A lua vagava
alto no céu sobre a branca floresta de Loldoreth naquela fria noite de inverno.
A comitiva da princesa Gwendolyn, imbuída do senso de coragem e
responsabilidade que é intrínseco aos protagonistas de romances de fantasia,
seguia obstinada em sua missão sagrada para salvar o reino; naquela noite,
entretanto, uma outra preocupação os acometia: Ulberth, o sábio ancião que vinha
até aí servindo como mentor da jovem princesa, fora ferido em batalha e seu fim
se acercava. O grupo se apressava em direção à vila mais próxima, na esperança
de poder ainda resgatá-lo das garras da morte.
- É inútil,
criança. - sussurrou Ulberth, em um sorriso resignado, enquanto o orc Grumb o
carregava nas costas. - Minha hora chegou.
- Não! - respondeu
a princesa, muito à frente de seus companheiros, andando a passos largos à
procura de quaisquer indícios de presença humana na escuridão entre as árvores.
- Estamos perto de Lorna, e de Muir-cael... Os camponeses vão nos ajudar...
- Você não
pode se desviar demais do caminho para a Passagem. Grumb, me ponha no chão.
O orc
aquiesceu, e a comitiva interrompeu sua marcha.
- Ulberth...
- murmurou Gwendolyn, relutante em desistir de salvar seu velho mestre.
- Eu preciso
partir, minha menina. Minha morte deverá demarcar o fim de sua inocência, e
permanecer em seu coração como um incentivo ao seu desenvolvimento como
líder...
A princesa
sentiu seus olhos encherem-se de lágrimas, certa de que aquele bocado de
astúcia narrativa representava em verdade um sinal definitivo de que vida se
esvaía do corpo do ancião.
- Ouçam bem,
vocês todos. - continuou ele, entre tosses e gemidos de dor. - O guardião da
Passagem é uma Esfinge, um ser que se diz onisciente... Ela exigirá que vocês
lhe façam uma única pergunta; caso não saiba a resposta, ou responda de forma
errada, ela lhes dará passagem.
- E se ela responder certo? - perguntou
Myrinox, a adorável abominação híbrida de coelho, pônei e porco-espinho que
fornecia o alívio cômico à jornada.
- Ela os devorará, a todos.
Um grande pavor então tomou conta da
comitiva, e uma discussão desordenada principiou.
- Escutem, escutem... - insistiu Ulberth,
agarrando-se aos últimos fiapos de controle que ainda mantinha sobre sua mente.
- Há um detalhe: o monstro pensa saber tudo, e isso em grande medida é
verdade...
- Nós vamos morrer! - choramingou Myrinox. -
Isso é suicídio!
- ... Mas ela não tem como saber o que não
sabe que não sabe.
- Isso nem ao menos faz sentido! Nós vamos
morrer!
- Princesa - o velho tornou-se para Gwendolyn,
ignorando o tumulto ao seu redor; falou no tom mais formal e nobre que
conseguiu conjurar com a garganta transbordando de sangue. -, isto talvez a
auxilie na resolução do enigma.
Dito isso, puxou de dentro de sua túnica,
com mãos trêmulas, uma correntinha de metal vulgar; e uma pequena haste
cilíndrica, também metálica, atrelada àquela por uma argola em uma de suas
extremidades e portando dois dentes retangulares na oposta.
- Uma chave? - perguntou a princesa,
perplexa. - Eu não entendo como isto pode nos ajudar, meu amigo... O que ela
abre?
Os olhos de Ulberth de repente se
arregalaram, e ele gargalhou com todas as forças que ainda lhe restavam.
- Nada! - respondeu, simplesmente; e então
morreu, em uma onda agonizante de lamúrias guturais e risos insanos, sobre o
chão branco de Loldoreth.
*
O grupo agora se aproximava da Passagem
entre os picos de Ermenekh e Kerkhumehna, único caminho viável entre os dois
lados da cordilheira de Ekh. O enterro de Ulberth fora breve, e nenhum dos
viajantes parecia disposto a discutir sentimentos ou debater a validade de
arquétipos mitológicos. Gwendolyn decidira que, sem os preciosos conselhos do
ancião a guiá-los, mais dedicação e pressa ainda eram necessárias em sua
jornada; os outros dois não ousaram ir contra sua vontade, por atemorizados que
estivessem.
O desfiladeiro não era vigiado por sentinelas
humanas, e o último vilarejo havia sido deixado para trás milhas antes. O
ambiente que os circundava era uma simples estrada rochosa, vazia e soturna, que
seguia inequivocamente em direção ao monstro que temiam em silêncio. Ninguém se
atrevia a dizer palavra.
Foi apenas quando o sol poente lançava
sombras longas adiante de seus passos que uma voz trovejante os fez congelar em
seu percurso.
