Desterritorialização

Se há uma coisa que a internet conseguiu provar definitivamente é que o antigo ditado “o lixo de um homem é o tesouro de outro” representa (ao menos nesta nossa época de acesso rápido e fácil a, bem, tudo) uma verdade universal. Uma de suas “regras” dita que, se algo existe, existe também um site dedicado a esse algo, e consequentemente toda uma comunidade de aficionados em torno deste. A especificidade insólita dos assuntos abordados é tanta que pode tornar impenetráveis ao mundo real (enquanto ainda podemos defini-lo) narrativas tão intricadas e intrigantes que, caso contrário, seriam talvez dignas de um best-seller.   
Tal é o caso de uma pequena descoberta feita alguns anos atrás, cuja repercussão se deu apenas entre aqueles cujos interesses incluíam a história e a categorização de videogames piratas, não-licenciados e hacks: um multicart de NES, pitorescamente denominado 150-in-1 Of Bigness Games!, cuja procedência permanece um mistério; sabe-se apenas que foi encontrado em Taiwan, onde produtos do tipo são comumente manufaturados, mas o fato de incluir texto em uma linguagem até hoje não identificada o mantém um caso à parte. Como outros cartuchos similares, OBG não contém realmente os 150 jogos prometidos: os muitos e exóticos títulos do menu, cunhados em um amálgama de corrupções grotescas do inglês e elementos do idioma desconhecido, direcionam o jogador a uma de apenas quatro aventuras; todas, entretanto, originais e (por motivos que serão discutidos em seguida) ainda bastante populares entre seus poucos e fervorosos fãs.  
São elas:

WRATH! Azhdaim Naga Ugukulak! - RPG tradicional, inspirado em clássicos de NES como Final Fantasy e Dragon Quest, ambientado em um mundo de fantasia medieval. O enredo (tanto quanto se pode inferir) conta a história de um reino, Ilinizhia, atormentado por frequentes incursões estrangeiras; nesse ínterim, Lauza, jovem guerreiro da guarda real, é convocado pelo alto-sacerdote Khildagad para uma missão secreta: recuperar uma antiga relíquia mágica, o Uguk, que supostamente teria o poder de repelir os invasores. A primeira parte do jogo, portanto, é focada na jornada de Lauza e seu volúvel conjunto de companheiros em busca do misterioso artefato; no esquema típico dos RPGs da era 8-bit, os heróis devem vagar por um overworld, visitar diferentes localidades, interagir com outros personagens e ganhar experiência vencendo batalhas baseadas em turnos.   
Uma particularidade, contudo, logo se faz sentir: além de os inimigos serem exclusivamente animais ou soldados humanos, aparentemente ninguém (nem mesmo Aulav, identificado de forma explícita como “feiticeiro em treinamento”) é capaz de aprender qualquer forma de magia. Essa questão acaba se tornando um ponto central da narrativa, como um tópico de desavença e dúvida entre o grupo​; até que, já no caminho de volta, uma reviravolta os pega de surpresa: após seu bando ser derrotado por Lauza e seus amigos, um estrangeiro inadvertidamente declara ter sido contratado por Khildagad para armar a emboscada, matá-los e levar o Uguk até suas mãos. Daí em diante, mais e mais revelações são feitas, conforme os heróis cuidadosamente reentram as fronteiras de Ilinizhia: o próprio alto-sacerdote havia financiado as invasões; seu plano era obter a relíquia e “usá-la” para fazer cessar os ataques, sendo então aclamado como líder de uma nova teocracia; o objeto em si não possui poder algum exceto pela crença da população, e a existência mesmo da magia é apenas uma mentira usada para manipulá-la. A seção derradeira do jogo, então, descreve a luta dos protagonistas para instaurar uma insurreição contra o templo e restituir a paz ao reino.
Apesar de oferecer uma experiência razoável quando comparado com os jogos que o influenciaram, incluindo um enredo complexo e uma mecânica bastante decente, WRATH! é, contudo, lembrado hoje primariamente por sua mais notável fraqueza: a tradução. Sendo dos quatro títulos presentes no cartucho aquele que abarca o maior volume de texto, ele é o que melhor evidencia a total falta de proficiência de quem quer que tenha sido o responsável por adaptá-lo ao inglês. É bem óbvio, especialmente àqueles com algum conhecimento em linguística, que o trabalho foi feito de forma amadorística mediante uso de uma gramática, evocando à mente ecos do clássico do humor não-intencional English as She Is Spoke, do português Pedro Carolino. Algumas linhas de diálogo, por exemplo, contêm como que complementos idiossincráticos entre parênteses, possivelmente copiados literalmente de alguma passagem explanatória das (sem dúvida muito profundas) diferenças morfológicas entre os dois idiomas; a macarrônica frase “Of you of dog smelling of usefulness no be! (I firmly believe)” denuncia com clareza esse processo: o segmento final, pode-se deduzir, não fazia parte do script, sendo apenas um esclarecimento sobre as conotações da específica conjugação do verbo “ser” usada na língua original, tendo sido incluído de forma irrefletida pelo “tradutor”.  
Esse atributo particular foi em si o que tornou o jogo popular dentro da comunidade, contribuindo para a criação de numerosos memes (como o onipresente “Of you of completeness bases towards we (exclusive) of belongness be”) e sendo talvez a primeira forma de contato de recém-chegados com os OBG. Sua influência é tão ampla que muitos hoje suspeitam que o uso de tal horrenda tradução tenha sido em verdade intencional.

