Por que me
incomodar em escrever isto? Alguém aí fora ainda escreve em papel? Não sei.
Você que tá lendo, que ano é agora? Eu devo ter morrido séculos atrás. Espero
que tudo vá bem, que tudo esteja, sabe?, inteiro ainda. Real. Eu tenho
que pensar que o mundo ainda tem jeito. Lembra de Lost? Talvez você seja
meio novo pra lembrar; mas se tiver assistido na internet ou sei lá, você tem
alguma noção da minha situação atual: não sei como vim parar aqui, não tenho
ideia do que tá acontecendo, e o final possivelmente vai ser péssimo. Era um
clássico, clássico mesmo.
Eu voltei pra
Trevorton por pura falta do que fazer. Às vezes eu penso que foi punição
divina, sabe? Quer dizer, poucos dos meus colegas conseguiram virar
veteranos, o que dirá ter ainda sangue suficiente correndo nas veias pra chegar
à minha idade. Eu tive muita, muita sorte. Não vou dizer que eu não
mereci, nada numa guerra é merecimento, mas enfim. Eu voltei pra cá por falta
do que fazer; viajar é difícil hoje em dia, mas acho que um pouco menos pros
velhos. De repente é porque é só isso que a gente pode fazer: andar por aí
fingindo que tá tudo bem, tirar fotos de réplicas, sugar tanto quanto possível
as tetas do governo e chutar o balde quando não dá mais pra aguentar. A vida é
boa.
Meu amigo Jim
tinha voltado uns dois, três anos atrás. Na época ele me mandou um email com
uma foto de uma pilha de escombros, com a legenda “ainda de pé!” e uma
placa com o nome da nossa antiga escola. Nós tínhamos crescido juntos, ido
juntos pra capital, casado praticamente juntos; morremos juntos na
guerra e daí nos separamos. Eu fui cuidar da Janet, ele caiu no mundo.
Janet era minha mulher. Quando eu recebi o email, ela tava no hospital; eu
ainda tinha esperanças, mas teria sido sorte demais. Depois que ela foi embora,
eu já não tinha mais nada a que me apegar, nem família nem amigos nem nada. Eu
tinha duas opções: ou deitava na cama e esperava a morte vir me buscar, ou ia
atrás da felicidade que a minha consciência me permitisse. Hoje eu sei o que eu
deveria ter escolhido.
A viagem foi
deprimente, pra dizer o mínimo. Eles não me deixaram sair do aeroporto antes
que eu dissesse aonde eu ia e como eu ia; daí foram horas até eu
conseguir alugar um carro com todas as medidas de segurança necessárias, o
traje especial e o caralho a quatro. Porque o nosso país cuida de seus
veteranos. Ver de novo as estradas da minha infância, agora vazias e
destruídas, através daquele maldito vidro azulado… Mais de uma vez eu pensei em
voltar; mas só de me lembrar dos filhos da puta no aeroporto, com aquelas
carinhas de “nós só queremos ajudar, senhor”, eu me forçava a seguir em
frente.
Mas nada
disso realmente importa; deixa eu pular direto pra minha “recepção” no
lugar.
Trevorton
hoje é menos que uma cidade fantasma, juro por Deus. Eles colocaram na entrada
um outdoor com vários vídeos da cidade nos anos 20; mas, fora isso, você vai
ter dificuldade em encontrar qualquer coisa por aqui. Não vale nem a pena
tentar. O sol já tinha se posto; eu rodei pelas ruas (ou pelo que eu deduzi que
tivessem sido as ruas um dia) por algum tempo, procurando por algum ponto de
referência da minha juventude antes de achar a passagem pros bunkers. Foi aí
que a coisa começou a ficar surreal.
No que eu fiz
uma curva entre uma cratera e um monte de lixo, me topei com duas pessoas
paradas no meio do caminho. Eu sei que alguns loucos por aí, especialmente em
vilarejos e tal, ainda insistem em morar na superfície; mas eu não tinha
encontrado ninguém até ali. No escuro, com uma névoa fina no ar e nenhuma luz
fora a dos faróis do carro, eu só via que os dois tavam usando casacos pesados
com capuz; quando eles começaram a se aproximar, eu notei que um deles tava
armado. Essa teria sido a hora de dar ré e fugir desta merda, mas algum
instinto me fez aguardar e observar. Em todo o caso, eu tinha a minha M11 no
porta-luvas.
- Baixa. - um
deles disse, batendo no vidro; não consegui ver a cara, mas pela voz ele não
podia ter mais que vinte e poucos anos.
Eu obedeci,
calmo e sem dizer nada.
- Nome? - o
mesmo perguntou; o outro ficava de longe, com a arma apontada direto pra mim.
- Solomon
Jackson.
Os dois se
olharam por um instante.
- Você... -
ele hesitou um pouco. - Você nasceu aqui?
- Sim,
senhor. - na hora eu não tinha como saber o porquê da pergunta, mas me mantive
firme e sério.
O que tava
armado, sem baixar o fuzil, veio até a janela do carro; ele soava ainda mais
novo e mais impaciente.
- Você
é Sol Jackson?
O que me
incomodou não foi a desconfiança dele. Não; a primeira coisa que me veio à
mente foi como que um moleque que nem tinha saído das fraldas ainda tava me
chamando por um apelido que eu tinha ouvido pela última vez décadas antes.
- Sou. Vocês
são amigos do Jim?
De novo, os
dois encapuzados se olharam, claramente confusos.
- Mostra a
carteira. - eles disseram, então, quase ao mesmo tempo.
