Livros Líquidos


Às vezes sinto um desconforto, uma forma de estranheza interna, lendo livros de papel. Parece discordante que o objeto da leitura, um exercício primariamente mental, seja algo físico; minha mão acaba se cansando, e eu me pergunto o que ela faz ali.
O próprio formato do livro é desarmônico com sua natureza. O que são páginas, o que são linhas e letras pra quem lê? Divisões anacrônicas de um todo, insensíveis a sua vontade. O livro é uma fatia do mundo humano, perfeito em suas fantasias e realidades; e, visto de fora, não faz sentido que se submeta ao tempo: também os deuses, se existem, enxergam o universo todo como uma coisa só, e o fluxo temporal é só uma ilusão para os reles mortais.
Às vezes me pego desejando um livro líquido, cujo conteúdo possa vazar pelas lacunas de sua carcaça inútil para uma vasilha em que eu possa degustá-lo às colheradas, digerindo-o no ritmo, frequência e intensidade que eu achar melhor.

Identidade


Ele acordou e não soube quem era. O céu negro, como as pessoas normais o viam, pareceu distante demais; distante e aberto, quase assustador: só o vira antes de um ângulo diferente, da janela de seu luxuoso quarto, nunca diretamente acima de sua cabeça. Não encontrava a segurança da rocha por perto, qualquer um poderia vê-lo. Olhou então ao redor. O chão coberto de neve não fazia sentido. As marcas de cascos de cavalo se afastando de seu corpo, que um camponês identificaria com facilidade, eram a seus olhos um enigma, como inscrições de alguma língua há muito desaparecida. O primeiro pensamento lúcido depois do choque formou-se em sua mente como uma flecha atingindo as costas de seu alvo:
- Eu sou Maaldun. - mas fulminante em sua consciência, também, foi a resposta, ainda que pesada e lenta. - Mas aqui não é Ambrek.
Pondo-se de pé com esforço, tentou divisar alguma coisa, alguma referência na noite vazia. Não conhecia Norte ou Sul, Leste ou Oeste; as estrelas lhe eram apenas pontos brancos sem qualquer significado. Entretanto, conseguiu enxergar, talvez por acaso, uma pequena forma alaranjada na distância, mais longe do que via as casas dos homens da janela de seu quarto, que lhe trouxe à memória uma representação da grande Ambrek que vira algum dia, por alguma razão, em um mapa que algum servo lhe mostrara. Naquela direção ia o rastro do cavalo.
Por um momento, aquele fato pareceu uma simples coincidência: não tendo nunca a obrigação de ler ou interpretar qualquer coisa, teve certa dificuldade em compreender a relação do mapa com o mundo real. Talvez, na verdade, nem a tenha compreendido por completo; mas, perdido como estava, sem noção alguma do que fazer, aquela “coincidência” acabou sendo a opção mais promissora que identificou, e ele decidiu segui-la.
Um tempo indeterminado se passou. Ele nunca havia caminhado tanto de uma só vez em toda a sua vida; e também jamais se preocupara em contar as horas, apesar de saber que o sol e a lua se alternavam no céu com regularidade: isso ele via de seu quarto. Então, quando o sol começava a aparecer por cima das montanhas à sua esquerda e ele começava a sentir que não conseguiria mais caminhar, enxergou, da beira da colina que descia íngreme à sua frente, uma das pequenas aldeias montanhesas, das quais ouvira falar, mas nem imaginava como se pareceriam. E bem adiante, seguindo sempre na direção Sudoeste, onde as montanhas caíam abruptamente para o mar, ele a viu, agora sem dúvidas: Ambrek, a Eterna, joia rubra do Sul, imagem no mundo da perfeição Divina, com suas muralhas que começavam cravadas no seio das colinas mais baixas e terminavam em amplas docas nas praias brancas da baía de Ampoo. Viu sua alta torre de um ponto que nunca considerara: de fora. Tal visão, tão clara e inegável, o fez tremer com o misto de emoções que sentia e não entendia.
- Eu sou Maaldun. - repetiu para si mesmo. - Mas preciso descansar. - admitiu, enfim. - Os camponeses dessa vila irão me acolher; seja por respeito, seja por medo. Sou Maaldun.
E assim ele desceu a trilha até as casas, onde agora o movimento diário dos trabalhadores começava. A princípio, teve medo de ser visto, mas sua necessidade se mostrou maior: concentrou-se na direção de uma estalagem, e ignorou os olhares dos habitantes locais.
Ao abrir as portas com dificuldade, forçando seus frágeis músculos tanto quanto podia, deparou-se com um grupo de camponeses o encarando com curiosidade. Mais uma vez tremeu: nunca na história alguém vira Maaldun, exceto Seu ministro, Seu servo mais fiel. Mas não havia escolha. Respirou fundo, mirou um a um os que o miravam e falou, na voz mais altissonante que pôde:
- Eu sou Maaldun. - não estava acostumado a falar assim, e também jamais se havia ouvido a voz de Maaldun fora de seus aposentos: geralmente falava apenas ao ministro, e aos sussurros. - Preciso de acomodações, e de um servo.
A reação das pessoas foi tremendamente distinta da que imaginava. Alguns homens jovens e fortes riram abertamente; as mulheres e os velhos, principalmente, sentiram um medo irracional à pronúncia daquele nome, mas certamente não daquele que o pronunciava; enquanto que a maioria estava simplesmente confusa, e se perguntava quem seria aquele louco forasteiro que invadia sozinho sua vila.