Paup Paup Paungidaimas - jogo de plataforma genérico, elaborado nos moldes da franquia Super Mario Bros., talvez tendo crianças como público alvo. O protagonista, um picolé antropomórfico cor-de-rosa (apelidado “of popness/paupness man” pelos fãs), deve percorrer trinta e cinco níveis distribuídos por cinco mundos, enquanto coleta cubos de gelo, estrelas e (por alguma razão) discos de vinil. A maior parte dos inimigos é composta de animais típicos de regiões árticas, como ursos polares e pinguins, e cada mundo tem como chefe a versão gigante de um desses. O único power-up é um floco de neve escondido em estágios bônus, que faz o of popness man crescer e lhe dá o poder de disparar um raio congelante. 
Substancialmente mais rudimentar do que WRATH! (não contando nem mesmo com uma introdução; o que há de texto se resume a umas poucas palavras ditas pelo personagem principal em balões de fala, como “cool!” e “groovy!”), é difícil conceber que PPP tivesse atingido um grau de celebridade próximo daquele não fosse por um erro de programação: vencer é literalmente impossível; ao se derrotar o quinto chefe, o jogador é apenas levado de volta a uma versão extremamente corrompida do primeiro nível, sujeita a glitches nos gráficos e na música, flashes aleatórios da tela-título e até o travamento completo. Pode-se então (havendo paciência para tal) repetir as mesmas trinta e cinco fases, infinitamente, cada vez mais “bugadas” e menos jogáveis.  
Acontece que o cartucho contém os três mundos finais (vinte e um estágios), mas estes só podem ser acessados mediante hackeamento. Apesar de esse fato hoje já ser bastante conhecido, e existirem patches para que jogadores possam usufruir da experiência completa, a versão original (com todas as suas falhas) aparentemente ainda é mais popular em fóruns de entusiastas e vídeos let’s play no Youtube; nesses casos, PPP é não raro apresentado como uma criação indie de terror.

A Zaum: Vankhirtaülak ARMAGEDDON? - jogo de luta de temática mitológico-fantástica, que se utiliza de uma engine simplória semelhante à de muitos ports do arcade encontrados em outros cartuchos “extra-oficiais” para NES. A backstory aqui é ainda mais obscura do que a de WRATH!, já que, no lugar de diálogos em um inglês sofrível, há todo um prefácio explicado no idioma indecifrável de seus criadores; só o que é inequívoco é que se trata de um torneio marcial, expediente comum do estilo. 
O gameplay é o estritamente habitual: um versus mode que permite ao jogador a escolha de seu combatente e um adversário para uma luta avulsa (sendo o único dos OBG a incluir a opção para dois players), e um story mode em que é preciso desafiar vários inimigos em sequência. Os personagens são esdrúxulas criaturas demoníacas, e os cenários lembram os “infernos” de várias culturas; lava e sangue permeiam todos os duelos, sem muita variedade. Os controles também não trazem nenhuma inovação: duros, se resumem à fórmula “B para chutar e A para socar”, e os comandos de especiais são os mesmos para todos os lutadores; além disso, as hitboxes são ora muito grandes, ora pequenas demais. Enfim, basicamente o mesmo que os consoles viram do gênero até a chegada da era 16-bit. 
Mas o interessante aqui não diz respeito à qualidade do jogo (ou à falta de tal). Diferente dos anteriormente discutidos, este não obteve sua fama à custa de qualquer defeito clamoroso; o detalhe ainda recordado, ao menos ao que parece, foi tão premeditado quanto todo o resto: o desfecho. Ora, para que se termine A Zaum, a princípio deve-se desafiar todos os demônios disponíveis (inclusive um clone do seu escolhido) em ordem aleatória, e em seguida um quadro aparece com o nome de três chefes: DRACULA, ABYSMAL e o epônimo ARMAGEDDON. Então, após derrotar os dois primeiros, quando presumivelmente dar-se-ia a batalha final, vem a surpresa: uma cut-scene semelhante à inicial se desenrola, mostrando uma figura não-identificada a recitar alguns parágrafos de texto ininteligível; um close do rosto do personagem utilizado pelo jogador domina a tela, em uma expressão de terror; os créditos, em branco, rolam sobre essa imagem, e o jogo acaba. 
A identidade da criatura que aparece apenas nos últimos instantes da história, o significado do insondável epílogo e a impossibilidade de se enfrentar o inimigo que se supunha ser o mais importante de todos são mistérios até hoje inexplicados. De certa forma, A Zaum sofre de uma sina oposta àquela que sobreveio a Paup Paup Paungidaimas: enquanto que este contém de fato uma boa quantidade de conteúdo que é amiúde ignorada por ser usualmente inacessível, aquele é vasculhado sem cessar em busca de coisas que, é sabido, não estão lá. A luta contra ARMAGEDDON, assim como o modo de acessá-la e as consequências de vencê-la, é tema frequente de creepypastas e rumores online; e não faltam hacks e fan games desenvolvidos com o objetivo explícito de recriá-la.

