Se Ipsum Alit


Por muitos anos, desde pequeno, o homem ouvira as histórias contadas ao redor da fogueira sobre o Dragabul. Ninguém na tribo ousaria duvidar delas, não quando a anciã líder se pronunciava. Suas palavras eram claras como o próprio fogo; e as crianças, ao mesmo tempo exaltadas e assustadas, por vezes quase se queimavam no hálito do monstro conforme ela narrava seus feitos terríveis: sangue sobre gelo, fogo sobre pedra, e almas arrancadas de homens como o couro era arrancado das focas; tudo por entre nesgas de fumaça, a fragrância doce da madeira em brasa, evocando um mundo desconhecido além do monótono branco. Aquele que nascera humano lentamente era levado, distorcido, decomposto; até que, brusca e dolorosamente, era já o que era: uma criatura de horror, um monstro obrigado a se alimentar apenas de vida recém-tirada, o Dragabul das montanhas. E ela sempre terminava as histórias com a frase mais abismal de todas, para assombro dos pequenos: o Dragabul nunca morre.
Certo dia, então, um dia entre todos os dias brancos que nasciam sobre a tribo, o homem resolveu que não tinha medo das histórias contadas ao fogo. Fosse o que fosse a criatura, houvesse o que houvesse de verdade nas palavras da anciã, ele iria descobrir por si próprio; e, se existisse realmente um Dragabul nas montanhas distantes, ele iria matá-lo, queimar apropriadamente seu corpo e livrar aquela pobre alma da maldição ancestral. Ao saber disso, naturalmente, a velha líder da tribo tentou de todas as formas evitar a inglória expedição; além de alertar o aventureiro dos perigos que ele encontraria, ela recitou, com a mesma precisão hipnótica, o absurdo de seu objetivo final: o Dragabul nunca morre. O homem, entretanto, não se deixou convencer por aqueles velhos argumentos; estava já pronto para partir, e nada o impediria até que ele chegasse ao fundo daquele abismo.
Por muitos dias, portanto, ele andou pela terra plana, abrindo caminho por grossas camadas de neve, guiado apenas por seu espírito impetuoso e uma sombra remota no horizonte que ele interpretava como um sinal das montanhas. Exausto, lutando contra o frio insone, seguiu se arrastando por entre árvores secas e traiçoeiras planícies de gelo fino. Caçou para sobreviver, e logo a fome o levou a ignorar os costumes em relação ao tratamento da comida; como o Dragabul que perseguia, ele acabou por precisar se esconder e atacar como um animal acossado e faminto. Nessas horas, quando o que havia ainda de humanidade em sua alma o aconselhava a desistir e voltar, retornava, como um trovão ecoando entre as luzes boreais, a voz da anciã, seu ensinamento mais primitivo e terrível: o Dragabul nunca morre; e o desafio o impelia à frente. Muitos haviam tentado tal feito ao longo dos séculos, e ele pretendia ser o primeiro a voltar para contar de sua vitória.
Quando por fim chegou ao pé das montanhas, já quase cego e sem forças, não precisou ir longe para encontrar seu alvo: o Dragabul sentira seu cheiro à distância e fora a seu encontro; raramente comia carne humana, e não perderia essa chance. De frente para o monstro que caçou por tanto tempo, o homem, mesmo com a mente entorpecida pelo cansaço, se impressionou com a familiaridade daquela figura: ainda que nu, sujo e ferido, o Dragabul não parecia diferente dos homens da tribo; não fisicamente, ao menos. Mas isso já não importava; assim que o medo e a hesitação iniciais foram superados, os dois se engajaram em uma batalha irracional, uma disputa bruta pela própria sobrevivência. O homem conquistaria, finalmente, sua vitória; mas o que lhe foi tomado acabou sendo muito mais do que ele poderia imaginar: privado, logo cedo, de sua faca e suas roupas, coberto de cicatrizes e cheio de raiva, em poucos instantes ele já não era em nada distinto de seu adversário. Arremeteu-se contra o outro com nada além de unhas e dentes, e o superou meramente por seu estado físico ligeiramente mais preservado; e, morta a criatura, faminto e esgotado como ele estava, devorou sua carcaça sem pudores e sem cuidados, bebendo de seu sangue como se bebesse de um riacho. Sabia, sentia em seus ossos e nos pelos de seu corpo, que jamais voltaria a sua antiga vida na tribo; se agora já mal conseguia se lembrar dela, o tempo se encarregaria de levar seus últimos vestígios embora.
E quando o tempo por fim vencesse a esperança de seus familiares e companheiros, as mulheres chorariam, os homens o homenageariam, as crianças seriam ensinadas a não pronunciar mais seu nome; mas a líder anciã, segura e amarga em sua sabedoria, repetiria, com pesar e reverência, o que o peso dos anos lhe havia ensinado de mais profundo e verdadeiro: o Dragabul nunca morre.

