A Lead Role in a Cage

Mexia a espuma do café ludicamente, como uma criança. Sabia, ou pensava saber, que o outro logo o inquiriria sobre seus planos; a insegurança de seus seguidores sempre o impressionava. Não estragaria, entretanto, a surpresa; não após tantas semanas de cuidadosa deliberação (consigo mesmo, é evidente; jamais permitiria que alguém conhecesse suas dúvidas), não após acostumar-se com o destino que ele me mesmo se havia imposto, agora percebia, tantos anos antes. Continuou a brincar com o café, fingindo nem notar a expressão tensa de seu tenente a apenas alguns passos de si.
- O café está a seu gosto, senhor Brezhnev? - finalmente perguntou o outro, tentando imprimir àquela conversa desconfortável algo de sutileza.
- Sim. - limitou-se a responder, sem erguer a cabeça; teve de se esforçar para não rir da pergunta, e a pronúncia americana de seu sobrenome, que costumeiramente o irritava, agora soava quase honrosa.
Novamente o silêncio se espalhou pelo humilde escritório; ouvia-se apenas o ruído do metal da colher contra a porcelana da xícara, em golpes monotonamente ritmados.
- Nós vamos mesmo fazer aquilo amanhã, senhor? - a pergunta invadiu o ar como um relâmpago, quando enfim os pensamentos conflitantes do pobre rapaz se uniram em um só, de improviso; havia em sua voz medo e reverência, e não realmente uma questão prática.
Brezhnev então sorriu pela primeira vez em toda aquela noite.
- Senhor Smith - fitou profundamente os olhos do outro, quase como se não os estivesse olhando; quase como se não estivesse ali. -, eu alguma vez já o desapontei?
A réplica indireta, revelando um conhecimento de suas incertezas, pegou o rapaz de surpresa; e lhe sobreveio, quase que imediatamente, aquela sensação quente e revigorante, a mesma que procurara naquela sociedade tantos anos antes, a mesma que procurara por sua vida toda: uma confiança tão intensa, tão palpável, que fazia com que a dedicação cega e irrestrita fosse de fato gratificante.
- Não, meu profeta. - respondeu, ajoelhando-se e tomando a mão do outro em suas.

Pavel Semyonovich Brezhnev fora para os Estados Unidos quase duas décadas antes, sem pretensões ou objetivos claros, com apenas alguns dólares no bolso. Foi ao passar muitos anos lutando pela vida pelas ruas de Seattle, juntando retalhos de jornais velhos e quaisquer livros que se lhe caíssem nas mãos, que o imigrante russo forjou sua visão de mundo. Apesar de mal dominar o idioma local, seus demorados discursos atraíam dezenas de jovens desiludidos às praças da cidade, intrigados por suas exóticas teorias. Logo um pequeno culto estava formado, um dos muitos a surgir próximo à virada do milênio; e, com a ajuda de seus seguidores, Brezhnev comprou um pequeno rancho no interior do Oregon, que se tornaria a sede de sua “igreja”.
Suas ideias não ortodoxas centravam-se, desde cedo, no poder da imaginação, e nas ferramentas políticas e culturais que se dedicavam a censurá-la. Segundo ele, o objetivo final da vida dos grandes revolucionários do mundo sempre fora (ainda que inadvertidamente) despertar na humanidade a capacidade de questionar e de criar conceitos e conexões de pensamento completamente novos; mas suas palavras sempre viriam a ser adulteradas por guardiões do status quo, temerosos de que a liberdade mental  do povo pudesse atrapalhar seus planos de dominação mundial. Deus, ou aquilo que mais se aproxima da obsoleta noção de divindade mantida pelas religiões tradicionais (ainda de acordo com as pregações de Brezhnev), não seria uma entidade única, independente e ciente da própria existência, mas sim um emaranhado amorfo e mutante de pensamentos conflitantes, ao mesmo tempo a expressão máxima da criatividade humana e um farol eternamente distante para tudo o que é inédito, estimulando e inspirando a mente humana ad infinitum. Por isso que, ao dirigir a palavra a seus “fiéis”, o líder sempre mantivera o cuidado de assumir a modesta alcunha de profeta; e, por mais que tenha conseguido construir e administrar um culto em torno de sua personalidade, ele jamais reclamara (publicamente) para si algo de divino ou venerável.