Nuk - puzzle exótico, cujo conceito não demonstra conexão óbvia com qualquer outro conhecido. Sua mecânica de jogo, se é que a expressão é válida, permaneceu por muito tempo como que um ritual sem sentido; apesar disso (ou talvez precisamente por esse motivo), o título é possivelmente o mais conhecido dos quatro. 
Uma partida de Nuk se dá sempre contra três adversários, todos controlados pela CPU; cada um começa com cinco cartas, e a cada turno uma é sacada e outra descartada. Essas, entretanto, não são as mesmas de um baralho típico: animais, objetos domésticos e outras visões menos discerníveis as ilustram, e não é claro se houve o intento de que transmitissem algum significado ou relação mútua. O que, no final das contas, não faria muita diferença: tudo o que o há para fazer é seguir comprando e largando cartas, vez após vez, até que um dos participantes “ganhe”; e mesmo isso só é perceptível porque os outros todos somem, uma breve fanfarra é executada e então tudo recomeça. Nunca foi descoberto um padrão entre as combinações vitoriosas; as regras do jogo, especialmente a questão de o que caracteriza uma vitória, foram tema de muitas e calorosas discussões. 
Foi apenas alguns meses atrás, quando a ROM do cartucho foi hackeada pela primeira vez, que as respostas foram obtidas. Ocorre que não existem propriamente “regras”, na acepção habitual da palavra: a cada tantos turnos, o jogo tem 50% de chance de apontar um vencedor de forma totalmente aleatória; ou seja, não há modo legítimo de se influir diretamente no resultado. O intervalo entre cada “decisão”, contudo, depende das ações do jogador, fazendo com que seja possível que uma partida dure (em teoria) para sempre; e, como isso requer que se tenha sempre as cartas certas, conclui-se que ou essa era a exata intenção dos criadores ou uma coincidência inacreditavelmente descomunal tem se feito presente desde que esse método foi descoberto. 
Hoje, portanto, os fãs de Nuk têm sua própria competição, focada no aspecto técnico, na compreensão do complicado esquema que rege o comportamento do jogo: julgando que um empate controlado, nesse contexto específico, é preferível a uma conquista arbitrária, disputam quem consegue se manter jogando uma mesma partida por mais tempo.