Crônicas do Fim do Mundo VI - O Macaco Digitador


Uma coisa tão simples, e ainda assim tão complexa. Acho que nunca pensamos que o medo, logo o medo, pudesse ter alguma influência em nosso trabalho. Eu, pelo menos, nunca teria imaginado; e, se o medo que tive foi pelos outros e não por mim, isso agora não faz mais a mínima diferença.
Alguns homens, sejam os acomodados e obesos executivos de grandes multinacionais ou os pobres coitados que não têm nem o que comer, tendem a se preocupar apenas com aquilo que podem ver e tocar; outros, como eu e minha equipe, preferem se dedicar ao infinito, ao infinitamente distante, aquilo que, com a mais absoluta certeza, não poderemos nunca ver ou tocar. Esse é um assunto que sempre me fascinou; quando criança, eu costumava imaginar um livro tão longo, mas tão longo, que seria impossível lê-lo durante uma vida inteira... Acho que minha pequena mente não conseguia imaginar, na época, a angústia que resultaria dessa situação. Algo grande demais para qualquer um de nós, mesmo o mais brilhante, assimilar; derrotados por uma questão matemática básica: lendo-se no máximo tantas páginas por dia, vivendo-se no máximo outros tantos anos, ninguém, ninguém nunca conseguiria entender o livro em sua totalidade. Uma coisa tão simples.
Enfim, de qualquer forma, acredito que foi esse meu ímpeto infantil que me levou à ciência da computação, por acreditar que a capacidade de processamento de um computador eventualmente ultrapassaria a de um ser humano; que os cérebros eletrônicos nos trariam possibilidades ainda impensáveis, simplesmente porque nossos cérebros de carne não as conseguem imaginar. E o meu primeiro projeto nesse sentido foi justamente o Macaco.
O Macaco era um computador que nós desenvolvemos pra um único fim: escrever. Sim, outros desse tipo já existiram e talvez ainda existam; o próprio apelido que demos a ele advém de uma ideia antiquíssima, que alguém algum dia comentou: o fato de que um macaco sentado à frente de uma máquina de escrever, aleatoriamente batendo nas teclas, iria eventualmente, com tempo suficiente, escrever toda a obra de Shakespeare. Isso sem ter ou adquirir qualquer conhecimento relativo às questões existenciais de Hamlet ou ao amor impossível de Romeu e Julieta. Como um copista medieval cuja fonte é o infinito, o computador-macaco simplesmente escreveria sem parar até que, entre blocos e blocos de texto ininteligível, algo surgiria.
O que nós fizemos de diferente pro nosso Macaco foi utilizar um recurso que ainda é consideravelmente amplo nestes dias: a internet. Ele foi programado pra confrontar automaticamente os seus próprios textos com aqueles que encontrasse pela web, e assim, na base da comparação estatística pura e simples, refinar os algoritmos e reduzir drasticamente a quantidade de nonsense.
Por algum tempo, ficamos completamente estupefatos com o quão bem nosso projeto funcionava. A cada dia, seus escritos ficavam mais concisos, mais interessantes. E menos de um mês, ele já produzia textos longos e perfeitamente compreensíveis; muitos deles, e isso já era previsto, eram cópias de obras de autores famosos ou de bloggers anônimos, e toda vez que isso acontecia ele nos “comunicava” o ocorrido com um e-mail. Tudo ia impecavelmente bem; até que, um dia, algo absurdamente óbvio (e ainda assim inesperado) aconteceu.
Havíamos recebido, como muitas outras vezes nos últimos meses, um e-mail do Macaco nos avisando que ele havia encontrado um texto online que batia com exatidão com algo que ele escrevera: uma coisa banal, algo sobre criar galinhas ou coisa assim. Tudo normal, a mesma singela comemoração de sempre (já nos estávamos acostumando ao fato), quando um de nós percebeu um detalhe: a postagem fora feita cinco dias depois de o Macaco tê-la, por conta própria, escrito. E aí que revelação súbita nos ocorreu: dentre tudo que o Macaco escreveria, aleatoriamente agrupando palavras com um senso básico de gramática, estariam, sem dúvida, textos ainda não escritos.
Ainda que alguns entre nós tenham, naquele momento, demonstrado uma reação inicial de euforia, o sentimento geral naquela sala era de apreensão, senão de desespero. O que mais aquela máquina cega poderia descobrir? Um futuro best-seller, antes que o seu autor sequer nascesse? Notícias de todo o mundo, eleições, revoluções, guerras, anos antes dos próprios fatos acontecerem? Ou, quem sabe, as certidões de óbito de cada um de nós que trabalhamos pra criá-la, com nossos nomes, datas de nascimento, tudo numa perfeição robótica? Tudo isso era possível, posso dizer até que provável; e o pior é que nunca saberíamos com certeza o que seria real e o que seria simplesmente uma ficção incrivelmente precisa. E se um marido desconfiado lesse sobre a traição da esposa? E se um suicida visse sua própria carta de despedida? Hesitaríamos? Duvidaríamos? Juro que, do alto de todo o meu ceticismo, eu quase imaginei um macaco supremo, batendo infinitamente na máquina do destino, rindo histericamente de nossa ignorância.
Mas ficou claro pra nós, depois de um instante de reflexão, que estávamos diante de uma bifurcação importantíssima no curso de nossas carreiras e nossas vidas; uma ocasião quase religiosa. Ali, à nossa frente, manifestava-se em forma física o maior (e talvez único) mistério do universo, de onde muitos fizeram deuses e forças cósmicas: a aleatoriedade em si. O total das possibilidades deste mundo e de todos os outros. Algo profundo demais, perigoso demais, grande demais pra que nós ousássemos manusear. Por fim, nenhum de nós vacilou em considerar que o projeto deveria ser cancelado.
Forço-me, entretanto, a comentar um pormenor que é do conhecimento de poucos: os frutos desse trabalho, a grande obra do Macaco, não foram eliminados, pois isso iria contra nossos princípios e a política de nossos patrocinadores. As milhares (talvez milhões) de páginas estão todas arquivadas, em algum lugar, esperando pra serem lidas. Talvez enquanto durar o universo nenhuma delas tenha alguma utilidade; talvez só sirvam pra que um dia, quando o que restou de nosso mundo seja finalmente reduzido a cinzas, algum cientista ensandecido (e quem dirá que não serei eu mesmo?) sair gritando pelas ruas “eu sabia!”, “eu já sabia!”.
Uma coisa tão simples...

