeição generosa que imaginava ter em seguida.
- É uma chave, velha e enferrujada. Agora, quem quer ser devorado...
- Só um segundo. - Gwendolyn o interrompeu, quando os outros dois já se preparavam para fugir de volta tão rápido quanto suas pernas permitissem. - Você tem certeza de sua resposta?
- Claro que sim. É uma chave. O que mais seria?
- Se isto é uma chave, o que é que ela abre?
A Esfinge arregalou os olhos. Vasculhando os confins de sua mente milenar, percebeu que, de fato, nenhum dos incontáveis baús, celas, jaulas ou cadeados contidos em sua memória, nenhum deles era aberto por aquele particular objeto.
- Mas...
- Mas - a princesa replicou, um sorriso confiante em seus lábios. - a definição de uma chave é a de um utensílio cuja finalidade precisa é abrir coisas. Você errou, Esfinge; a resposta correta seria “um objeto metálico confeccionado no formato de uma chave”.
Embasbacada, a criatura emitiu um urro amedrontador, e sentiu seu corpo derreter como a neve sob o sol da primavera.

*

- Gwen esperta! - exclamou Grumb, levando a princesa nas costas pelo caminho descendente na manhã seguinte.
- Obrigada, Grumb. - Gwendolyn sorria, aliviada. - Mas eu acho que isso era o que Ulberth planejava desde o início...
- Porque ele confiava em você, princesa. - adicionou Myrinox, enquanto saltitava bobamente ao redor. - Todos nós confiamos.
- Eu sei, Myri.
Apesar de haverem tido as rochas do desfiladeiro como cama, a noite anterior fora a melhor que dormiram em semanas; e, apesar de o céu estar agora cinzento com sinais de uma tempestade iminente, a comitiva não poderia estar mais entusiasmada.
- Sabe o que é engraçado? - perguntou o pequeno mascote, de repente, após alguns minutos de absoluto silêncio. - Foi essa “pseudo-chave” que nos permitiu passar por aquela coisa; tecnicamente, foi ela que abriu o caminho para nós. Isso não significaria que...
Antes que ele pudesse terminar a frase, um trovão ressoou nos céus com um ruído vagamente semelhante à voz da Esfinge; os três então pararam, se entreolharam por uma fração de segundo e se puseram a descer o restante da estrada o mais rápido que conseguiram.