Nos últimos tempos, entretanto, seus sermões (elaborados, publicados e distribuídos aos seguidores por ele próprio, em sua revista Dreamland) foram tomando um rumo que alguns ex-membros de sua seita chegaram a chamar de “caótico”. Durante anos crendo no efeito da imaginação sobre a vida das pessoas, Brezhnev ainda procurava uma definição compreensível do fenômeno. Sentia-se pressionado (mais por si mesmo do que pelos outros) a descobrir exatamente como o pensamento poderia afetar a realidade prática; mas todas as conclusões possíveis feriam sua doutrina. Isso até que, no início de 2012, uma matéria especial da Dreamland intitulada The Great War revelou ao mundo a resposta: nela, o líder descreveu uma raça de criaturas sobrenaturais e etéreas que ele batizou minikyns; esses seres nefastos seriam dotados de poderes telepáticos, e seu único objetivo seria sondar os pensamentos humanos para então pensar precisamente o oposto, assim anulando todo o nosso poder mental. Se não fosse por eles, escreveu, seríamos capazes, dentre outros feitos incríveis, de criar matéria a partir do nada, simplesmente imaginando-a. Com muita força de vontade, todavia, poderíamos temporariamente superar tal influência, fazendo emanar de nossas mentes sutis “ondas criativas” que poderiam afetar outras mentes ao redor.
Quase desnecessário dizer, as declarações paranormais espantaram uma boa parte de seus seguidores; os que sobraram, contudo, pareceram ter sua crença ainda reforçada. Dali em diante, as ideias do russo foram se focando cada vez mais no que ele chamou de “Grande Guerra”: o inevitável confronto entre humanos e minikyns, que ele previra (ou imaginara, em suas próprias palavras) para o final de 2012. Elaborou em detalhes as características da maligna raça, seus costumes, seu hábitat, todas as suas peculiaridades (embora nunca tenha mencionado seus motivos); quanto mais escrevia, maior era a demanda dos leitores, e já uma nova geração de seguidores chegava atraída unicamente pelo fascínio pelo oculto.
Nos meses que se seguiram, Brezhnev quase não era visto pelos fiéis, preferindo transmitir seus ensinamentos mediante seu braço direito, o jovem Jacob Smith. Era mais pressionado agora do que jamais fora: todos imploravam por migalhas de seu conhecimento, de seus planos, dos caminhos que o grupo deveria tomar. Nunca admitiu a ninguém, mas sentiu medo: medo de que a obra de toda uma vida despencasse se as expectativas de seus fãs não fossem atendidas. Nesse período, fenômenos estranhos começaram a ocorrer pelo rancho: pessoas sumiam durante a noite, e reapareciam dias depois, mortos; o líder atribuía a culpa de tais acontecimentos sempre aos minikyns e seus aliados no governo e na mídia, e condenava a “inércia mental” dos membros. Antecipadamente, já vinha anunciando que toda a seita passaria por um grande “teste de fé”, e apenas aqueles de imaginação particularmente poderosa o superariam; e, fechado em seus aposentos por dias a fio, o líder teve de usar toda a sua imaginação para decidir o que fazer.

E agora, sentado à mesa de seu escritório, ludicamente mexendo a espuma de seu café, ele sabia exatamente o que fazer.
- O ritual deve ser feito com o máximo de cuidado, Jacob. - dissera, na semana anterior, quando o grupo todo se preparava para a Grande Guerra. - Você sabe o que fazer, não sabe?
- Sim.
- Leve apenas os mais fortes. Não esqueça as armas; ataque quando eles se materializarem. Morto o líder, nós ganhamos. Vou estar aqui mentalizando uma barreira de proteção pra vocês.
- Sim, profeta. - e Smith não duvidou de uma palavra do que ouvira.
O local fora escolhido com muita precisão por Brezhnev: uma clareira no bosque da propriedade, não muito distante das habitações; por precaução, contudo, todos os membros que não fossem participar do evento deveriam ficar o mais longe possível da zona onde a ação ocorreria.
Jacob Smith guiou o pequeno destacamento por entre as árvores, quando a meia-noite se aproximava, tendo um único lampião para lhe descobrir o caminho; muita luz pode atraí-los, avisara o líder. Durante o trajeto, conversaram sobre os mais variados assuntos, no intuito de manter os pensamentos afastados de sua verdadeira missão até o momento crucial.
O ritual foi realizado de forma simples e sem quaisquer percalços: precisamente à meia-noite, no ponto combinado, o grupo se organizou em um círculo, ajoelharam-se e se puseram a imaginar, todos juntos, a presença do líder dos minikyns; esperavam que dessa forma conseguissem forçá-lo a tomar uma forma física, e assim poder exterminá-lo por meios mortais.
