Divindade sob Medida

E o homem decidiu abdicar de seu já bem sedimentado (e a muito custo adquirido) ateísmo para novamente abraçar um dogma: convencera-se de que, diante do incognoscível, a única postura realmente lógica é a crença cega e irrestrita; e, se a verdade absoluta não pode ser conhecida, qualquer ceticismo é fútil, apenas um apego patético e orgulhoso à estatística.
Entretanto, ter plena consciência desse pequeno detalhe do âmago de qualquer fé (ou, em verdade, da própria noção de fé) lhe permitiu conceber a divindade mais perfeitamente adequada possível: um god of the gaps transposto, mutatis mutandis, à subjetividade pós-moderna; desconstruído a sua existência mínima, condenado a preencher cada volúvel e covarde lacuna da consciência de sua criatura e a se afirmar apenas pelo próprio silêncio.
Esse homem, embalado vida afora por sua meticulosamente calculada ignorância, talvez seja o ser mais feliz deste mundo.

Crônicas do Fim do Mundo XII - Os Deuses Devem Estar Entediados

Por que me incomodar em escrever isto? Alguém aí fora ainda escreve em papel? Não sei. Você que tá lendo, que ano é agora? Eu devo ter morrido séculos atrás. Espero que tudo vá bem, que tudo esteja, sabe?, inteiro ainda. Real. Eu tenho que pensar que o mundo ainda tem jeito. Lembra de Lost? Talvez você seja meio novo pra lembrar; mas se tiver assistido na internet ou sei lá, você tem alguma noção da minha situação atual: não sei como vim parar aqui, não tenho ideia do que tá acontecendo, e o final possivelmente vai ser péssimo. Era um clássico, clássico mesmo.
Eu voltei pra Trevorton por pura falta do que fazer. Às vezes eu penso que foi punição divina, sabe? Quer dizer, poucos dos meus colegas conseguiram virar veteranos, o que dirá ter ainda sangue suficiente correndo nas veias pra chegar à minha idade. Eu tive muita, muita sorte.  Não vou dizer que eu não mereci, nada numa guerra é merecimento, mas enfim. Eu voltei pra cá por falta do que fazer; viajar é difícil hoje em dia, mas acho que um pouco menos pros velhos. De repente é porque é só isso que a gente pode fazer: andar por aí fingindo que tá tudo bem, tirar fotos de réplicas, sugar tanto quanto possível as tetas do governo e chutar o balde quando não dá mais pra aguentar. A vida é boa.
Meu amigo Jim tinha voltado uns dois, três anos atrás. Na época ele me mandou um email com uma foto de uma pilha de escombros, com a legenda “ainda de pé!” e uma placa com o nome da nossa antiga escola. Nós tínhamos crescido juntos, ido juntos pra capital, casado praticamente juntos; morremos juntos na guerra e daí nos separamos. Eu fui cuidar da Janet, ele caiu no mundo. Janet era minha mulher. Quando eu recebi o email, ela tava no hospital; eu ainda tinha esperanças, mas teria sido sorte demais. Depois que ela foi embora, eu já não tinha mais nada a que me apegar, nem família nem amigos nem nada. Eu tinha duas opções: ou deitava na cama e esperava a morte vir me buscar, ou ia atrás da felicidade que a minha consciência me permitisse. Hoje eu sei o que eu deveria ter escolhido.
A viagem foi deprimente, pra dizer o mínimo. Eles não me deixaram sair do aeroporto antes que eu dissesse aonde eu ia e como eu ia; daí foram horas até eu conseguir alugar um carro com todas as medidas de segurança necessárias, o traje especial e o caralho a quatro. Porque o nosso país cuida de seus veteranos. Ver de novo as estradas da minha infância, agora vazias e destruídas, através daquele maldito vidro azulado… Mais de uma vez eu pensei em voltar; mas só de me lembrar dos filhos da puta no aeroporto, com aquelas carinhas de “nós só queremos ajudar, senhor”, eu me forçava a seguir em frente.
Mas nada disso realmente importa; deixa eu pular direto pra minha “recepção” no lugar.
Trevorton hoje é menos que uma cidade fantasma, juro por Deus. Eles colocaram na entrada um outdoor com vários vídeos da cidade nos anos 20; mas, fora isso, você vai ter dificuldade em encontrar qualquer coisa por aqui. Não vale nem a pena tentar. O sol já tinha se posto; eu rodei pelas ruas (ou pelo que eu deduzi que tivessem sido as ruas um dia) por algum tempo, procurando por algum ponto de referência da minha juventude antes de achar a passagem pros bunkers. Foi aí que a coisa começou a ficar surreal.
No que eu fiz uma curva entre uma cratera e um monte de lixo, me topei com duas pessoas paradas no meio do caminho. Eu sei que alguns loucos por aí, especialmente em vilarejos e tal, ainda insistem em morar na superfície; mas eu não tinha encontrado ninguém até ali. No escuro, com uma névoa fina no ar e nenhuma luz fora a dos faróis do carro, eu só via que os dois tavam usando casacos pesados com capuz; quando eles começaram a se aproximar, eu notei que um deles tava armado. Essa teria sido a hora de dar ré e fugir desta merda, mas algum instinto me fez aguardar e observar. Em todo o caso, eu tinha a minha M11 no porta-luvas.
- Baixa. - um deles disse, batendo no vidro; não consegui ver a cara, mas pela voz ele não podia ter mais que vinte e poucos anos.
Eu obedeci, calmo e sem dizer nada.
- Nome? - o mesmo perguntou; o outro ficava de longe, com a arma apontada direto pra mim.
- Solomon Jackson.
Os dois se olharam por um instante.
- Você... - ele hesitou um pouco. - Você nasceu aqui?
- Sim, senhor. - na hora eu não tinha como saber o porquê da pergunta, mas me mantive firme e sério.
O que tava armado, sem baixar o fuzil, veio até a janela do carro; ele soava ainda mais novo e mais impaciente.
- Você é Sol Jackson?
