Contrato Antissocial

Pensamento do mês: e se toda e cada pessoa no mundo guardar um segredo, o mesmo segredo, e ninguém souber disso porque, né, é segredo? Digamos que seja algo inimaginavelmente terrível, uma prática ou sentimento que envergonharia qualquer um que o assumisse; e que no entanto, seja por pura coincidência ou por alguma consequência subconsciente de nossa organização social, é tão onipresente quanto indetectável. O próprio ato de evocar essa possibilidade denunciaria culpa. Quem teria coragem de se expor sem a segurança de que os outros fariam o mesmo?
Pois é, né. Era só isso. Até mês que vem.

Cookie, ou o Prólogo de um Romance que Eu Nunca Vou Escrever

Todos nós somos sacos de carne recheados com memórias e sentimentos; é só o que somos, e é tudo o que somos. Nossa limitada capacidade de correlacionar esses dois elementos forma a matriz de nossa autoimagem, o fio que tece nossa noção de self. É com base no que lembramos e sentimos que fazemos do caos da experiência humana uma narrativa mais ou menos coesa, da qual nos pomos (tão involuntária quanto inevitavelmente, pelo bem de nossa paz de espírito) como personagens principais.
E é por isso que qualquer “corpo estranho” nessa crônica, qualquer pequena rasura que destoe do todo, se torna um potencial câncer em nossa identidade: um acidente ou evento traumático, algo que destrua planos e crie dúvidas acerca do “significado” da vida, nos força a reestruturar nossos valores e reescrever os capítulos subsequentes em torno de temas (hoje já bem cristalizados em chavões de dramas hollywoodianos) de superação, redenção, “renascimento” etc. Às vezes, contudo, essa mancha é algo de muito mais sutil e menos simbólico; algo que parece desimportante a princípio, e lentamente se desenvolve no fundo da alma como um ciclo vicioso: se repete apenas por não fazer sentido, e faz menos sentido quanto mais se repete. Um único fato, diria Fort, “maldito”, que simplesmente não pode ser assimilado; e que, por insignificante que seja, tem a capacidade de nos fazer perder o sono e questionar nosso protagonismo.
Eu vivi um tal momento alguns anos atrás, numa manhã de verão absolutamente normal em todos os outros aspectos. O dia exato e os detalhes mais particulares, é claro, agora me fogem; não que costumeiramente a minha memória seja muito mais eficiente, mas neste caso a imprecisão só acentua o caráter insólito da situação. Direto ao ponto: eu fazia minha corrida matinal por um parque da cidade, quando decidi parar um pouco para descansar; sentei em um dos bancos e me pus a observar ociosamente os arredores. Era cedo, por volta das 7h; as poucas pessoas que passavam por ali eram em sua maioria outros corredores, e em verdade acho que havia mais cachorros do que gente. Uma menina, entretanto, me chamou a atenção: primeiro, porque àquela hora ela deveria estar na escola (tinha, imagino eu, uns 9 anos); segundo, porque parecia completamente perdida. Trazia pela mão um balão vermelho, e nos olhos lágrimas prontas para cair; lembro que usava um vestido branco e rosa que trazia escrita a palavra “cookie”, e olhava para todos os lados como se procurasse por alguma coisa ou alguém. Assim que me viu, se aproximou timidamente e pediu para sentar ao meu lado; consenti, um pouco surpreso, sem saber exatamente como responder.
- Me desculpa. - ela disse, após um longo silêncio, sem tornar o rosto para mim; sua voz e articulação hoje me parecem por demais maduras para sua idade, mas isso pode ser só uma impressão derivada dos anos e anos pensando e repensando esse dia. - Não era pra isso ter acontecido.
- Isso o quê? - foi a coisa mais lógica que eu consegui perguntar.
- Não era pra isso ter acontecido. - agora já chorava abertamente, mas ainda mirava de forma fixa o vazio à sua frente e se mantinha assustadoramente séria. - Ele me disse que ia voltar. Eu acreditei.
Cada palavra que ela disse ficou marcada em minha mente, cada qual acompanhada de um bocado do sentimento crescente de deslocamento e impotência que me atingia naquele momento. Não soube o que dizer; apenas assisti aquela cena passar diante de meus olhos, como se parte de um filme.
- Toma. - ela continuou, afinal virando-se em minha direção; alcançou-me a corda do balão, e então se levantou novamente. - Se ele ligar, diz que eu morri.
E, dito isso, saiu andando pela trilha do parque até desaparecer além da curva, sem em momento algum olhar para trás; e eu não tive motivo ou ânimo (ou coragem?) para segui-la. Nunca mais a vi, e não tenho a menor ideia do que ela quis dizer com tudo o que disse. Só o que sei é que a lembrança dessa manhã tem me atormentado desde então, e a razão desse tormento é a pior parte: nada do que aconteceu deveria ter qualquer influência sobre a minha vida; eu não conhecia a menina, e ela foi tão vaga por escolha própria. Mas o simples ato de pensar no que poderia estar acontecendo, e no que eu deveria ter feito (para impedir, ajudar, entender...?), tem sido suficiente para corroer meus pensamentos e me fazer consumir em uma culpa infundada.
Este livro, portanto, é fruto direto dessa experiência; uma tentativa pessoal e tola de construir um sentido para um fato essencialmente inexplicável, como uma forma de exorcismo, uma sublimação do medo irracional do desconhecido. Começou com rascunhos que eu escrevi em momentos de profunda depressão, versões daquele dia que culminavam sempre em um final trágico; conforme fui aprendendo a conviver com meus demônios, esses rascunhos foram se diversificando e organizando. A ideia de pôr no papel todas as possibilidades de desdobramentos daquele absurdo diálogo se tornou como que uma terapia para mim, além de uma fonte inesgotável de inspiração.
Os resultados, todos aqui compilados (todos os que eu pude produzir), variam amplamente entre si: cômicos, dramáticos, tragicômicos, surreais. Óbvios; inimagináveis. Em um capítulo, a menina me confundiu com seu irmão mais velho, e suas palavras se referiam ao ausente pai de ambos; em outro, ela era uma mulher com problemas mentais e algum atraso de crescimento, e nada do que disse fazia realmente qualquer sentido; ainda outro fez dela um anjo do apocalipse que traz uma nova Revelação em forma de enigma (e não se pode dizer que este João pós-moderno não se tenha dedicado inteiramente a decifrá-lo); algum outro a viu como uma visitante alien ligeiramente desnorteada, cujo peculiar uso do idioma derivava de um domínio superficial da cultura pop terráquea.
Enfim. Por consequência óbvia, esta será uma obra póstuma; ao deitar os olhos sobre o presente texto, o leitor tem a noção já de que eu não mais existo. Meu objetivo é (ou foi) meramente o de escrever o máximo possível, sem a pretensão de descrever o que de fato aconteceu; ao menos assim poderei sentir que a narrativa da minha vida, por patética que tenha sido, teve um sentido. Reconheço, também, que é bem provável que eu morra no processo de escrever um segmento; e, ironicamente, quem quer que assuma a tarefa de completar o livro por mim pode, por pura força do acaso e talvez sem ter nem mesmo me conhecido, chegar mais próximo da verdade do que eu jamais cheguei. A vida real, afinal de contas, é (por mais que nos seja árduo admitir) apenas uma de muitas ficções possíveis.