Hoje o nome
“Caterina da Fiesole” não aparece em livros de História da Arte e dificilmente
é sequer mencionado, mesmo pelo mais culto dos estudiosos da Renascença; mas,
quando é lembrada, a mulher de origem pobre e vontade inabalável não raro tem
seu gênio comparado ao de contemporâneos como Michelangelo e da Vinci.
Paradoxalmente, as mesmas qualidades essenciais que rendem louvores a sua obra
(sua minúcia e obstinação) são também responsáveis por seu quase que completo
esquecimento.
Tendo seu
talento descoberto ainda na adolescência, quando se divertia pintando amplos e
detalhados murais em ruínas etruscas e romanas, Caterina acabou sendo levada,
em 1464, à presença do célebre Cosme de Médici, que passou a patrocinar seu
trabalho. Por dez anos, então, a filha de camponeses viveu como se pertencesse
a uma das ricas dinastias de Florença, e trabalhou diligentemente para seu
mecenas. Educada tanto em teologia cristã como na filosofia clássica, seu ardor
e perfeccionismo apenas aumentaram; tornou-se sua obsessão representar o todo
da Criação, que ela veio a considerar o fim de toda a forma de arte.
E tão rápida
quanto sua ascensão foi sua queda. Certa de que sua arte não era mais do que
uma imitação da grande obra divina (crença advinda tanto de Tomás de Aquino
como de Platão), a jovem pintora convenceu-se de que não era suficiente
retratar apenas motivos bíblicos ou hagiográficos: posto que uma cena, qualquer cena, pudesse ser concebida por
uma mente mortal, ela teria por necessidade que haver sido criada previamente
por Deus; e, portanto, seria dever do artista materializá-la em sua tela. E
assim seguiram-se quadros que escandalizaram mesmo o mais pervertido clérigo da
época, de Cristo cedendo à tentação satânica a uma vitória da Besta no Fim dos
Tempos; tudo, evidentemente, elaborado em detalhes, de forma a deixar claro que
era aquilo mesmo que representavam.
Por mais que Caterina tenha ingenuamente tentado justificar suas opiniões, ela
não escapou de ser excomungada como herege e ter seus trabalhos vandalizados e
destruídos; apenas escapou de ser morta pela Inquisição por concordar em
assumir (o que fez, há de se acrescentar, com boa vontade e veemência) que
todas as blasfêmias retratadas em seus quadros eram apenas “licença poética”,
ficções e fantasias.
Após tais
convulsões, o legado artístico e histórico de Caterina da Fiesole, como se pode
imaginar, foi substancialmente olvidado; mas isso não significa que ela tenha
parado de pintar. Obstinada no ideal que assumira por toda a vida, continuou
sua obra, como fazia em seus primeiros anos, nas ruínas de sua cidade natal. Imagens
tão obscenas quanto as de seus últimos quadros, algumas até hoje visíveis,
esparramam-se em afrescos ao ar livre, insistentes em que suas mensagens de
satanismo e impiedade não fazem senão ressaltar a glória divina; e ainda além
dessas, no que se presume ser seus últimos esforços, a pintora se dedicou a
imagens surreais, absurdas, enfim, qualquer cena que se lhe surgisse à mente,
por mais impossível que fosse. E o fez com todo o obsessivo realismo que
caracterizava seu trabalho, já que estava, cria ela com todas as forças, apenas
representando aspectos autênticos da Criação.
Reza a lenda,
inclusive, que morreu enquanto pintava, incapaz de cumprir seu objetivo e
deixando um último painel inacabado; neste, apenas mais um de sua fase
fantástica, habitava um ser, concebido (ou revelado, dependendo da crença
pessoal de cada um) por ela própria, cuja mera visão seria fatal a qualquer
mortal. Uns dizem que foi o poder de tal entidade (ela também uma criatura de
Deus) que de fato causou a morte de Caterina; outros, que foi a artista, presa
em tal contradição lógica, sem se atrever a desafiar sua tão bem sedimentada
fé, que se viu constrangida a tirar a própria vida.