A Profana Igreja Neutra de São Ninguém

Como os ateus pecam?
À primeira vista, a pergunta parece absurda. Ateus não pecam, ou pelo menos acreditam que não (o leitor de fé seguramente irá discordar), já que o próprio conceito de “pecado” é religioso em origem. Aliás, livrar-se desse peso na consciência, pela lógica, deve ser um dos maiores benefícios de se abandonar a crença na existência de deus, certo? Pelo menos era isso que eu ia pensando no caminho pra entrevista de hoje.
Por fora, o prédio lembrava uma loja de antiguidades ou um museu: fachada art nouveau adornada com esculturas pseudo-orientais, mas sem inscrições ou qualquer indicação do que poderia existir lá dentro. O business card que nós tínhamos recebido de um membro (que preferiu se manter anônimo) exibia o particularíssimo nome “Prohibitus - Templo Agnóstico e Masmorra S&M”, escrito em fonte elegante, seguido do endereço; mas, como eu logo iria descobrir, os frequentadores preferem usar apelidos “carinhosos” pra se referir ao lugar, como “Igreja de São Ninguém”,  “Catedral Safada” ou (o meu preferido, pela sutileza maravilhosa) “Igreja Flexível”.
Apesar de tudo, o interior me pareceu bem mais comportado do que eu esperava: com a exceção de alguns símbolos claramente não cristãos (por exemplo, no lugar de cenas bíblicas, os afrescos da abside eram cheios de imagens abstratas, rosas, cálices e cabeças de touros e leões), nada ali causaria escândalo em uma igreja tradicional. O proprietário, atendendo pela modesta alcunha de “Arquidiácono”, me recebeu numa salinha à esquerda do transepto; numa conversa franca e surpreendentemente filosófica, ele tentou me explicar, com o perdão da expressão, o que diabos se passa naquele estabelecimento.

Hiper Intrigante - Em primeiro lugar, quem foi o maluco que teve essa ideia?

Arquidiácono - [risos] Eu, junto com um grupo de amigos. Uma das nossas intenções era causar exatamente esse tipo de reação.

HC - Então é uma brincadeira? Uma provocação aos religiosos?

A - No início era, eu acho. Não uma “provocação”; só um deboche, uma coisa bem sadia. [risos]

HC - Ok, mas realmente existe uma masmorra sadomasô no porão?

A - Existe. Essa era a parte séria do plano, na verdade. A igreja era pra ser só um atrativo a mais, uma “fantasia”, entende? Foi ficando mais sério depois.

HC - “Mais sério” em que sentido? A religião de mentirinha virou realidade?

A - Não, não; o nosso templo é agnóstico, e nunca vai deixar de ser. Deus aqui não entra. Só o aspecto ritual, ritualístico da coisa que passou a ser mais importante pra nós; os próprios clientes começaram a exigir isso.

HC - Por que você acha que isso aconteceu?

- Não sei; eu acho que de repente as pessoas gostam desse “incentivo”. Quer dizer, geralmente quem vem aqui é gente que cresceu dentro de alguma religião, e só há pouco tempo teve a coragem de abandonar. Pode parecer ridículo, mas talvez elas sintam falta da opressão, do medo do castigo, entende?

HC - A proposta então é manter uma aparência de sagrado pros clientes poderem ter o “prazer” de pecar?

A - Isso. É isso que eu escuto lá embaixo, todos os dias. E tá no nosso nome, também: “prohibitus”, em latim, não significa só “proibido”, mas também “protegido”, “preservado” e “restrito”. Eu acredito que o que nós fazemos aqui seja isso: preservar essa sensação de “fazer coisa errada”, sem que os membros precisem aceitar nenhuma doutrina imbecil sobre a origem do universo e essas coisas.

HC - E, apesar disso, a nave da igreja é decorada com símbolos religiosos, e o líder se denomina “arquidiácono”. Isso não confunde um pouco as intenções? Como funciona a “pregação” aqui?

A - Não, os símbolos são parte da atmosfera, só. São coisas bem vagas, não têm significado nenhum; nós não esperamos que ninguém preste atenção neles. A mesma coisa o meu título. Nós criamos toda uma hierarquia, caso alguém queira se tornar sacerdote. Mas no fim das contas, como você disse, é só aparência. O que eu falo nas missas são discursos genéricos sobre moralidade, castidade etc.; não tem doutrinação, ninguém tem que acreditar em nada.