Exílio


Por de todos reinos do mundo
Cascos vomitando leis
Engrenagens se fazendo reis
Não me tocarem os dedos

Dos medos
Da terra sólida e chão
De antenas, ocultas ou não,
Para-raios de emoções difusas

Não me acertarem, confusas
As noites de estática e luz

Por dos altos penhascos nus
Testemunhas de algum senhor
Que não inspiram gastar meu suor
Em réplicas de dez centavos

Os escravos
Hipnotizados pelo neon
Convencerem-se a achar que é bom
Às marteladas costumeiras

Beber de heróis e bandeiras
Que nunca lhes deram nada

Que segue minha dor, exilada
Meus pobres sonhos escassos
Levando meu reino nos braços
Eu ando, por retas e voltas

Sufocando revoltas
Diplomata por necessidade
Das vozes na minha cidade
Clamando por revolução

E os guardas da minha razão
Quase todos já se converteram

Mas mesmo que falanges caiam
Meu reino segue sem muros
Aberto a quaisquer futuros
Que se enrosquem nos meus caminhos

Nos espinhos
Que me rasgam por dentro
E fazem orbitar no meu centro
De tantas estrelas migalhas

Espólios de tantas batalhas
Que quase transbordam, enfim

Só minha paciente vontade
E as luzes da minha cidade
Ainda me protegem do fim

Mas meu reino segue calado
E eu me mantenho, exilado
Do lado de fora de mim

Contexto Cultural


Não é difícil encontrar, de tempos em tempos, debates nos meios de comunicação acerca de rodeios, touradas e outras situações que envolvem o abuso de animais. De um lado, ativistas acusam os patrocinadores de tais eventos de maltratar criaturas indefesas por puro prazer estético; de outro, os defensores argumentam que essas atividades são sempre parte da tradição local, seja qual for o lugar, e que acabar com elas seria atentar contra os costumes e a cultura.
Não vou escrever uma apologia de nenhum dos dois pontos de vista, até porque acredito que toda moral é relativa (e, se sou contra a violência aos animais, também adoro um churrasco); mas um ponto no discurso “a favor” de touradas etc. me chama a atenção sempre que o ouço: o fato de algo ser considerado “tradicional” ou “cultural” servindo como argumento em si.
Em primeiro lugar, definir “cultura” já é complicado. Qualquer ponto do planeta tem pelo menos alguns milênios de presença humana, e mesmo antes do próprio Homo Sapiens já existiam formas de expressão que poderiam hoje ser classificadas como “culturais”. Isso não quer dizer, claro, que eu acredite em civilizações melhores ou piores umas que as outras; mas que, se dentro da saga de um mesmo local ou povo existem costumes que foram abandonados, assim como outros que foram assimilados de outras fontes (ou mesmo inventados ao longo do tempo), a definição de uma cultura “oficial” é no mínimo arbitrária.
Também me é desconhecido o porquê de, hoje em dia, uma atividade qualquer, mesmo já rotulada e apropriadamente introduzida no rol de tradições locais, não poder ser abandonada mesmo existindo argumentos pra isso. Falar em cultura atualmente é como era falar de religião um tempo atrás: mencionar que algo tava na Bíblia (aqui no nosso lado do mundo, imperativo dizer; em relação a outros lugares, considerar livro sacro equivalente) já dizia o suficiente. Hoje criticar o legado dos deuses já é praxe, mas o mesmo não se aplica ao dos homens (mesmo que em muitos casos ambos tenham se misturado no liquidificador da História a ponto se tornarem indiscerníveis): a cultura se tornou o relicário do Sagrado nas sociedades laicas, e se pôr contra alguma manifestação cultural é uma heresia tão grande quanto era ser contra o domínio da igreja na Idade Média europeia.
Enfim, reitero que não foi minha intenção criticar qualquer costume de qualquer lugar ou período: sempre parece mais fácil julgar os vizinhos, e às vezes nos esquecemos de olhar pro nosso próprio quintal. Cabe às pessoas de mente lúcida debater a melhor solução pra essas questões ainda em baila, sem preconceitos. Em relação aos outros como a si mesmas.

Pão

O que te faz sentir inteiro?
A linha dos teus pedaços
A segurança do teu canteiro
Medida certa dos teus passos

Um rosto de uns poucos traços
Traçados sem nenhum pudor
Um alguém perdido entre os teus braços
Seja ele ou ela quem for

Se o mundo é uma noz
Tantos canais e uma só voz
Que não se cansa de gritar

Que o caminho é um só
Carne, lágrima e pó
Um anel pra todos governar

Num dedo só de uma só mão
Um sol, um deus, um pão

Pra que tanta coerência?
Tanta carência de alucinações?
Tanta eloquência exigindo independência
Ainda agarrada aos grilhões

Variações de um mesmo tema
Pronúncias de um mesmo fonema
Caducos e burocráticos

Sempre aparece um final
Uma só versão oficial
Pro gozo dos matemáticos

Estáticos doutores
Preguiçosos espectadores
Da floresta que brota ao redor

Do suor, do sangue e leite de outras mães

Jogam assim o ardor e a cor
Dos dragões aos cães
E se no fim a cura da nossa dor
For o bolor de outros pães?

Indefinido como uma Noite Silenciosa


Propósito. De todas as “grandes obras” da humanidade, essas que enchem os livros de História de odes hipócritas, o que me impressiona mais não são os resultados: mais cedo ou mais tarde as pedras desmoronam, as estátuas desmancham, o mármore vira pó. Não; o mais impactante de tudo é a força motriz da criação, a vontade e a loucura, populares ou despóticas; as almas de muitos homens-formiga, mente-colmeia, unidas em uma só direção. Um só objetivo. As grandes pirâmides eram tumbas majestosas de reis considerados divinos; Stonehenge era um observatório astronômico pra sacerdotes que idolatravam as estrelas. Propósito.
Em meados do século XI, uma civilização desconhecida construiu uma série de cidadelas de pedra nas savanas subsaarianas, com muros que chegavam aos onze metros de altura, sem mesmo conhecer a argamassa; o nome do Zimbábue (país onde a maioria dessas construções se localiza), inclusive, deriva de “dzimba-dza-mabwe”, que significa “grandes casas de pedra”. Entre as labirínticas ruas e os monólitos esculpidos em estranhas imagens, as estruturas que mais chamam atenção, com certeza, são as torres cônicas: paredes com 22 metros de altura e 10 de espessura, sem janelas, sem portas; o único acesso ao interior sendo por cima. Propósito. Quem quer que fossem os responsáveis por essas maravilhas, haviam sumido já na época em que os primeiros europeus chegaram à região; e os habitantes locais, como relatou o historiador português João de Barros, achavam que os zimbábues eram “obra do diabo”. E, excluindo-se hipóteses paranormais, homens-pássaro e discos voadores, que outra explicação pode justificar tanto empenho, tanto tempo gasto, por tanta gente?