- Maaldun está em Ambrek. - disse alguém, quando o silêncio se tornou incômodo e o estrangeiro não se desculpou ou ao menos mudou sua expressão; era o senso comum, um adágio na boca do povo humilde das cercanias da Cidade. Algumas velhotas viraram o rosto e disseram palavras de proteção.
Ele ficou paralisado. Sabia que aquilo era a mais pura verdade, e não tinha resposta para dar àqueles que considerava simplórios. Sentiu-se impotente, e aquilo o irritou profundamente.
- Sou Maaldun. - disse, gaguejando, tremendo e batendo os pés no chão, sem encontrar absolutamente argumento melhor que aquele.
- Você é um homenzinho louco e mal-educado - o dono da estalagem apareceu por detrás da multidão, já impaciente, mas compassivo. - Vou lhe arrumar um quarto, e você pode ficar aqui um tempo, se souber trabalhar direito. Mas pare com essa bobagem!
Sem conseguir pensar em nada melhor a fazer, e de fato sem coragem de fazer nada, o estrangeiro seguiu aquele homem até um dos quartos. Ali se sentiu mais confortável: era fechado e parecia seguro, e havia uma cama, por mais rústica que fosse, em que ele pudesse se deitar. Entretanto, isso não apaziguou seus tormentos: estava decidido a ir até Ambrek e descobrir o que estava acontecendo. Alguém teria que o reconhecer.
Tendo descansado durante o dia, e feito uma generosa refeição ao crepúsculo, esperou até todos irem dormir e saiu do quarto. Vagou quase cego pelas ruas frias e desertas, até que localizou e invadiu os estábulos; então, tão silenciosamente quanto pôde, encontrou um cavalo manso o suficiente para deixá-lo montar, e tentou cavalgar tal qual os cavaleiros que via da janela de seu quarto. O barulho acabou acordando os camponeses, mas ele conseguiu fugir a galope, mal se segurando à sela.
Cavalgou pela noite, com grande dificuldade, parando em vários pontos por simples inabilidade em conduzir sua montaria; felizmente, os habitantes da aldeia haviam desistido de persegui-lo, por considerar que um cavalo era um preço baixo a pagar para se livrar de um visitante tão inconveniente. Aos tropeços, não contendo sua raiva e berrando maldições para qualquer um que quisesse ouvir, ele não obstante chegou aos portões da grandiosa Ambrek, e foi visto pelos guardas.
- Alto! - gritou um deles. - Quem vem lá?
Cheio de dores e de pesar, o cavaleiro nem lamentou o fato de não ser distinguido por um soldado de suas próprias muralhas; sabia que Maaldun não era visto ou ouvido, e reconhecia que sua atual aparência era frágil e humana demais para convencer os humildes. Apenas reuniu o que restava de suas forças para pronunciar, alto e claro, aquelas três palavras que a ele ainda significavam tanto:
- Eu sou Maaldun. - e então baixou a cabeça, sem sequer imaginar o que os guardas pensariam daquela situação.
Houve um cochichar de muitas vozes, e ele ouviu o som de passos. Algum tempo depois, os passos voltaram, e os portões se abriram devagar. Qualquer alegria que ele possa ter sentido naqueles poucos segundos foi abafada pelo que aconteceu em seguida: os guardas o arrancaram de cima do cavalo, o amarraram e o estavam levando preso para dentro da Cidade. Suas ordens eram de levar o forasteiro a Maaldun.
O caminho foi curto, mas o prisioneiro pôde ver muitas coisas familiares: as casas de telhado prateado, o mercado central, o pátio com a fonte em frente a sua torre... Foi então que ele percebeu que era exatamente na direção da torre que eles o levavam. Andar por andar, exatamente como seus prisioneiros deviam subir, por escadas velhas que ele próprio não conhecia, eles acabaram por atingir o topo do edifício, o Salão de Maaldun.
Tudo estava como ele se lembrava: os fortes pilares sustentando o teto abobadado, as janelas pequenas e redondas, o ministro fiel e sisudo em seu canto; e, logo à frente do trono dourado, obstruindo àqueles que chegavam pelas escadas a visão do resto do Salão, um véu branco, estendido de parede a parede. Estar daquele lado do véu, como qualquer chefe bárbaro que viesse pedir a bênção de Maaldun, foi demais para aquele pequeno e cansado corpo. Ele despencou no chão, cada osso enfraquecido tremendo de frio e pavor, cercado pela grandiosidade do recinto que considerava seu. Estava louco? Tudo parecera tão pequeno e cotidiano quando era ele sentado naquele trono. Ou aquilo nunca acontecera?
O ministro não fez sinal algum de o haver reconhecido; apenas caminhou, pomposamente, o som de seus passos quebrando o silêncio, até o outro lado do fino tecido branco que cobria o Salão como uma barreira de Segredo. Os segundos que demorou do outro lado foram como uma eternidade angustiante para o prisioneiro. Ao retornar, trouxe a sentença irrevogável:
- Maaldun decreta morte ao impostor imoral.
E assim, sem hesitar, os guardas carregaram aquele corpo frágil, impassíveis diante de seu desespero e agitação, através de uma porta lateral, onde uma escada pouco usada levava diretamente aos porões profundos onde as execuções eram realizadas. Antes de mergulhar na escuridão, sem conseguir parar de gritar e se debater, o prisioneiro conseguiu ver, ou pensou ter visto, duas coisas: muito vaga e brusca, como um lapso, a sombra de um sorriso malicioso se formando no rosto do fiel ministro; e, no pequeno vão entre o véu e a parede, quando já quase passava da porta, visto de relance na diagonal, o trono dourado de Maaldun, que, como ele já esperava, estava vazio.