- Bem-vindos, forasteiros. - pronunciou-se a
Esfinge, e se arrojou de um penhasco baixo à esquerda, onde se havia ocultado
nas trevas, para ir ao encontro da comitiva; sua aparência era a de um
portentoso leão, mas seu rosto era de homem. Como nem a princesa nem seu
séquito se atrevessem a responder, continuou. - Eu imagino que, havendo gasto
seu tempo ao vir aqui, vocês compreendam o destino que lhes aguarda.
- Sim. - Gwendolyn enfim conseguiu falar. -
Estamos aqui para vencer seu desafio, e seguir a Passagem até o outro lado da
cordilheira.
- Menina tola - a criatura riu-se. -,
ninguém jamais me derrotou.
- Eu serei a primeira.
- Pois então pergunte. Pergunte qualquer
coisa; eu sei tudo!
Nesse momento, lembranças da morte de Ulberth
voltaram à mente da princesa: ela enxergou a corrente, que agora trazia ao
pescoço, envolta em uma névoa cor de sépia; ouviu o ancião pronunciar
lentamente a enigmática frase “ela não tem como saber o que não sabe que
não sabe”, entrelaçada ao ruído obsceno de sua gargalhada final. Aquilo precisava
fazer algum sentido.
- Gwen... - balbuciou Myrinox, tomado de
pavor, diante do silêncio da jovem. - Pergunta alguma coisa...
Em um movimento súbito, quase um espasmo,
Gwendolyn então tomou o objeto de seu pensamento nas mãos, e o ergueu de forma
calma e concentrada à frente de si.
- O que é isto? - perguntou, apenas.
Grumb ajoelhou-se ao chão e se entregou ao
desespero; Myrinox sentiu um grito lancinante lhe subir à garganta, impedido de
fluir por mero horror. A própria Esfinge teve de conter um riso de surpresa, e
se permitiu alguns instantes para analisar a pergunta de forma mais profunda.
- É um truque. - respondeu, então. - Você deve
definir se a pergunta se refere a esse adereço como um todo, ou apenas ao que
está preso à corrente.
A princesa suspirou pesarosamente, e ainda ficou
em silêncio por mais um segundo.
- O que está preso... - adicionou, em um
sussurro.
O monstro gargalhou, deliciado, em
antecipação à refeição generosa que imaginava ter em seguida.
- É uma chave, velha e enferrujada. Agora,
quem quer ser devorado...
- Só um segundo. - Gwendolyn o interrompeu,
quando os outros dois já se preparavam para fugir de volta tão rápido quanto
suas pernas permitissem. - Você tem certeza de sua resposta?
- Claro que sim. É uma chave. O que mais
seria?
- Se isto é uma chave, o que é que ela abre?
A Esfinge arregalou os olhos. Vasculhando os
confins de sua mente milenar, percebeu que, de fato, nenhum dos incontáveis
baús, celas, jaulas ou cadeados contidos em sua memória, nenhum deles
era aberto por aquele particular objeto.
- Mas...
- Mas - a princesa replicou, um
sorriso confiante em seus lábios. - a definição de uma chave é a de um
utensílio cuja finalidade precisa é abrir coisas. Você errou, Esfinge; a
resposta correta seria “um objeto metálico confeccionado no formato
de uma chave”.
Embasbacada, a criatura emitiu um urro amedrontador,
e sentiu seu corpo derreter como a neve sob o sol da primavera.
*
- Gwen esperta! - exclamou Grumb, levando a
princesa nas costas pelo caminho descendente na manhã seguinte.
- Obrigada, Grumb. - Gwendolyn sorria,
aliviada. - Mas eu acho que isso era o que Ulberth planejava desde o início...
- Porque ele confiava em você, princesa. -
adicionou Myrinox, enquanto saltitava bobamente ao redor. - Todos nós
confiamos.
- Eu sei, Myri.
Apesar de haverem tido as rochas do
desfiladeiro como cama, a noite anterior fora a melhor que dormiram em semanas;
e, apesar de o céu estar agora cinzento com sinais de uma tempestade iminente, a
comitiva não poderia estar mais entusiasmada.
- Sabe o que é engraçado? - perguntou o
pequeno mascote, de repente, após alguns minutos de absoluto silêncio. - Foi essa
“pseudo-chave” que nos permitiu passar por aquela coisa; tecnicamente, foi ela
que abriu o caminho para nós. Isso não significaria que...
Antes que ele pudesse terminar a frase, um
trovão ressoou nos céus com um ruído vagamente semelhante à voz da Esfinge; os
três então pararam, se entreolharam por uma fração de segundo e se puseram a
descer o restante da estrada o mais rápido que conseguiram.