Não sei. Trabalhar muito tempo com enigmas exatos destrói nossa capacidade de raciocínio lógico. As pessoas sempre buscam transcendência. Se sobra uma peça no quebra-cabeça (por simples falha humana, coisa cotidiana, sem culpados), elas ligam pra empresa pra perguntar. Querem achar outro termo, com o mesmo número de letras, que caiba no mesmo espaço nas palavras cruzadas; e, se encontram, acham que desvendaram uma conspiração. Vivem num ARG, as regras são o maldito propósito.
Já não se fala mais de um Deus pessoal, cujos atributos só possam ser aproximadamente inferidos pela negação. Mas sobrou no caldeirão do mundo um sentimento denso, ainda que vago; uma noção latente de ordem e perfeição como se objetivas, derivada da mais primitiva insegurança: um deus-máquina, sustentáculo das formas e essências, semi-personificação da teleologia, descido do glorioso trono celeste pra governar os dados de cada mesa de RPG.

Talvez a grande graça (em todos os sentidos possíveis) que os antigos nos tenham deixado seja mesmo a charada infindável: a contradição constante, a piada suprema, por trás de cada surto de megalomania; mesmo que não fosse essa a intenção. Quem hoje vai saber? Ficaram pros olhos honestos os reflexos patéticos de tremendos esforços vãos: grandes ideais que acabaram por se resumir em objetos de mera contemplação e fontes de lucro pra aproveitadores que nada têm a ver com o “propósito” original.
Ou talvez sobre na arte dos povos do passado um bom humor que atualmente nos falta: o reconhecimento dos eternos fluxo e refluxo de significado, da impermanência dos nomes. Cientes de sua própria efemeridade, artistas esquecidos teriam trabalhado livres, sem pretensões, sol per sfogare il core; e não é impossível que algum deles, notando as peculiaridades do fruto de seu labor e se permitindo imaginar além de sua época e cultura, tenha, num dia qualquer da noite dos tempos, pensado consigo mesmo:
- Cara, ia ser muito engraçado se algum dia alguém levasse isso a sério!

Uma Questão de Semântica


Um breve pensamento que me ocorreu há um tempo, só pra não dizer que eu não postei nada este mês:
Existem algumas palavras por aí que podem significar o exato oposto do que elas significam, ou do que as pessoas geralmente consideram que elas significam, e parece que ninguém percebe isso. O exemplo sobre o qual eu andei meditando é o de termos como “inquestionável”, “indubitável”, e o seu uso corrente como sinônimos de “certo”, “correto”, “verdadeiro” e coisa e tal.
Ora. Por “inquestionável” eu entendo algo que não se pode (ou não se deve) questionar, e acredito que seja mais ou menos isso que qualquer outro falante do português deve assimilar dessa palavra. Agora, por que algo que é supostamente certo, correto e verdadeiro não pode ser questionado? Ou eu não manjo nada de lógica, ou, quanto mais próximo de uma verdade absoluta alguma ideia está, mais ela pode ser questionada, porque a resolução, presume-se, vai ser sempre a mesma; e, por outro lado, o “indubitável” me parece aquilo de mais estúpido, vago e quebradiço que se pode imaginar, pensamentos tão absurdos que, pra sua própria segurança (e a daqueles que neles acreditam), não podem ser questionados. Enfim, exatamente o contrário do que dizem os dicionários.
A grande questão aqui é: por que será que, desde que adquirimos a linguagem, nós aprendemos a equalizar “correto” com “inquestionável”?

Wabi-Sabi


Dia desses, folheando en passant alguma coisa do senhor Zygmunt Bauman, me peguei criticando o pessimismo e os ligeiros lapsos de conservadorismo (na minha opinião, quase desnecessário dizer) do polonês. Lembrei de algo que já tinha escrito aqui e, entre os medos indefiníveis de nossa decadente cultura consumista, achei talvez a solução pra um problema auto-imposto.
Basicamente, o que Bauman argumenta ser a diferença crucial entre o que chama de “modernidade sólida” e “líquida” (a segunda equivaleria aproximadamente à “pós-modernidade” de Baudrillard e semelhantes; o termo diferenciado visa evitar confusão com conceitos homônimos conflitantes) é que, até o período pós-Segunda Guerra, a sociedade ocidental vinha num processo de racionalização e burocratização crescente, este de onde brotaram Kafkas e Catch-22’s, cujo objetivo era a individualização, a segurança, o controle da natureza, enfim, a definição do universo. Por essa linha de pensamento, o maior fantasma da época era o bastante freudiano “outro”: a parte que não pode ser absorvida na categorização, o vizinho, o semelhante-ainda-que-diferente. Faz sentido. Nós não entendemos o outro, nós culpamos o outro por nossos problemas e logo nós estamos matando seis milhões de outros pro bem de todos e felicidade geral da nação. A liquidez só teria vindo com a revolução dos costumes, a globalização, a convergência de culturas e pensamentos e a ênfase na liberdade individual. Hoje o problema é outro, mas ainda é o mesmo: alguma coisa vaga e distante que se esconde por trás do painel lisérgico que é a realidade, mas nem por isso é menos assustadora, como o conceito de “terrorismo”; medos e amores líquidos, uma sociedade sem valores e paranóica.
Nada disso é muita novidade. Bauman se inspirou em Derrida, que se debruçara precisamente sobre a ambiguidade e imprecisão da linguagem (e, se aceitarmos que linguagem é tudo, então o francês já havia mencionado a modernidade líquida muito antes); Barthes mencionara como esses pequenos “detalhes”, as dicotomias tomadas como regras prévias, serviam de instrumento pra manutenção do poder mediante meios de comunicação de massa. Mesmo alguns visionários que os precederam (não querendo chutar o pau da barraca, mas já chutando), como o amplamente subestimado Charles Fort, já davam seus palpites: pra Fort, nada precisamente é, mas tudo que a percepção humana alcança antes almeja ser, num movimento perpétuo rumo à integridade, a uma identidade “plena”. Tomando algumas licenças literárias, sigamos por um momento este último comentário.
Se cada conceito é ambíguo; se cada signo pode ser interpretado de milhões de maneiras diferentes; se nada pode ser a priori, ou seja, sem o aval de algum tipo de autoridade que a legitime num determinado contexto, então um verdadeiro poder pode ser tomado por qualquer um com um mínimo de capacidade cognitiva. A fluidez é justamente o que permite que a leitura (novamente levando em conta que a linguagem seja o próprio tecido de que é feita a realidade; assim, “ler” equivale a qualquer tipo de interpretação do mundo) seja um ato criador, diferente da literatura apenas por uma questão física (o que forçosamente nos obriga a considerar qualquer acusação de plágio, por exemplo, como uma afronta à liberdade de pensamento); de forma que cada indivíduo possa manipular sua própria Weltanschauung (exatamente essa a que se referia o senhor Whorf) de acordo com sua vontade, criando uma noção particular e intencional da ontologia e, assim, eliminando as tais quase-coisas (as que assim lhe parecerem) como qualquer excrescência desnecessária do processo de raciocínio.
Mas esse poder não se restringe à amorfia exterior, estendendo-se mesmo ao extremo do self. Quase como o (a?) Quixote de Kathy Acker (o terceiro que eu cito neste blog, e possivelmente não o menos real dos três), que julga ser sua identidade um construto interno, temos uma nuvem de possibilidades incomensuráveis ao nosso redor, não diferente do “corpo-sem-órgãos” que queriam Deleuze e Guattari, que dependem de nosso esforço consciente pra se concretizar ou não. Condenados à liberdade como Sartre, eternamente incompletos como Fort, nunca seremos, sempre poderemos agir na direção de ser.
Enfim, a vida é um grande jardim zen. Não tem como ser menos pessimista que isso.