HC - Você mencionou uma hierarquia; alguém além de você desempenha alguma função, digamos, “eclesiástica”?

A - Não, aqui na parte da igreja, não; pra te falar a verdade eu não acredito que alguém vá se interessar. Mas a hierarquia existe, caso isso aconteça. Ou caso alguém pergunte.

HC - Antes desta nossa conversa, alguém já tinha perguntado?

A - Não. Mas eu acho que as pessoas também não se preocupam muito com hierarquias em igrejas “normais”, né? Tendo um cara lá no altar falando o que elas querem ouvir, elas nem questionam.

HC - Essa atenção toda ao detalhe não é um pouco desnecessária, então? Você, como mentor dessa loucura toda, não se sente às vezes um pouco...

A - Ridículo? [risos]

HC - [risos] Eu ia dizer “entediado”, mas acho que “ridículo” serve. Sério, o roleplay não enche o saco? Não dá uma sensação tipo “nossa, chega de preliminares!”?

A - Não, não; eu gosto. Isso de “entrar no personagem” faz parte da cultura BDSM. O meu papel, como você falou, é o de mentor; então eu garantir que tudo funcione perfeito, que não aconteça nenhum imprevisto, tá atrelado até ao meu próprio prazer, entende? É tudo um jogo de poder.

HC - Bom, eu até já imagino a resposta pra esta pergunta, mas... Pessoalmente, você segue alguma religião?

A - Se eu seguisse, a esta altura já tinha sido excomungado. [risos] Não; eu fui criado como católico, mas hoje sou ateu.

HC - E por que o “agnóstico” do nome, então? Por que não “ateu”?

A - Porque o culto é aberto pra qualquer um; não cabe a nós dizer pros clientes que deus não existe. Até teístas, ou pessoas que seguem outras religiões, podem participar. Como os clientes comentam, nós somos uma igreja flexível.

HC - Pra terminar, qual seria a sua reação se algum dos seus “fiéis” passasse a seguir você como um líder espiritual de verdade?

A - Eu duvido muito que isso vá acontecer, mas acho que eu seguiria fazendo o mesmo que eu já faço: usar minha influência pra obter favores sexuais. [risos] Ou, não sei, talvez aí eu me sentisse culpado.

Crônicas do Fim do Mundo XIV - Entregável

Todo dia eu enxergo um homem do outro lado da janela do meu escritório. Todo dia, no mesmo horário, ele aparece na rua; tira uma foto do muro, sempre do mesmo ângulo (sempre do mesmo muro), e vai embora. Meus colegas não veem o homem, porque o meu cubículo é o único com visão para a janela; mas todo dia, quando os computadores me dizem que são 18:47, ele aparece. É estranho, porque às vezes já é escuro quando isso acontece; mas eu não acho que os computadores mintam. O homem vem com uma lâmpada grande, tira uma foto do muro e vai embora.
Às vezes, quando eu tenho tempo, eu me pergunto o que ele faz com as fotos. Meus colegas me dizem que é bobagem. Quando eu falei um dia que queria seguir o homem depois do serviço, o Bob me respondeu que poderia ser perigoso. “Ele pode trabalhar pro Supervisor”, o Bob disse. Faz sentido. Talvez o homem seja o Supervisor; talvez ele nem tire foto nenhuma.
Ou talvez existam outros homens tirando fotos de outros muros; quem sabe até em horários diferentes. Talvez eles estejam fazendo um Relatório de Muros; ou um Relatório de Dias. Sempre as mesmas fotos, sempre dos mesmos ângulos (sempre dos mesmos homens), anexadas em um email para outra seção.
Eu tenho medo do que pode acontecer quando eles terminarem.