O que me incomodou não foi a desconfiança dele. Não; a primeira coisa que me veio à mente foi como que um moleque que nem tinha saído das fraldas ainda tava me chamando por um apelido que eu tinha ouvido pela última vez décadas antes.
- Sou. Vocês são amigos do Jim?
De novo, os dois encapuzados se olharam, claramente confusos.
- Mostra a carteira. - eles disseram, então, quase ao mesmo tempo.
Eu não deveria ter sabido a quê eles tavam se referindo. Não fazia o menor sentido; e ainda assim eu soube na hora: sem pensar, puxei do bolso a carteirinha do “Dragons’ Club” que eu, Jim e mais alguns amigos fundamos quando a gente tinha nove anos. Nem sei exatamente por que eu tinha resolvido levar aquela porcaria; algum dia antes da viagem eu devo ter achado ela pela casa e pensado que seria muito divertido relembrar o nosso clubinho. Punição divina, meus amigos.
Os meninos mudaram de atitude no mesmo segundo: baixaram a arma, puxaram os capuzes pra trás e, sorrindo, se ofereceram pra me levar até os bunkers. Só não quiseram me dar mais nenhuma explicação sobre o que tava acontecendo. Mas agora eu já tava mais curioso do que assustado, então por que não?
Sim, o Jim tava lá; e não, diferente do que eu imaginava, ele não tinha sido torturado nem nada do tipo. Na verdade, ele tava melhor do que nunca. Todo sorridente e despreocupado, morando no melhor alojamento da cidade. Foi ele que finalmente me contou (pelo menos o que ele sabia) sobre o que tava acontecendo: parece que (e, pelo que eu entendi, isso agora era o “grande segredo” de Trevorton), depois que eu e ele deixamos a cidade, outros amigos nossos mantiveram o clube vivo, passaram a tradição pros filhos e essa coisa toda; daí, quando veio a guerra, a população praticamente inteira foi morta. O único bunker da cidade (e era um bunker no sentido antigo do termo, só uma sala pequena no subterrâneo de um prédio) ficava debaixo da escola. Qual a conclusão brilhante disso? As crianças passaram a governar o lugar, e o Dragons’ Club de alguma forma virou um tipo de culto secreto da “cúpula”. Por isso que ele foi recebido como um dos “Fundadores” quando voltou, e passou a ser tratado como um deus pelos membros; logicamente, eu deduzi que o mesmo iria acontecer comigo.
Parece ótimo, né? Só que não. Durante a maior parte do tempo, é como se o lugar fosse uma cidadezinha de interior igual a todas as outras: todo mundo é simpático, todo mundo conhece todo mundo e ninguém nos trata diferente de ninguém. Só que a gente não pode sair. Pelo que o Jim me falou, se a gente subir até a saída dos bunkers uma das patrulhas nos pega do lado de fora e gentilmente nos força a voltar. Quer dizer, tudo que tem pra fazer é ficar trancado aqui quase todos os dias; alguém deixa comida pra gente todas as manhãs (possivelmente coisa não-tratada; eu já devo ter pego câncer, mas que escolha eu tenho?), e a gente vai sobrevivendo.
Mas o pior de tudo são “cerimônias”: de tantos em tantos dias (na verdade eu acho que é aleatório, mas não tenho como ter certeza; a gente perde a noção do tempo aqui), uns encapuzados vão nos buscar pra nos levar até um bosque na superfície; lá eles põem a gente num tipo de altar, enquanto eles rezam umas bobagens e batem palmas e o diabo. Mas o ponto alto da noite é quando eles nos trazem uma “relíquia” de antes da Guerra: um notebook mais velho que o mundo, o único computador da cidade, que só nós dois temos permissão pra tocar. E o que a gente faz com ele? A gente escreve nossas memórias. Sério. Toda a importância dos “Fundadores” é essa: digitar tudo que a gente se lembra da nossa juventude, pra eles usarem como um tipo de “livro sagrado” pra construir uma nova sociedade ou coisa parecida.
Não me entendam mal; eu acho ótimo que alguns jovens (ninguém aqui tem mais que quarenta) se interessem pelo que os velhos têm a dizer. Eu só me pergunto o que tem de real nisso tudo. Quer dizer, pode ser só coincidência, mas o líder do culto também é o “prefeito" da cidade (pelo menos é assim que ele se apresenta); será que ele acredita nessa história de “nova sociedade”, ou só tá usando isso como desculpa pra continuar no poder? Não é como se o mundo de antes da Guerra fosse uma maravilha, de qualquer forma; essa gente não deveria querer fazer exatamente o contrário do que a gente fez? E porra, eles sabem o que tão fazendo? Eles realmente querem isso? Por Deus, eu acho que a cidade inteira faz parte do clube! Parece que o segredo todo é só uma questão de status quo; não sei se alguém (com exceção, talvez, do líder) sabe o que vai acontecer quando a gente terminar de escrever o livro.
Só o Jim parece gostar da situação toda. Eu entendo, até; onde ele estaria se não fosse aqui? Deitado num leito de hospital na capital, assistindo a reprises de sitcoms velhas e sendo alimentado por um robô? Ele deve achar que isto aqui é o paraíso comparado como o mundo real. Eu queria ser tão otimista.
Agora a minha preocupação maior é conseguir continuar inventando memórias, tipo As Mil e Uma Noites mesmo. O Jim já não se importa, coitado; tudo que eu falo ele confirma. “Aquela vez que nós fomos pescar em Freemont Creek, lembra?”, “Claro que lembro! Eu peguei uma truta deste tamanho!”; nunca existiu um lugar chamando Freemont Creek. Desde que ele continue feliz, tá tudo bem; desde que a gente morra antes de terminar de escrever. Às vezes é divertido, até: eu misturo coisas do século XX, histórias de livros e séries de TV, e os idiotas nem percebem. Ou percebem e não ligam. Honestamente, eu quero mais que se foda.