Passava-se já perto de uma hora de profunda concentração quando Smith pensou ter ouvido um ruído no chão de folhas, e se apressou em alertar seus companheiros e tomar seu revólver nas mãos; mas foi muito lento: antes que pudesse tomar qualquer atitude ofensiva, viu, à luz fraca do lampião, a cabeça de Jane Mueller cair de cima de seus ombros. Durante a confusão subsequente, na ânsia de destruir o que quer que fosse aquela coisa maligna, os membros do grupo acabaram trocando tiros entre si, e mais fatalidades sobrevieram; apenas o jovem e fiel Jacob Smith se mantinha firme em seu objetivo, friamente procurando no escuro aquela forma que se movia tão sorrateiramente. Por fim, um disparo certeiro desencadeou uma reação que congelou aquele instante de caos em um quadro de dúvida e hesitação: um grito, por demais humano, por demais familiar para ser ignorado.
- ... Senhor Brezhnev? - perguntou Smith, quando conseguiu juntar coragem suficiente para evocar tal ideia.
Então a figura, agora lenta e acuada, aproximou-se, mancando; e, ao atingir a área iluminada, seu rosto, já sem a máscara preta que usara, revelou-se como, de fato, o do profeta. O homem, apesar do grave ferimento em sua perna e da situação incômoda em que se encontrava, portava uma expressão vazia. Jacob lembrou-se do olhar que ele lhe lançara mais cedo, em seu escritório: um olhar distante e, ao mesmo tempo, assustadoramente presente; agora, entretanto, já não inspiravam nenhuma confiança.
- Por quê? - foi a única coisa que Smith conseguiu perguntar, depois de muito pensar, muito gaguejar, buscando em sua mente uma explicação, ou uma possibilidade de obter uma explicação, para aquele momento patético.
- Eu cumpri minha missão. - declarou o russo, irredutível. - Dei a vocês algo em que acreditar.
- O senhor matou essas pessoas. O senhor... - ele hesitou. - O senhor é um assassino...
- De acordo com quem? Você sabe que todos acreditam em mim. É isso que vocês fazem; vocês acreditam. Você não entende o poder que existe nisso? - a entonação que Brezhnev dava a suas palavras fazia com que não poucos entre os ali presentes (os que haviam sobrevivido ao tiroteio) quisessem ardentemente manter a fé no homem que pouco antes havia tentado matá-los; e ele caminhava entre eles, confiantemente. - Você não pode desistir agora, senhor Smith... Você seria meu herdeiro... - e levou a mão ao ombro de seu interlocutor.
Aquele pensamento deixou Jacob tão repugnado que um sentimento de raiva começou a crescer dentro dele; deu um passo atrás e voltou a apontar a arma para o peito do homem à sua frente.
- Valeu a pena, Pavel? Valeu a pena matar seus seguidores, e... - enquanto falava, as peças começavam a se encaixar em sua cabeça, vencendo as barreiras de sua já moribunda crença. - Todos aqueles que sumiam, e depois apareciam... Esquartejados... Você fez tudo isso só pra que as pessoas engolissem essas... Essas historinhas ridículas...
- E deu muito certo, não deu? E esse é o ponto! Não importa no que eles acreditam, o que importa é acreditar. Imaginar. Quem é que acharia possível que a imaginação de um pequeno grupo de pessoas pudesse mudar a realidade? Mas pode! Você não vê?
- Você é louco.
- Louco? - então ele soltou uma gargalhada que ecoou noite afora; seus seguidores nunca o haviam visto nem mesmo rindo. - Rapaz, eu sou a pessoa mais lúcida deste mundo! Eu sou o renovador, o inspirador. É pra mim que todos olham quando querem pensar; eu sou o limite, os portões do infinito! Eu sou o farol! Eu sou D... - mas não conseguiu terminar sua frase: Jacob disparou seu revólver instintivamente, precisamente, num jato de ódio fresco e insuportável; e então caiu de joelhos no chão de folhas, em absoluto desespero.

O decorrer daquela madrugada demandou um esforço gigantesco por parte dos membros do grupo; de fato, foram suas últimas ações como um grupo. A notícia dos acontecimentos no bosque foi como o desplugar de um fio da tomada: de repente, nenhum habitante do rancho sabia o que fazer ou para onde ir. Voltar à clareira para buscar os corpos e lhes dar um enterro apropriado levou horas; muitas pessoas já haviam ido embora, muitas já haviam se suicidado. Por fim, a propriedade foi abandonada, e a “igreja” de Pavel Semyonovich Brezhnev foi definitivamente desmantelada.
Agora, é verdade que alguns ex-membros se ativeram à filosofia do russo, e organizaram suas próprias pequenas seitas para propagá-la. Uma delas, talvez a mais expressiva atualmente, é a dos “Fiéis Imaginativos”, que, conforme expresso em seu website, procura resgatar os ensinamentos do profeta da forma mais literal possível; seu principal objetivo é (segundo sua crença) vingar o assassinato de Brezhnev eliminando o líder dos minikyns, o maligno Jacob Smith.