Evidências

Isto é um bilhete de suicídio. Vou embora antes que eles me peguem, e só deus sabe o que eles poderiam fazer comigo. Se só eu que percebi tudo, ou se só eu que existo, eu nunca vou ficar sabendo. Tá difícil manter a calma agora, mas nada importa mais. O que me provou que eu tô certo, que é tudo mentira e que qualquer um que ler isto aqui pode perceber (se for real) é que era tudo CERTO DEMAIS. Talvez não faça sentido agora, mas. Minhas mãos tão suando. Enfim, que merda de mundo é esse onde tudo tem explicação? Sempre, sempre SEMPRE SEMPRE SEMPRESEMPRESEMPRE.
Eles EXISTEM. São os paranthropoi que eu mencionei nos meus textos. Eles vêm e trocam alguém por uma cópia exatamente igual, com as mesmas memórias. Não sei por quê, minerais, água, informação. MAS SÃO DIFERENTES. Mexem nos livros, trocam as letras de lugar. Quando eu tive coragem de falar disso pro meu irmão, ele disse que era loucura da minha cabeça. Que outros já tinham falado disso, e que era coisa de louco. CLARO! Se é coisa de louco, eu sou louco só por pensar nisso!
Pesquisas. Anos. ANOS. Eu juntei tudo. Gente que aparece e some, e. Eu pesquisei por SÉCULOS: Doppelgängers. Abduções. Elfos. Luzes no céu. The Wild Hunt. E ELE ME DISSE QUE JÁ TINHAM FEITO ISSO! Eu vi no Google: Jacques Vallée, Passport to Magonia. “Tudo o mesmo fenômeno”. NÃO É MUITA COINCIDÊNCIA?????? Não será porque eles ALTERAM A REALIDADE???????????????
DUVIDEM DUVIDEM DUVIDEM DUVIDEM DUVIDEM.
Eles vão me pegar mudar o que eu escrevi QUEIMAR

Bilhete de suicídio de Daniel P. Hockenheimer, 25 anos, escrito aparentemente às pressas minutos antes de sua morte, resultado de uma intoxicação por monóxido de carbono na garagem de sua casa. Espalhados por toda a residência, os policiais encontraram papéis contendo divagações, desenhos, imagens astronômicas e estranhos símbolos. Alguns jornais sensacionalistas chegaram a incluir na nota de falecimento informações falsas relacionadas à saúde mental e à suposta religião do rapaz.
De todo modo, as autoridades consideraram de bom tom destruir a maior parte do trabalho do jovem, sob a justificativa de evitar suscitar um pânico infundado em “elementos sugestionáveis”. Um policial, cuja identidade evidentemente deve ser preservada, chegou a comentar, em caráter privado, que “tem muito maluco por aí que enlouqueceria com essa merda. Com todo o respeito, não tem por que levar a sério um sujeito desses”.

Crônicas do Fim do Mundo V - Cidades-Fantasma


O Common Heritage Remembrance Program (CHRP) foi instituído pelo governo americano nos primeiros anos pós-guerra para, com a ajuda dos internautas, enfrentar o admirável desafio que era reconstruir a História das pequenas cidades e recantos esquecidos (talvez agora completamente aniquilados) do interior do país. Contava primariamente com fóruns online, em que os próprios habitantes podiam colaborar com suas memórias pessoais, e programas de busca que vasculhavam a web à procura de nomes que (ainda que vagamente) lembrassem o de uma cidade; estes, é claro, precisavam para funcionar do filtro de uma inteligência humana, que, como tal, era sujeita a falhas. E assim, de um começo ousado e grandioso, o projeto acabou, menos de dois anos depois, por ser cancelado de forma não menos espetacular.
O desespero e a desistência vieram a principiar da forma mais inocente possível: um belo dia, fazendo o seu trabalho como todos os dias, um funcionário do programa percebeu que seu computador encontrara menção a uma tal Nord, MN, que não constava absolutamente nos registros oficiais (os quais, é bom que se diga, foram seriamente danificados ou perdidos durante a guerra). Sem se preocupar em checar a referência, o funcionário apressou-se em criar um tópico no fórum, pedindo informações aos habitantes de Minnesota, “caso esse lugar realmente exista”.
Por três semanas, as únicas respostas que se obteve foram de uma meia dúzia de internautas, todos completamente alheios à existência de tal localidade. Foi então que uma pessoa se identificando como morgoth2071 postou o seguinte parágrafo:

É, eu acho que eu conheço esse lugar, se é o mesmo lugar onde eu ia passar as férias com meus avós. Fica (ou ficava) em Winona County, perto de St. Charles, num lugar bem afastado, onde nem tinham internet xD População 100, no máximo. Na verdade, talvez fosse oficialmente parte de St. Charles, mas eles viviam como uma comunidade isolada, poucas famílias, todos descendentes de noruegueses. De qualquer forma, tenho certeza de que chamavam o lugar de “Nord”. Me lembro de ir pescar com meu avô no rio Whitewater, tirar leite das vacas, ir àqueles cultos estranhos na igreja local... Era bizarro, mas eu com certeza lembro :D

Aparentemente, esse post foi suficiente para reavivar a memória de dezenas de moradores de Winona County, que passaram a se manifestar a respeito com cada vez mais frequência e riqueza de detalhes. Detalhes, aliás, que chegaram a chamar a atenção mesmo de quem não tinha nada a ver com a cidadezinha rural perdida no meio-oeste. O comentário relacionado aos cultos da igreja local, em particular, gerou considerável agitação: muitas pessoas trouxeram à tona estranhíssimas lembranças relacionadas a supostos rituais realizados no local e ao comportamento idiossincrático dos habitantes. Conforme mais informações eram adicionadas, mais interessados apareciam para dar sua contribuição, e uma narrativa mais ou menos concisa sobre a origem e a História da pequena Nord foi se formando.
Segundo ela, os colonizadores daquele pedaço dos Estados Unidos eram famílias de noruegueses que por gerações haviam vivido na Groenlândia. Apesar de esta ser oficialmente um território dinamarquês, essa população de alguma forma mantivera o uso de seu idioma natal. Consta, também, que trouxeram da ilha uma outra língua (que se especulou ser o kalaallisut, língua dos esquimós groenlandeses), que usavam apenas para propósitos litúrgicos. A data em que houve a migração para a América permaneceu um mistério; alguém chegou a comentar que seus antepassados mantinham a crença que, quando a primeira leva organizada de imigrantes noruegueses chegou a Minnesota, na segunda metade do século XIX, Nord já estava lá. Contudo, se isso era verdade, o encontro entre os dois grupos não foi amistoso, e os recém-chegados, extremamente religiosos, acabaram por ignorar e isolar a pequena comunidade. Por mais de dois séculos, então, a cidadezinha havia conseguido se manter, cercada de lendas de bruxaria e satanismo (que os internautas agora relatavam aos montes): alguns diziam que os habitantes locais eram um grupo de adoradores do diabo que praticavam incesto e assassinavam forasteiros em cerimônias macabras; outros os culpavam pela enchente de 2007, que assolou vários estados do meio-oeste e ainda estava na memória dos mais velhos; um ou outro ainda disseram que o local todo era um gigantesco templo de veneração à entidade Shub-Niggurath, e que existira desde os primórdios da civilização.
Tamanho foi o ímpeto dos colaboradores, e tão repentino, que os responsáveis pelo programa decidiram que era necessária uma investigação mais profunda do assunto; não tardou a encontrarem sua falha. Ocorre que a alusão a “Nord, MN” descoberta pelo funcionário era na verdade simplesmente um erro de digitação: o texto original se referia a Nordman, uma antiga banda de folk rock sueca. Assim, não apenas o tal funcionário foi demitido, como se foi percebido que toda aquela intrincada narrativa não passava de um exercício coletivo de ficção, estimulado pela postagem inicial. Diante da convulsão midiática subsequente, do caos burocrático e da possibilidade de que eventos semelhantes já houvessem acontecido e entradas falsas já tivessem sido incluídas no banco de dados, não houve escolha senão cancelar todo o projeto e destruir o trabalho de meses.
Há de se notar, contudo, que, embora morgoth2071 tenha admitido que sua resposta, que inspirou todas as conseguintes, fosse uma completa invenção de sua mente, muitos dos que participaram da chamada “fraude do século” seguiram afirmando que suas lembranças eram estritamente verdadeiras. Acusaram o governo de inserir informações falsas e fantasiosas no relato, além de subornar vários dos participantes, apenas para invalidar o projeto e por fim fechá-lo. A motivação para a suposta conspiração nunca foi esclarecida.

Quase-coisas


Partindo-se de uma perspectiva da ontologia estritamente fenomenológica, chegando às raias do solipsismo (do qual podemos fugir, mas nunca efetivamente nos afastar), deparamo-nos com toda uma nova classe de “coisas”, se assim quisermos chamá-las, que talvez nos tenha passado despercebida: essas “quase-coisas” são sequelas da busca constante de nossos cérebros por padrões reconhecíveis no caos de dados que são recebidos a todo momento. Aí não se encaixam apenas os erros básicos da tão humana pareidolia; com efeito, qualquer coisa que se possa interpretar de um conjunto momentaneamente indistinguível emerge como uma entidade objetiva, mesmo que um instante depois a reconheçamos como meramente uma combinação de partes quaisquer de outras coisas.
Ocorre que, não existindo esse segundo momento de reflexão, por força do acaso ou de algum interesse particular, a quase-coisa assume em definitivo uma identidade própria: passa a ser, para todos os efeitos, uma coisa para a qual há um nome, que passa a ser signo e por si um padrão que a mente posteriormente identificará. Quem já procurou fantasmas nos tons indistintos de uma noite escura o compreenderá de pronto.
Há, entretanto, uma conotação que é um tanto mais sutil e subterrânea (e, portanto, mais perigosa) neste comentário: depois de apropriadamente inclusa no idioma, imediatamente identificável por qualquer mortal, a quase-coisa, agora promovida, passa, pela tendência natural da humanidade de evitar a mudança a qualquer custo, a ser intocável. Ainda que destrutível por qualquer mísero sopro de lógica, será inexoravelmente defendida pelo sistema límbico dos falantes, sempre pronto para se autorrecompensar ao reforçar um conceito já plenamente sedimentado; dificilmente poderá ser, como queria certo filósofo de nosso passado, desconstruída.
Em outras palavras: na prática, qualquer coisa pode, de fato, ser uma quase-coisa; qualquer ideia pode ter falhas tão elementares que só não vemos por puro comodismo; e quem se atreverá a mergulhar nas profundezas da linguagem para desvendá-las? Ainda vemos fantasmas...