Tradição


Particularidade interessantíssima tinha o temól, idioma mencionado em algumas poucas fontes literárias e explicado em menos fontes ainda: as chamadas “mutações sintáticas”. Isso porque, diferentemente daquelas que ocorrem nas línguas célticas, desencadeadas por termos específicos, em temól elas eram regidas pela sintaxe.
A ordem das palavras nessa linguagem era muito livre, permitindo quase qualquer combinação; entretanto, uma tradição poética popularizou o OVS (com quaisquer complemento, mesmo orações subordinadas, vindo sempre após o sujeito), considerado mais “sonoro”, o que acabou por influenciar profundamente a gramática. O motivo é que verbo, objeto e sujeito possuíam sufixos mais ou menos estáveis cada um (no caso dos verbos, o tempo e o modo eram definidos mediante sufixos, prefixos e o auxílio de advérbios; contudo, o “último” sufixo, a terminação verdadeira da palavra, que a definia como o verbo, era, como se verá abaixo, sempre a mesma), portanto, em uma ordem fixa, cada palavra era afetada pela anterior (nos sândis) de forma previsível. Assim, as mutações tornaram-se regra, mesmo depois de os sufixos terem se alterado.
Os três sufixos eram: -(a)h /(a)h/, indicando o objeto, que se desenvolveu em -á /a:/ ou, no caso de palavras que naturalmente terminassem em vogal, um prolongamento na duração desta, por alargamento compensatório; -s /s/, terminação invariável de todos os verbos, que se fortificou em -t /t/; e -í /i:/, adicionado ao sujeito da oração, que mais recentemente passou a modificar as vogais da palavra de forma semelhante ao umlaut das línguas germânicas, tendo ele próprio desaparecido.
-(a)h afetava a palavra subsequente de duas maneiras possíveis: se esta começasse em consoante, o /h/ sofreria elisão e, para compensar o espaço perdido, a letra seguinte seria geminada; mas, caso começasse em vogal, a consoante, pelo contrário, se fortificaria em kh- /x/. De forma semelhante, o sufixo /s/ passava por debucalização para /h/, assim dessonorizando a consoante seguinte (caso esta já fosse surda, não haveria mudança, e o /h/ seria pronunciado normalmente, podendo mesmo ser palatalizado para [ç] nas cercanias de uma vogal alta); ou, no caso de o próximo termo iniciar em vogal,  ele sofreria sonorização, tornando-se z- /z/. -í meramente palatalizava o fonema seguinte, fosse este consoante ou vogal.
Uma frase simples pode servir de modelo para que esses três fenômenos possam ser percebidos. “A voz do Imperador derruba exércitos” pode ser traduzida de inúmeras formas diferentes, por exemplo:

Éroná kkortot fýr mja Taus. (na ordem original)
[e:rona: ‘k:ortot fy:r mja taws]

ou

Výr mma Taus h-kortot írené. (mesmo o sufixo do objeto é palatalizado)
[vy:r m:a taws ‘hkortot ‘i:rene:]

ou

Ma Taus vvýr z-éroná kjortot.
[ma taws v:y:r ‘ze:rona: ‘cortot]

ou

Kortot kh-éroná mha Taus vjýr.
[‘kortot ‘xe:rona: m̥a taws vɥy:r]

ou muitas outras combinações possíveis.