A Coisa Lá Fora

Dia desses, te vi na sacada
Sozinha
Sem querer nem imaginar nada
Que eu tinha
Engoli a tua indiferença
Porque a tua doença
Eu sei que é igual à minha

Eu só queria te pegar nos braços
Um dia
Te levar pra viver de cansaços
E euforia
Descoser todos os teus enredos
Beber teus segredos
E te deixar vazia

Mas a coisa lá fora é um horror
Como um grito encharcado de dor
Que te chama e te ama e te odeia
E te deixa cheia
De complicações

E os porões entre as tuas costelas
Se abrem como se fossem janelas
E daí todo céu, todo mar
É livre pra entrar
Em ti

Vem viver comigo
Vem cá pro teu lugar
E eu prometo, o mundo vai girar
Só em torno do teu umbigo

Traz as tuas incertezas
Que aí já não é mais seguro
Aqui dentro eu construí um muro
E dei novos nomes pra mesas

E gavetas e espelhos
Pro nosso mundo em miniatura
Onde toda e qualquer criatura
É um pedaço dos nossos joelhos

Onde a gente pode descansar
Deitar no chão e deixar
O sol evaporar nossos medos
Os ratos roerem nossos dedos
E a nossa alma sumir

Mas a coisa lá fora é uma sina
Uma jaula de luz e neblina
Que te prende, te acende, te come
E te deixa com fome
De outros ares

E os pomares nas tuas entranhas
Se embebedam de canções estranhas
E tudo de mel e de pó
Vira uma coisa só
Por ti

Vem, foge pra cá
Onde tudo é bem definido
E do que tiveres esquecido
Eu sempre posso te lembrar

Das distâncias por todos os lados
Dos espaços por entre os móveis
E entre todas as coisas tangíveis
Pra andares de olhos fechados

Sem luz, sem som, sem lembranças
Revivendo a mesma semana
Numa espiral inumana
Sem preocupações, sem mudanças

Onde a nossa carne, unida
Sela toda e qualquer saída
E nossos sonhos, nossos pesadelos
Os dentes e as unhas e os pelos
Se desconstroem em nada

Dia desses, te vi na sacada
Sozinha