Livros Líquidos


Às vezes sinto um desconforto, uma forma de estranheza interna, lendo livros de papel. Parece discordante que o objeto da leitura, um exercício primariamente mental, seja algo físico; minha mão acaba se cansando, e eu me pergunto o que ela faz ali.
O próprio formato do livro é desarmônico com sua natureza. O que são páginas, o que são linhas e letras pra quem lê? Divisões anacrônicas de um todo, insensíveis a sua vontade. O livro é uma fatia do mundo humano, perfeito em suas fantasias e realidades; e, visto de fora, não faz sentido que se submeta ao tempo: também os deuses, se existem, enxergam o universo todo como uma coisa só, e o fluxo temporal é só uma ilusão para os reles mortais.
Às vezes me pego desejando um livro líquido, cujo conteúdo possa vazar pelas lacunas de sua carcaça inútil para uma vasilha em que eu possa degustá-lo às colheradas, digerindo-o no ritmo, frequência e intensidade que eu achar melhor.

Identidade


Ele acordou e não soube quem era. O céu negro, como as pessoas normais o viam, pareceu distante demais; distante e aberto, quase assustador: só o vira antes de um ângulo diferente, da janela de seu luxuoso quarto, nunca diretamente acima de sua cabeça. Não encontrava a segurança da rocha por perto, qualquer um poderia vê-lo. Olhou então ao redor. O chão coberto de neve não fazia sentido. As marcas de cascos de cavalo se afastando de seu corpo, que um camponês identificaria com facilidade, eram a seus olhos um enigma, como inscrições de alguma língua há muito desaparecida. O primeiro pensamento lúcido depois do choque formou-se em sua mente como uma flecha atingindo as costas de seu alvo:
- Eu sou Maaldun. - mas fulminante em sua consciência, também, foi a resposta, ainda que pesada e lenta. - Mas aqui não é Ambrek.
Pondo-se de pé com esforço, tentou divisar alguma coisa, alguma referência na noite vazia. Não conhecia Norte ou Sul, Leste ou Oeste; as estrelas lhe eram apenas pontos brancos sem qualquer significado. Entretanto, conseguiu enxergar, talvez por acaso, uma pequena forma alaranjada na distância, mais longe do que via as casas dos homens da janela de seu quarto, que lhe trouxe à memória uma representação da grande Ambrek que vira algum dia, por alguma razão, em um mapa que algum servo lhe mostrara. Naquela direção ia o rastro do cavalo.
Por um momento, aquele fato pareceu uma simples coincidência: não tendo nunca a obrigação de ler ou interpretar qualquer coisa, teve certa dificuldade em compreender a relação do mapa com o mundo real. Talvez, na verdade, nem a tenha compreendido por completo; mas, perdido como estava, sem noção alguma do que fazer, aquela “coincidência” acabou sendo a opção mais promissora que identificou, e ele decidiu segui-la.
Um tempo indeterminado se passou. Ele nunca havia caminhado tanto de uma só vez em toda a sua vida; e também jamais se preocupara em contar as horas, apesar de saber que o sol e a lua se alternavam no céu com regularidade: isso ele via de seu quarto. Então, quando o sol começava a aparecer por cima das montanhas à sua esquerda e ele começava a sentir que não conseguiria mais caminhar, enxergou, da beira da colina que descia íngreme à sua frente, uma das pequenas aldeias montanhesas, das quais ouvira falar, mas nem imaginava como se pareceriam. E bem adiante, seguindo sempre na direção Sudoeste, onde as montanhas caíam abruptamente para o mar, ele a viu, agora sem dúvidas: Ambrek, a Eterna, joia rubra do Sul, imagem no mundo da perfeição Divina, com suas muralhas que começavam cravadas no seio das colinas mais baixas e terminavam em amplas docas nas praias brancas da baía de Ampoo. Viu sua alta torre de um ponto que nunca considerara: de fora. Tal visão, tão clara e inegável, o fez tremer com o misto de emoções que sentia e não entendia.
- Eu sou Maaldun. - repetiu para si mesmo. - Mas preciso descansar. - admitiu, enfim. - Os camponeses dessa vila irão me acolher; seja por respeito, seja por medo. Sou Maaldun.
E assim ele desceu a trilha até as casas, onde agora o movimento diário dos trabalhadores começava. A princípio, teve medo de ser visto, mas sua necessidade se mostrou maior: concentrou-se na direção de uma estalagem, e ignorou os olhares dos habitantes locais.
Ao abrir as portas com dificuldade, forçando seus frágeis músculos tanto quanto podia, deparou-se com um grupo de camponeses o encarando com curiosidade. Mais uma vez tremeu: nunca na história alguém vira Maaldun, exceto Seu ministro, Seu servo mais fiel. Mas não havia escolha. Respirou fundo, mirou um a um os que o miravam e falou, na voz mais altissonante que pôde:
- Eu sou Maaldun. - não estava acostumado a falar assim, e também jamais se havia ouvido a voz de Maaldun fora de seus aposentos: geralmente falava apenas ao ministro, e aos sussurros. - Preciso de acomodações, e de um servo.
A reação das pessoas foi tremendamente distinta da que imaginava. Alguns homens jovens e fortes riram abertamente; as mulheres e os velhos, principalmente, sentiram um medo irracional à pronúncia daquele nome, mas certamente não daquele que o pronunciava; enquanto que a maioria estava simplesmente confusa, e se perguntava quem seria aquele louco forasteiro que invadia sozinho sua vila.