Breve Compêndio de Pseudeisegeses III - Ex Chao‏

Dizem os estudiosos que o princípio de nosso Universo possivelmente tenha se dado a partir de um literal nada: flutuações energéticas no vácuo (ou seja, o surgimento espontâneo de partículas e antipartículas, tão minúsculas e efêmeras que não chegam a violar a lei da conservação de energia) teriam ocorrido sem cessar em um período anterior ao próprio tempo; a maioria delas era anulada tão logo quanto brotava, mas eventualmente uma durou o suficiente para causar um ligeiro desequilíbrio negativo e desencadear a expansão gigantesca que originou todo o cosmos. Em termos leigos: onde nada existia, algo apareceu (mediante as mesmas leis que ainda hoje podem ser observadas), e esse algo então fez com que o nada se inflasse em tudo.
Por nossa tão comum e triste falácia patética, poderíamos ver então na gênese cósmica um cinismo indesculpável. Que grande injustiça é essa que tolera que o Universo, nau maior da grande aventura humana, tenha-se originado do mero acaso? Mesmo à luz da ciência, longe dos confins do mito e da religião, parece absurdo que tudo que existe poderia nunca ter existido.
Talvez, contudo, essa seja só uma impressão minha.

*

Eu recordo (com alguma vaguidão, é verdade) haver lido, anos atrás, um artigo sobre determinada palavra que fora incorporada por engano ao preeminente dicionário de língua inglesa Webster’s: tratava-se, caso não me falhe a memória, de certa abreviação que precedia um outro termo (este “verdadeiro”, corrente) a ser incluso na lista; e ocorreu que aquela foi tomada como o vocábulo em si, e este como a sua definição. O erro permaneceu quase uma década sem ser notado.
Uma anedota de pouca importância, sem dúvida, e até me causa estranheza que eu a tenha guardado na mente por tanto tempo. Não obstante, ainda hoje me pego ruminando, nos momentos de ócio contemplativo (que acabam sendo os momentos mais produtivos da vida), sobre a origem de tais fenômenos: somos sempre levados a crer que a linguagem, como toda forma de expressão humana, é fruto de nosso espírito intencional, o Geist que queria Hegel, superior em todos os aspectos ao que é natural e involuntário; exatamente por isso que existem as autoridades que se dedicam a manter essa pretensa “essência” da língua, das artes e da cultura. Eis, porém, que elementos como a palavra-fantasma do Webster’s vêm a se intrometer no sistema, de maneira inexplicável, por mera coalescência arbitrária de eventos desconexos. Mesmo os termos que contam com etimologia universalmente aceita podem, em última instância, derivar de outros erros, negligências e quaisquer demais desencontros ora perdidos na noite dos tempos; e nem mencionamos aí aqueles cuja origem é simplesmente desconhecida.
Redunda que, no grande esquema das coisas, a vontade pouco vale. Poderíamos estabelecer, por capricho ou por insegurança, que o sujeito que causou (ou permitiu) o surgimento dessas entidades foi seu “criador”; mas que diferença isso faria? Restaria ainda o fato de que a ação não foi proposital.
Perguntaria então o cínico: e daí?

*

O motivo da Chaoskampf (“batalha contra o caos”, em alemão) é frequente em relatos mitológicos, particularmente aqueles de origem indo-europeia. Nele, um herói ou deus, representando a ordem, enfrenta um dragão ou serpente que representa o caos. Muitos paralelos já foram traçados entre tais lendas e o estilo de vida de seus respectivos povos; a necessidade de se compreender os mecanismos da natureza, assim como de se dominar os ímpetos selvagens dos membros da sociedade, foi o que lhes moldou o caráter religioso. Nesse ínterim, o caos se referia ao nível mais básico e profundo da psique humana, reprimido através da prática ritual.
Eu não lembro precisamente por que decidi incluir aqui este segmento (exceto que por um nebuloso senso temático), mas tenho certeza de que havia uma boa razão.

*

A fria realidade (e eu me concedo ser patético, por fim) me consome. Eu tentei, juro que tentei; mas não importa o que eu escreva, não há força em mim que possa coordenar todo o fluxo de informação em uma direção somente. Onde quer que tenha havido uma passagem completamente honesta, reflexo de algum efeito real dos assuntos abordados sobre a alma do escritor, o leitor poderá ler apenas um recurso literário; e, é claro, vice-versa (este mesmo parágrafo sendo quiçá o maior exemplo). Tudo se encaixa hermeticamente como aquelas bonecas russas; a única maneira de quebrar o ciclo seria RÚCULA ANDRÔMEDA CARANGUEJOS DE 641641684268486