Paranoia a Laser

Já faz um tempo que eu venho cultivando na cabeça um conto aqui pro blog, estocando referências, me esforçando pra construir jogos de palavras que ao menos parecessem ter algum significado profundo, enfim. Mas, é claro, é inútil. Pelo próprio caráter da ideia, só uns poucos leitores poderiam ver nela algo de interessante; os restantes ficariam no máximo coçando a cabeça em dúvida, no mínimo desistiriam no segundo parágrafo. Não é o meu estilo, por mais que eu goste do tema. 
O tema: a natureza da realidade, e suas respectivas imprecisões. Digamos que, por exemplo, eu sugerisse que existe uma conspiração gigantesca que mantém a vasta maioria da população num mundo artificial (por algum motivo), e que tudo aquilo que a gente vê como “real” é na verdade uma ilusão super elaborada. Matrix, alguém? Por clichê que seja, vamos começar por aí. 
Só que sem “pílula vermelha, pílula azul”; a brincadeira é muito mais difusa que isso.  A peça se desenrola quase que perfeitamente. De vez em quando, mas muito de quando em vez, acontece alguma coisa, algum deslize, e bate aquela sensação vaga e gelada de “puta que pariu”. Mas é tudo tão sutil, tão pessoal, que quase o resto todo da humanidade prefere ignorar. Tipo quando uma pessoa que a gente conhece a vida toda fala um negócio totalmente inesperado; e ainda fica com aquela cara de “eu nunca te contei isso?”. E ninguém mais acha estranho. E quem acha é esquizofrênico. 
Isso na verdade acontece o tempo todo. Uma foto que a gente não se lembra de ter tirado, um livro na estante que ninguém comprou. Quer dizer, quem é vai decorar todas as fotos e todos os livros que tem? E mesmo que decore, esquecer ou lembrar errado (ou mesmo inventar completamente uma memória falsa) é comum; pelo menos é o que dizem os neurologistas. Tem sempre uma autoridade pra explicar tudo aquilo que não deveria precisar de explicação. Faz tanto sentido que só pode ser mentira, certo? 
Mas, pensando bem, por que eu iria me dar o trabalho de escrever um texto comentando isso tudo? Por que eu iria querer que os meus leitores desconfiassem da própria sanidade? Tem alguma mensagem escondida aqui? Mas se a gente aceitar que a realidade não é real, qual a referência pra se saber o que é real? Um sonho dentro do outro: eventualmente a gente não tem certeza se acordou mesmo. Se alguma vez na vida acordou.

*

Ou seja, tipo Ubik dissecado aos seus elementos rigorosamente essenciais; eu poderia até rotular como uma desconstrução do gênero, se eu tivesse cara de pau suficiente pra isso (porque o terror existencial e o pós-modernismo andam sempre de mãos dadas). O caso é que seria como um truque barato; quase como socar garganta abaixo do leitor uma reação enlatada, até a ficha cair como a punchline de uma piada ruim. Porque é uma questão de estatística, só. Não importa o quão específico eu fosse, alguém dentre todas as pessoas que viessem a ler o texto iria se identificar (ou não; mas apostar na impopularidade do meu blog me parece um pouquinho contraproducente) e realmente questionar a consistência da realidade por meio instante; as outras, caso existissem, nem isso. Ilusionismo: distrair os observadores do verdadeiro foco; uma tática digna do Ministério da Verdade de 1984
Agora, numa nota diferente mas não completamente desassociada, eu me obrigo, até por uma questão ética, a ressalvar: como escreveu Joseph Heller em Ardil 22, just because you’re paranoid doesn’t mean they aren’t after you.

Moto-Perpétuo

Via, inocente, o filete de luz entrar pela rachadura da velha parede. Não importava que toda a sala fosse embebida em sol por incontáveis janelas e portas, aquela nesga tímida e irregular insistia em aparecer; vinha, dançava seu balé diário pelo chão de madeira e se punha, sonhando imponência, somente quando a noite chegava. A menina, encantada, requeria à mãe um nome para aquele pequeno milagre: “luz”, respondia, distraída; pois de que outra forma se lhe poderia chamar? E, para além dos fótons das aulas de Física, essa foi a definição mais primitiva e íntima da palavra que a menina guardou para si. 
E quando a vida lhe inundava de tudo, procurava sempre uma fresta por onde escoar; buscava antes não se encaixar no que quer que fosse. Como um rio que dá em uma laguna, cavava seu próprio caminho paciente até vazar, ainda que gota a gota, para o oceano; porque o oceano, sabia, não era mais que uma laguna maior agarrada a um maior continente. Se a iluminação dos sábios, do alto de suas torres de mármore, era a união com a infinitude, sua iluminação pessoal era justamente o escape de todos os infinitos: correr incessantemente entre dois pontos, como queria Zeno: a ilusão do movimento sendo-lhe mais reconfortante do que a complacência estagnada do extremo onde o nada toca o tudo. 
Temia, pois, apenas a noite: quando as luzes cessavam sua ação, e a sensação de um desfecho iminente se lhe aproximava. Uma eternidade no Paraíso ou o fim brusco e definitivo de sua existência, ambas as possibilidades lhe eram igualmente assustadoras. Fugia, portanto, ainda nos pensamentos sobre o travesseiro; fugia, enquanto o sono vinha abraçá-la, em planos, palpáveis ou não, para o amanhã. 
E, enquanto houve amanhã, teve a felicidade de acordar sempre com o primeiro fio de luz que viesse dançar sobre seus olhos.