- Maaldun está em Ambrek. - disse alguém, quando o silêncio se tornou incômodo e o estrangeiro não se desculpou ou ao menos mudou sua expressão; era o senso comum, um adágio na boca do povo humilde das cercanias da Cidade. Algumas velhotas viraram o rosto e disseram palavras de proteção.
Ele ficou paralisado. Sabia que aquilo era a mais pura verdade, e não tinha resposta para dar àqueles que considerava simplórios. Sentiu-se impotente, e aquilo o irritou profundamente.
- Sou Maaldun. - disse, gaguejando, tremendo e batendo os pés no chão, sem encontrar absolutamente argumento melhor que aquele.
- Você é um homenzinho louco e mal-educado - o dono da estalagem apareceu por detrás da multidão, já impaciente, mas compassivo. - Vou lhe arrumar um quarto, e você pode ficar aqui um tempo, se souber trabalhar direito. Mas pare com essa bobagem!
Sem conseguir pensar em nada melhor a fazer, e de fato sem coragem de fazer nada, o estrangeiro seguiu aquele homem até um dos quartos. Ali se sentiu mais confortável: era fechado e parecia seguro, e havia uma cama, por mais rústica que fosse, em que ele pudesse se deitar. Entretanto, isso não apaziguou seus tormentos: estava decidido a ir até Ambrek e descobrir o que estava acontecendo. Alguém teria que o reconhecer.
Tendo descansado durante o dia, e feito uma generosa refeição ao crepúsculo, esperou até todos irem dormir e saiu do quarto. Vagou quase cego pelas ruas frias e desertas, até que localizou e invadiu os estábulos; então, tão silenciosamente quanto pôde, encontrou um cavalo manso o suficiente para deixá-lo montar, e tentou cavalgar tal qual os cavaleiros que via da janela de seu quarto. O barulho acabou acordando os camponeses, mas ele conseguiu fugir a galope, mal se segurando à sela.
Cavalgou pela noite, com grande dificuldade, parando em vários pontos por simples inabilidade em conduzir sua montaria; felizmente, os habitantes da aldeia haviam desistido de persegui-lo, por considerar que um cavalo era um preço baixo a pagar para se livrar de um visitante tão inconveniente. Aos tropeços, não contendo sua raiva e berrando maldições para qualquer um que quisesse ouvir, ele não obstante chegou aos portões da grandiosa Ambrek, e foi visto pelos guardas.
- Alto! - gritou um deles. - Quem vem lá?
Cheio de dores e de pesar, o cavaleiro nem lamentou o fato de não ser distinguido por um soldado de suas próprias muralhas; sabia que Maaldun não era visto ou ouvido, e reconhecia que sua atual aparência era frágil e humana demais para convencer os humildes. Apenas reuniu o que restava de suas forças para pronunciar, alto e claro, aquelas três palavras que a ele ainda significavam tanto:
- Eu sou Maaldun. - e então baixou a cabeça, sem sequer imaginar o que os guardas pensariam daquela situação.
Houve um cochichar de muitas vozes, e ele ouviu o som de passos. Algum tempo depois, os passos voltaram, e os portões se abriram devagar. Qualquer alegria que ele possa ter sentido naqueles poucos segundos foi abafada pelo que aconteceu em seguida: os guardas o arrancaram de cima do cavalo, o amarraram e o estavam levando preso para dentro da Cidade. Suas ordens eram de levar o forasteiro a Maaldun.
O caminho foi curto, mas o prisioneiro pôde ver muitas coisas familiares: as casas de telhado prateado, o mercado central, o pátio com a fonte em frente a sua torre... Foi então que ele percebeu que era exatamente na direção da torre que eles o levavam. Andar por andar, exatamente como seus prisioneiros deviam subir, por escadas velhas que ele próprio não conhecia, eles acabaram por atingir o topo do edifício, o Salão de Maaldun.
Tudo estava como ele se lembrava: os fortes pilares sustentando o teto abobadado, as janelas pequenas e redondas, o ministro fiel e sisudo em seu canto; e, logo à frente do trono dourado, obstruindo àqueles que chegavam pelas escadas a visão do resto do Salão, um véu branco, estendido de parede a parede. Estar daquele lado do véu, como qualquer chefe bárbaro que viesse pedir a bênção de Maaldun, foi demais para aquele pequeno e cansado corpo. Ele despencou no chão, cada osso enfraquecido tremendo de frio e pavor, cercado pela grandiosidade do recinto que considerava seu. Estava louco? Tudo parecera tão pequeno e cotidiano quando era ele sentado naquele trono. Ou aquilo nunca acontecera?
O ministro não fez sinal algum de o haver reconhecido; apenas caminhou, pomposamente, o som de seus passos quebrando o silêncio, até o outro lado do fino tecido branco que cobria o Salão como uma barreira de Segredo. Os segundos que demorou do outro lado foram como uma eternidade angustiante para o prisioneiro. Ao retornar, trouxe a sentença irrevogável:
- Maaldun decreta morte ao impostor imoral.
E assim, sem hesitar, os guardas carregaram aquele corpo frágil, impassíveis diante de seu desespero e agitação, através de uma porta lateral, onde uma escada pouco usada levava diretamente aos porões profundos onde as execuções eram realizadas. Antes de mergulhar na escuridão, sem conseguir parar de gritar e se debater, o prisioneiro conseguiu ver, ou pensou ter visto, duas coisas: muito vaga e brusca, como um lapso, a sombra de um sorriso malicioso se formando no rosto do fiel ministro; e, no pequeno vão entre o véu e a parede, quando já quase passava da porta, visto de relance na diagonal, o trono dourado de Maaldun, que, como ele já esperava, estava vazio.