The End of the World as We Know it

Onze horas, e até agora nada. A Amanda continua olhando pro céu, sorrindo quieta e pensando em algum mistério profundo que eu com certeza nunca vou entender; os outros já tão todos bêbados, claro. Pra ser sincero, eu tou morto de sono; mas não vou sair do lado dela por nada neste mundo.
Seria ótimo se eu tivesse alguma coisa inteligente ou engraçada pra dizer agora; de repente eu deveria tar bebendo também…

*

O jeito como tudo aconteceu foi completamente absurdo, desde o início. Foi uns meses atrás; depois de um dos nossos ensaios, pra relaxar, eu tava derpando num desses chans da vida. Entre um post sobre wendigos e outro sobre leituras de tarô, eu me deparei com um texto parecia ser um pouco mais interessante do que de costume: por cima, eu deduzi que era uma creepypasta sobre o apocalipse, temperada com uns termos científicos e tal e coisa. A Amanda tava afinando o baixo dela ali por perto, e, como eu sei que ela adora esse tipo de coisa, levei o meu laptop pra nós lermos juntos.
A coisa na verdade era bem mais elaborada do que eu tinha achado (ou pelo menos enganava muito bem): o autor, supostamente um professor de Astronomia de Harvard, supostamente tinha encontrado um método pra prever “erupções de raios gama” e, porque desgraça pouca é bobagem, supostamente previu que uma delas ia acontecer dali a alguns meses e atingir a Terra. Desde então, segundo ele, toda a comunidade científica teria iniciado uma campanha pra desacreditar a descoberta, ele perdido o emprego e o FBI instalado escutas e câmeras pela casa dele. E, lógico, a melhor forma de avisar o mundo sobre essa conspiração era com um post num fórum sobre paranormalidade; ao menos os “experts” nos comentários confirmaram que a teoria fazia todo o sentido.
Essas erupções de raios gama, aliás, são explosões de energia gigantescas que acontecem quando estrelas colapsam em buracos negros. Ou seja, em menos de um ano o nosso planetinha ia basicamente fritar em óleo quente, só que numa escala cósmica.
- Se o mundo vai acabar, a gente tem que comemorar antes! - foi a primeira coisa que a Amanda falou quando terminou de ler; e eu fiquei olhando pra cara dela, tentando desvendar se aquilo era brincadeira ou não.
A Amanda é assim. Ela sempre foi a primeira a se jogar na lama, a primeira a querer pegar os insetos e outros bichos nojentos na mão; a primeira a se cortar e ficar toda roxa, e ainda por cima dar risada. Tudo pra ela é lindo e maravilhoso e divertidíssimo. Dá pra contar nos dedos as vezes em que ela chorou na vida (e nunca na frente de muita gente; eu devo ser uma das poucas pessoas que viu isso acontecer): ela sabe sorrir de alegria, pra acabar com o tédio, pra esconder o medo...
Eu, por outro lado, acho que sempre fui o moleque magrelo, pálido e emo que sou hoje. Talvez seja até por isso que eu admiro tanto a personalidade dela. Sempre admirei… Sempre fui apaixonado por ela. E, como todo bom loser, nunca tive coragem de confessar.
- Claro… - eu respondi, tentando acompanhar a animação dela. - “A última festa da Terra”, imagina que foda. - e até hoje eu não sei se isso foi ironia ou não.
De qualquer forma, foi dito e feito: a organização começou naquele mesmo dia. A princípio, o programa era fazer um showzinho pra uns amigos na garagem do Marco (nosso baterista); mas ele ia viajar com a família nas férias (ou então só achou a ideia muito estúpida e usou isso como desculpa), então a gente teve procurar outro lugar e tal. Não que fosse fazer muita diferença: a maior parte das pessoas que a gente convidava ou ignorava ou achava que era zoeira; uns poucos confirmaram presença, mas não contribuíram com nada e só se interessaram porque ia ter bebida. Só a Amanda tava disposta a fazer a festa acontecer; e, por tabela, eu também.
A gente prometeu um pro outro, ainda na primeira semana, agir como se a previsão do cara fosse uma coisa certa; como se não existisse dúvida de que o mundo ia acabar em pouco tempo e tudo tinha que ficar definido pra ontem. Decisão dela, mas eu concordei de cara. 
- Chorar e se desesperar é opcional. - lembro que ela disse.
Tudo que a gente conseguia pensar de louco, idiota e infantil (elefantes treinados, paintball, lasanha de algodão doce) ia pra “lista de atividades”; e 90% das vezes tinha que ser cortado de volta, por “questões orçamentais” ou alguma outra desculpa. Tudo super sistemático, apesar de a gente saber que não tinha dinheiro ou recursos pra quase nada. Esse é o problema das promessas, sabe? Se as pessoas não cumprem com a palavra, não dá pra confiar nelas; mas, se elas cumprem, não dá pra saber se foi por vontade própria ou só por obrigação. Quer dizer, a Amanda tava sempre pronta pra fazer o que fosse preciso, mas como eu vou saber o que ela pensava de verdade?
E eu nunca parei pra pensar no que eu pensava, claro; medo de que um lapso de cinismo acabasse estragando aquela nossa coisa juntos. Medo, medo, medo…

*

Agora são onze horas, e eu não tenho nada melhor pra fazer do que só ficar sentado aqui no telhado de braços cruzados. Pra Amanda, nada do que eu possa dizer neste momento tem como ser mais interessante do que as estrelas; eu não tenho nem coragem nem vontade de interromper a alegria dela.
Devagar, sem fazer nenhum som, ela põe um braço por cima do meu ombro; deita a cabeça no meu peito sem parar de olhar pro céu. Eu tento reagir, fazer alguma coisa, mas meu corpo não obedece. Talvez seja o medo de que o mundo realmente acabe… Ou de que realmente não acabe. Só consigo fechar os olhos. A lua tá tão grande e bonita esta noite…