Eu não
deveria ter sabido a quê eles tavam se referindo. Não fazia o menor sentido; e
ainda assim eu soube na hora: sem pensar, puxei do bolso a carteirinha do “Dragons’
Club” que eu, Jim e mais alguns amigos fundamos quando a gente tinha nove anos.
Nem sei exatamente por que eu tinha resolvido levar aquela porcaria; algum dia
antes da viagem eu devo ter achado ela pela casa e pensado que seria muito
divertido relembrar o nosso clubinho. Punição divina, meus amigos.
Os meninos
mudaram de atitude no mesmo segundo: baixaram a arma, puxaram os capuzes pra
trás e, sorrindo, se ofereceram pra me levar até os bunkers. Só não quiseram me
dar mais nenhuma explicação sobre o que tava acontecendo. Mas agora eu já tava
mais curioso do que assustado, então por que não?
Sim, o Jim
tava lá; e não, diferente do que eu imaginava, ele não tinha sido torturado nem
nada do tipo. Na verdade, ele tava melhor do que nunca. Todo sorridente e
despreocupado, morando no melhor alojamento da cidade. Foi ele
que finalmente me contou (pelo menos o que ele sabia) sobre o que tava
acontecendo: parece que (e, pelo que eu entendi, isso agora era o “grande
segredo” de Trevorton), depois que eu e ele deixamos a cidade, outros amigos
nossos mantiveram o clube vivo, passaram a tradição pros filhos e essa coisa
toda; daí, quando veio a guerra, a população praticamente inteira foi morta. O
único bunker da cidade (e era um bunker no sentido antigo do termo, só uma sala
pequena no subterrâneo de um prédio) ficava debaixo da escola. Qual a conclusão
brilhante disso? As crianças passaram a governar o lugar, e o Dragons’ Club de
alguma forma virou um tipo de culto secreto da “cúpula”. Por isso que ele foi
recebido como um dos “Fundadores” quando voltou, e passou a ser tratado como um
deus pelos membros; logicamente, eu deduzi que o mesmo iria acontecer comigo.
Parece ótimo,
né? Só que não. Durante a maior parte do tempo, é como se o lugar fosse uma
cidadezinha de interior igual a todas as outras: todo mundo é simpático, todo
mundo conhece todo mundo e ninguém nos trata diferente de ninguém. Só que a
gente não pode sair. Pelo que o Jim me falou, se a gente subir
até a saída dos bunkers uma das patrulhas nos pega do lado de fora e gentilmente nos força a voltar.
Quer dizer, tudo que tem pra fazer é ficar trancado aqui quase todos os dias;
alguém deixa comida pra gente todas as manhãs (possivelmente coisa não-tratada;
eu já devo ter pego câncer, mas que escolha eu tenho?), e a gente vai
sobrevivendo.
Mas o pior de
tudo são “cerimônias”: de tantos em tantos dias (na verdade eu acho que é
aleatório, mas não tenho como ter certeza; a gente perde a noção do tempo
aqui), uns encapuzados vão nos buscar pra nos levar até um bosque na
superfície; lá eles põem a gente num tipo de altar, enquanto eles rezam umas
bobagens e batem palmas e o diabo. Mas o ponto alto da noite é quando eles nos
trazem uma “relíquia” de antes da Guerra: um notebook mais velho que o
mundo, o único computador da cidade, que só nós dois temos permissão pra tocar.
E o que a gente faz com ele? A gente escreve nossas memórias. Sério. Toda a
importância dos “Fundadores” é essa: digitar tudo que a gente se lembra da
nossa juventude, pra eles usarem como um tipo de “livro sagrado” pra
construir uma nova sociedade ou coisa parecida.
Não me
entendam mal; eu acho ótimo que alguns jovens (ninguém aqui tem mais que
quarenta) se interessem pelo que os velhos têm a dizer. Eu só me pergunto o que
tem de real nisso tudo. Quer dizer, pode ser só coincidência, mas o líder do
culto também é o “prefeito" da cidade (pelo menos é assim que ele se
apresenta); será que ele acredita nessa história de “nova sociedade”, ou
só tá usando isso como desculpa pra continuar no poder? Não é como se o mundo
de antes da Guerra fosse uma maravilha, de qualquer forma; essa gente não
deveria querer fazer exatamente
o contrário do
que a gente fez? E porra, eles sabem o que tão fazendo? Eles realmente querem
isso? Por Deus, eu acho que a cidade inteira faz parte do clube!
Parece que o segredo todo é só uma questão de status quo; não sei se alguém
(com exceção, talvez, do líder) sabe o que vai acontecer quando a gente
terminar de escrever o livro.
Só o Jim
parece gostar da situação toda. Eu entendo, até; onde ele estaria se não fosse
aqui? Deitado num leito de hospital na capital, assistindo a reprises
de sitcoms velhas e sendo alimentado por um robô? Ele deve achar que isto
aqui é o paraíso comparado como o mundo real. Eu queria ser tão otimista.
Agora a minha
preocupação maior é conseguir continuar inventando memórias, tipo As Mil e
Uma Noites mesmo. O Jim já não se importa, coitado; tudo que eu falo
ele confirma. “Aquela vez que nós fomos pescar em Freemont Creek,
lembra?”, “Claro que lembro! Eu peguei uma truta deste tamanho!”; nunca
existiu um lugar chamando Freemont Creek. Desde que ele continue feliz, tá tudo
bem; desde que a gente morra antes de terminar de escrever. Às vezes é
divertido, até: eu misturo coisas do século XX, histórias de livros e séries de
TV, e os idiotas nem percebem. Ou percebem e não ligam. Honestamente, eu quero
mais que se foda.