Ele acordou e
não soube quem era. O céu negro, como as pessoas normais o viam, pareceu
distante demais; distante e aberto, quase assustador: só o vira antes de um
ângulo diferente, da janela de seu luxuoso quarto, nunca diretamente acima de
sua cabeça. Não encontrava a segurança da rocha por perto, qualquer um poderia
vê-lo. Olhou então ao redor. O chão coberto de neve não fazia sentido. As
marcas de cascos de cavalo se afastando de seu corpo, que um camponês
identificaria com facilidade, eram a seus olhos um enigma, como inscrições de
alguma língua há muito desaparecida. O primeiro pensamento lúcido depois do
choque formou-se em sua mente como uma flecha atingindo as costas de seu alvo:
- Eu sou
Maaldun. - mas fulminante em sua consciência, também, foi a resposta, ainda que
pesada e lenta. - Mas aqui não é Ambrek.
Pondo-se de
pé com esforço, tentou divisar alguma coisa, alguma referência na noite vazia.
Não conhecia Norte ou Sul, Leste ou Oeste; as estrelas lhe eram apenas pontos
brancos sem qualquer significado. Entretanto, conseguiu enxergar, talvez por
acaso, uma pequena forma alaranjada na distância, mais longe do que via as
casas dos homens da janela de seu quarto, que lhe trouxe à memória uma representação
da grande Ambrek que vira algum dia, por alguma razão, em um mapa que algum
servo lhe mostrara. Naquela direção ia o rastro do cavalo.
Por um
momento, aquele fato pareceu uma simples coincidência: não tendo nunca a
obrigação de ler ou interpretar qualquer coisa, teve certa dificuldade em compreender
a relação do mapa com o mundo real. Talvez, na verdade, nem a tenha
compreendido por completo; mas, perdido como estava, sem noção alguma do que
fazer, aquela “coincidência” acabou sendo a opção mais promissora que identificou,
e ele decidiu segui-la.
Um tempo
indeterminado se passou. Ele nunca havia caminhado tanto de uma só vez em toda
a sua vida; e também jamais se preocupara em contar as horas, apesar de saber
que o sol e a lua se alternavam no céu com regularidade: isso ele via de seu
quarto. Então, quando o sol começava a aparecer por cima das montanhas à sua
esquerda e ele começava a sentir que não conseguiria mais caminhar, enxergou,
da beira da colina que descia íngreme à sua frente, uma das pequenas aldeias
montanhesas, das quais ouvira falar, mas nem imaginava como se pareceriam. E
bem adiante, seguindo sempre na direção Sudoeste, onde as montanhas caíam
abruptamente para o mar, ele a viu, agora sem dúvidas: Ambrek, a Eterna, joia
rubra do Sul, imagem no mundo da perfeição Divina, com suas muralhas que
começavam cravadas no seio das colinas mais baixas e terminavam em amplas docas
nas praias brancas da baía de Ampoo. Viu sua alta torre de um ponto que nunca
considerara: de fora. Tal visão, tão
clara e inegável, o fez tremer com o misto de emoções que sentia e não
entendia.
- Eu sou
Maaldun. - repetiu para si mesmo. - Mas preciso descansar. - admitiu, enfim. -
Os camponeses dessa vila irão me acolher; seja por respeito, seja por medo. Sou
Maaldun.
E assim ele
desceu a trilha até as casas, onde agora o movimento diário dos trabalhadores
começava. A princípio, teve medo de ser visto, mas sua necessidade se mostrou
maior: concentrou-se na direção de uma estalagem, e ignorou os olhares dos
habitantes locais.
Ao abrir as
portas com dificuldade, forçando seus frágeis músculos tanto quanto podia,
deparou-se com um grupo de camponeses o encarando com curiosidade. Mais uma vez
tremeu: nunca na história alguém vira Maaldun, exceto Seu ministro, Seu servo
mais fiel. Mas não havia escolha. Respirou fundo, mirou um a um os que o miravam
e falou, na voz mais altissonante que pôde:
- Eu sou
Maaldun. - não estava acostumado a falar assim, e também jamais se havia ouvido
a voz de Maaldun fora de seus aposentos: geralmente falava apenas ao ministro,
e aos sussurros. - Preciso de acomodações, e de um servo.
A reação das
pessoas foi tremendamente distinta da que imaginava. Alguns homens jovens e
fortes riram abertamente; as mulheres e os velhos, principalmente, sentiram um
medo irracional à pronúncia daquele nome, mas certamente não daquele que o
pronunciava; enquanto que a maioria estava simplesmente confusa, e se
perguntava quem seria aquele louco forasteiro que invadia sozinho sua vila.
- Maaldun
está em Ambrek. - disse alguém, quando o silêncio se tornou incômodo e o
estrangeiro não se desculpou ou ao menos mudou sua expressão; era o senso
comum, um adágio na boca do povo humilde das cercanias da Cidade. Algumas
velhotas viraram o rosto e disseram palavras de proteção.
Ele ficou
paralisado. Sabia que aquilo era a mais pura verdade, e não tinha resposta para
dar àqueles que considerava simplórios. Sentiu-se impotente, e aquilo o irritou
profundamente.
- Sou
Maaldun. - disse, gaguejando, tremendo e batendo os pés no chão, sem encontrar
absolutamente argumento melhor que aquele.
