Anosognosia

Eu não vejo nenhuma mudança
As mesmas luzes de natal
As mesmas música e dança
O mesmo cheiro de sal

Estradas quando elas acordam
Tudo permanece igual
As vozes que nunca concordam
O gosto das flores do mal

As mesmas buzinas cansadas
Infinito looping de risadas
As mesmas luzes de natal

Eu não sei por quê
Eles olham pra mim
Cochicham segredos
Com olhos de medo
E fingem sorrisos

Pobres indecisos
Não sabem por quê
Eu nunca presto atenção
Sentado no chão
Só no meu jardim

Mas minhas luzes de natal
E flores do mal
Não olham pra mim

Coincidência

Uma história, desprovida de significado óbvio ou imediato, que pode ou não ter acontecido:
Conta-se que, em meados dos anos 20 (do século XX, parece ser necessário esclarecer), um eminente linguista e missionário cristão voltava de Xangai para os Estados Unidos, quando o navio em que estava naufragou. Único sobrevivente, o professor navegou, sem rumo, agarrado a uma caixa de suprimentos, até dar em uma ilha deserta e desconhecida. Por sorte, seu diário permaneceu intacto, e mediante ele pôde-se ter uma ideia de suas experiências.
Uma das mais frequentes e singulares de seu relato, aliás, concerne a um “achado”, conforme o chamou, que fez em uma caverna localizada a uns poucos passos da praia. Lá, na parede oposta à entrada, no que ele definiu como “uma disposição que só posso crer previamente arranjada para a perfeita visualização e a idolatria, tal como a cruz está para a nave da igreja”, estava representado um curioso símbolo: um simples risco diagonal, traçado de baixo para cima, a princípio apenas ligeiramente inclinado para direita, e então, a partir mais ou menos da metade de seu comprimento, descrevendo um ângulo consideravelmente mais aberto. Tentar interpretar tal monumento parece ter ocupado a maior parte do tempo do estudioso, e diversas e divergentes teorias foram povoando o diário: o mais razoável, em suas próprias palavras, seria concluir que o traço fosse a tosca representação de uma divindade, provavelmente de caráter telúrico; tal hipótese é corroborada pela existência de uma pequena poça de sangue já seco (presumivelmente proveniente de sacrifícios rituais) no chão da caverna. Entretanto, aventando a possibilidade de que as manchas se devessem a um acréscimo posterior à decadência da cultura local (um acidente, portanto), o linguista lançou-se a outras considerações: que a linha, descendo “do céu” (de cima), descrevendo uma pequena curva e então tocando “a terra”, fosse uma referência básica ao dualismo universal; que fosse um falo ereto que, desenhado na parede de uma caverna, estaria representando qualquer narrativa mitológica de natureza sexual; que fosse então somente um homem; uma coisa qualquer que começou a ser delineada e imediatamente interrompida por algum mal súbito de seu autor (o que talvez explicasse o sangue).
O que é certo é que, fosse por tal particular obsessão, por carência ou excesso de algum nutriente (como quiseram alguns neurologistas) ou por qualquer outra razão, a saúde mental do eminente professor foi lentamente se deteriorando, enquanto ele teve de recorrer a instintos primitivos para se manter vivo. Entre seus últimos escritos (antes que ele abandonasse o diário por completo), inclusive, especula, evidenciando sua crescente paranoia, que o símbolo houvesse sido deixado na caverna já no momento do desaparecimento dos nativos, como uma piada, apenas para atormentar quaisquer cérebros que invadissem sua terra sagrada; em outros pontos, compara o suposto deus local ao cristão, chegando a escrever que “hoje, conforme enxergo o mundo e as coisas, o ser supremo que vejo emanando deste tão eloquente símbolo me parece muito mais lógico do que aquele que li na Bíblia”.
E, por ironia, sua história não foi revelada à humanidade antes que ele próprio deixasse este mundo, exatamente quando uma equipe de resgate chegou à ilha na intenção de encontrá-lo. Confundindo-o com um animal selvagem, atiraram nele; e o perseguiram, em sua corrida louca, até a tal caverna, onde encontraram seu diário e suas roupas rasgadas, além de estranhos objetos sem uso definido manufaturados com materiais naturais. Percebendo então seu erro, viraram-se para o moribundo ser que jazia no chão de pedra; sob seu corpo, uma poça de sangue fresco se formava no mesmo local em que a mancha de sangue antigo desaparecia; em sua mão, uma lasca de pedra afiada, talvez (ou não) previamente arranjada para aquele exato fim; e em seu peito nu, uma cicatriz recém aberta, reproduzindo, de forma tão fiel quanto possível, aquele estranho símbolo desenhado na parede.