E o homem se convenceu de que não passava de um personagem: toda sua vida, suas memórias e gostos, seu emprego estafante e o tamanho de seu pênis, tudo havia sido esquematizado por um escritor ruim que, possivelmente muito recalcado, despejava seus surtos de sadismo sobre sua pobre existência inexistente. Todas as suas lembranças, aliás, poderiam ter sido implantadas recentemente: aquela madrugada esquisita, brotada de sonhos irrequietos, poderia ter sido em verdade sua primeira madrugada; o despertar, seu real nascimento, in medias res, frágil e solto, não apenas num mundo hostil, mas numa vida hostil e totalmente nova. O que veio antes? Houve um “antes”?
E a dor e as dúvidas o dominaram. Se esse deus-escritor era quem lhe definia cada movimento, cada ato, cada pensamento, então não existia livre-arbítrio. O curso de sua vida estava limitado às idéias de um louco, um autor com manias de autoridade, convencido a governá-lo como um misto de pai, chefe, general e amante obsessivo.
Pensou em suicídio, naturalmente; porém, coincidência ou não, todas as suas tentativas foram falhas. Fora as tímidas, aquelas já planejadas pra não darem certo, às decididas, quando se dispunha a fazê-las, faltava-lhe coragem. Inconformado, blasfemava, um punho erguido ao ar, o outro segurando a faca ainda inocente, incapaz mesmo de arranhar o pulso. Você que me fez assim!
Foi só num dia qualquer, num encontro casual e fortuito com um amigo de infância, uma dessas serendipites da vida, que sua aflição foi apaziguada, depois de um breve (mas certamente inspirado) diálogo:
- Eu sou um personagem. - murmurou o homem, a mão dando apoio ao queixo, os cotovelos fincados na mesa do café francês, o olhar perdido no horizonte, como num (nem tão) bom romance de mistério.
- Como assim? - inquiriu o amigo, num riso de ingênuo otimismo, os dentes mais brancos do que as palavras podem expressar.
- Eu, você, o café frio, essa vida de merda... Tudo tá sendo escrito agora mesmo por escritorzinho de quinta.
- Deus?
- Não! Eu... Sim... Sei lá.
- Você...
- Eu tou vivendo num livro. É isso que eu quero dizer. E nada do que eu faço é verdade. Tudo é planejado por outra pessoa.
- O escritor.
- É.
O amigo pensou por um instante (um instante rápido demais, o homem desconfiaria; mas, dado o resultado que aquelas palavras lhe impingiram, isso acabou nem importando) e replicou:
- Bom, digamos que você realmente viva num texto. Isso não quer dizer que tudo que você faz seja controlado.
- Como não?
- Olha, um livro é lido por muita gente, por mais horrível que o escritor seja. E não dá pra esse “deus” controlar cada detalhezinho.
- E?
- E que o conjunto de possibilidades de interpretações diferentes de todas as pessoas que vão ler é, apesar de não infinito, indeterminável. Vai dar espaço pra você fazer o que quiser.
O homem analisou seriamente aquela idéia, surpreendido por algo que nunca sequer cogitara. O amigo, iluminado, como se de fato fosse apenas o canal para a manifestação de uma inteligência superior e cada sílaba que saía de sua boca uma peça cuidadosamente calculada e disposta previamente no todo, continuou:
- Além disso, tem outro detalhe. Se é possível que você seja o personagem de um troço que um cara escreveu e um monte de gente tá lendo, como é que você sabe que esse cara e essas pessoas não são também personagens de, sei lá, uma peça de teatro que outra pessoa escreveu?
- É muita filosofia, bicho.
- Haha, é... - concluiu o amigo, levantando-se da cadeira e deslizando pra fora do lugar numa leveza desgraçada, quase um anjo. Deixou a conta pro outro pagar, é claro.
Depois daquele dia, o homem nunca mais teve problema com sua condição de vida, fosse ela uma vida “de verdade”, conforme lhe haviam ensinado na escola e na igreja, ou a criação multiforme e mutante de uma mente doentia e seus ainda mais bizarros leitores. Morreu feliz, vários anos depois, deixando uma mulher com problemas cardíacos e viciada em calmantes, um filho que cismou que era um cérebro numa cuba (vai que a inquietação solipsista era hereditária, né?), uma filha transexual com síndrome de Tourette e um neto que ainda vai ser presidente (ou não); deixou também sua casa, seu pequeno castelo cor-de-abóbora com cerca branca, que ele não lembrava de ter comprado ou mandado construir; e uma numerosa coleção de coisas inúteis, embora de grande significado pessoal, que alguém algum dia vai pôr fora.
Só nunca escreveu um livro, que essa coisa “meta” já tava virando modinha.