- Você é um
homenzinho louco e mal-educado - o dono da estalagem apareceu por detrás da
multidão, já impaciente, mas compassivo. - Vou lhe arrumar um quarto, e você
pode ficar aqui um tempo, se souber trabalhar direito. Mas pare com essa bobagem!
Sem conseguir
pensar em nada melhor a fazer, e de fato sem coragem de fazer nada, o
estrangeiro seguiu aquele homem até um dos quartos. Ali se sentiu mais
confortável: era fechado e parecia seguro, e havia uma cama, por mais rústica
que fosse, em que ele pudesse se deitar. Entretanto, isso não apaziguou seus
tormentos: estava decidido a ir até Ambrek e descobrir o que estava
acontecendo. Alguém teria que o
reconhecer.
Tendo
descansado durante o dia, e feito uma generosa refeição ao crepúsculo, esperou
até todos irem dormir e saiu do quarto. Vagou quase cego pelas ruas frias e
desertas, até que localizou e invadiu os estábulos; então, tão silenciosamente
quanto pôde, encontrou um cavalo manso o suficiente para deixá-lo montar, e
tentou cavalgar tal qual os cavaleiros que via da janela de seu quarto. O
barulho acabou acordando os camponeses, mas ele conseguiu fugir a galope, mal
se segurando à sela.
Cavalgou pela
noite, com grande dificuldade, parando em vários pontos por simples inabilidade
em conduzir sua montaria; felizmente, os habitantes da aldeia haviam desistido
de persegui-lo, por considerar que um cavalo era um preço baixo a pagar para se
livrar de um visitante tão inconveniente. Aos tropeços, não contendo sua raiva
e berrando maldições para qualquer um que quisesse ouvir, ele não obstante chegou
aos portões da grandiosa Ambrek, e foi visto pelos guardas.
- Alto! -
gritou um deles. - Quem vem lá?
Cheio de
dores e de pesar, o cavaleiro nem lamentou o fato de não ser distinguido por um
soldado de suas próprias muralhas; sabia que Maaldun não era visto ou ouvido, e
reconhecia que sua atual aparência era frágil e humana demais para convencer os
humildes. Apenas reuniu o que restava de suas forças para pronunciar, alto e
claro, aquelas três palavras que a ele ainda significavam tanto:
- Eu sou
Maaldun. - e então baixou a cabeça, sem sequer imaginar o que os guardas
pensariam daquela situação.
Houve um
cochichar de muitas vozes, e ele ouviu o som de passos. Algum tempo depois, os
passos voltaram, e os portões se abriram devagar. Qualquer alegria que ele
possa ter sentido naqueles poucos segundos foi abafada pelo que aconteceu em
seguida: os guardas o arrancaram de cima do cavalo, o amarraram e o estavam
levando preso para dentro da Cidade. Suas ordens eram de levar o forasteiro a
Maaldun.
O caminho foi
curto, mas o prisioneiro pôde ver muitas coisas familiares: as casas de telhado
prateado, o mercado central, o pátio com a fonte em frente a sua torre... Foi
então que ele percebeu que era exatamente na direção da torre que eles o
levavam. Andar por andar, exatamente como seus prisioneiros deviam subir, por
escadas velhas que ele próprio não conhecia, eles acabaram por atingir o topo
do edifício, o Salão de Maaldun.
Tudo estava
como ele se lembrava: os fortes pilares sustentando o teto abobadado, as
janelas pequenas e redondas, o ministro fiel e sisudo em seu canto; e, logo à
frente do trono dourado, obstruindo àqueles que chegavam pelas escadas a visão
do resto do Salão, um véu branco, estendido de parede a parede. Estar daquele lado do véu, como qualquer chefe
bárbaro que viesse pedir a bênção de Maaldun, foi demais para aquele pequeno e
cansado corpo. Ele despencou no chão, cada osso enfraquecido tremendo de frio e
pavor, cercado pela grandiosidade do recinto que considerava seu. Estava louco?
Tudo parecera tão pequeno e cotidiano quando era ele sentado naquele trono. Ou
aquilo nunca acontecera?
O ministro
não fez sinal algum de o haver reconhecido; apenas caminhou, pomposamente, o
som de seus passos quebrando o silêncio, até o outro lado do fino tecido branco
que cobria o Salão como uma barreira de Segredo. Os segundos que demorou do
outro lado foram como uma eternidade angustiante para o prisioneiro. Ao
retornar, trouxe a sentença irrevogável:
- Maaldun
decreta morte ao impostor imoral.
E assim, sem
hesitar, os guardas carregaram aquele corpo frágil, impassíveis diante de seu desespero
e agitação, através de uma porta lateral, onde uma escada pouco usada levava
diretamente aos porões profundos onde as execuções eram realizadas. Antes de
mergulhar na escuridão, sem conseguir parar de gritar e se debater, o
prisioneiro conseguiu ver, ou pensou ter visto, duas coisas: muito vaga e
brusca, como um lapso, a sombra de um sorriso malicioso se formando no rosto do
fiel ministro; e, no pequeno vão entre o véu e a parede, quando já quase
passava da porta, visto de relance na diagonal, o trono dourado de Maaldun, que,
como ele já esperava, estava vazio.