Palmo a Palmo

Dorme sem sangue e sem dor
Depois de escorrer das janelas
Latejando pelas vielas
Descansa nos subsolos
Aninhada entre os tijolos
Onde talvez te sintas segura

Eu te procuro nas rachaduras
Nos cantos sem sombra e sem luz
Aonde minha sede conduz
Nos despertares repentinos:
Tortas catedrais sem sinos
Esqueletos de carne e cimento
Torres balançando ao vento
Em esquinas de sonhos vadios

A cidade és tu nos meus olhos vazios
O câncer morno que me bate à porta
Que enquanto mata, conforta
Corta e já lambe as feridas
Suprindo de sobrevidas
Minhas manhãs sem sono nem cura

Eu te procuro nas fechaduras
Do lado de lá dos abismos
Nas cismas de proselitismos
E no cair de cada eterno muro
Minhas mãos ainda teimam, no escuro
Em esculpir no ar tua imagem viva
E eu levo sempre na minha saliva
O gosto da pele dos teus quadris

A cidade és tu nos meus olhos febris
Que palmo a palmo vão tateando
Palmo a palmo vão te devorando
Por entre bocas entreabertas
Da tua larga alma deserta
Sem medo nem chão nem pudor

*

Dorme sem sangue e sem dor
Depois de escorrer das janelas
Latejando pelas vielas
Descansa nos subsolos
Aninhada entre os tijolos
Onde talvez te sintas segura

Ars Amatoria

Outro dia, vagando pelos confins menos iluminados da internet, eu tomei conhecimento de uma prática japonesa interessantíssima chamada nyotaimori, que consiste basicamente em se servir sushi sobre o corpo de uma mulher nua. Ok, a noção pode ser um pouquinho difícil de digerir pro nosso paladar ocidental, então eu vou repetir de forma mais delicada: no Japão, existem pessoas que se fazem de bandeja pra outras; tomam um banhinho, deitam sobre uma mesa, têm então a comida disposta sobre o corpo e daí esperam por horas, sem se mover, enquanto os clientes (?) fazem sua refeição . É uma coisa, quer dizer, tem até um nome pra isso (e eu acredito que a expressão “body sushi”, com todo o pragmatismo plástico do inglês, não faça muito jus à ideia).
Não que eu esteja em posição de julgar ninguém; nem é minha intenção, e perdão se eu soei muito puritano. O que me chamou a atenção ao pesquisar o assunto, na verdade, foi um detalhezinho que eu percebi no artigo da wikipedia: o nyotaimori é categorizado concomitantemente como fetiche sexual e forma de arte; e, se isso não tem em si nada de essencialmente errado (nenhuma criança lê meu blog, né?), eu não pude evitar parar por um momento pra refletir sobre as duas categorias.
Arte e sexo (e moda e culinária e turismo e trabalho e…) têm passado por um longo e intenso processo de redefinição (ou des-definição, como queiram) faz pelo menos um meio século, isso é fato. Tabus são quebrados diariamente, talvez só pelo prazer de quebrá-los; como já é notório, é difícil estabelecer com certeza o que é o quê nesta nossa civilização pós-tudo. Acaba que qualquer coisa pode ser considerada performance artística, qualquer coisa pode ser a tara de alguém; aliás, com sete bilhões de nós por aí, acho que é seguro dizer que qualquer coisa vai ser considerada uma performance artística e uma tara por alguém em algum momento (quiçá pela mesma pessoa). É engraçado, mas se a gente tentasse estabelecer limites objetivos mínimos pra definir arte e sexo, poderia muito bem dizer que são literalmente a mesma coisa: formas de usar o corpo que transgridem normas de comportamento e não possuem uso prático (em termos de convívio em comunidade) direto. A única diferença é extremamente subjetiva: os sentimentos e intenções dos envolvidos. E é exatamente aí que eu quero chegar.
Qualquer criatura neste mundo (não-humanas inclusas) tem pelo menos alguma noção do que a, digamos, estimula, ainda que subconsciente; quer dizer, ainda que não admita a si mesma. Portanto, quando um homem vai a uma prostituta e pede pra só vê-la tirando a roupa, ou pra ser chicoteado por ela, ou pra que ela coma paçoca e lhe jogue as migalhas na cara (só um exemplo, gente), ele tá fazendo sexo; ela tá só cumprindo mais um dia de labuta, surreal e muito possivelmente nem um pouco gratificante. Questões sociais pertinentes à parte, o caso é que ambos se permitem definir a situação a partir de sua própria perspectiva; e nós, analisando o caso de fora, conseguimos tranquilamente compreender ambas. Agora, pensemos na arte: o mesmíssimo cenário (a nudez, as chicotadas, a paçoca) poderia muito bem ser visto como um espetáculo, desde que nos fosse apresentado como tal; ninguém atribui o rótulo de “arte” a nada sem uma sugestão prévia de um “artista”, e os critérios que utilizamos pra atribuir ou não esse rótulo (isso sem nem entrar no mérito do significado) são todos externos a nós. Claro que tem uma estrutura profunda e bem lucrativa em torno desse processo (até porque o sujeito precisa ser legitimado como artista por alguma “autoridade” antes de se tornar uma autoridade ele próprio, num ciclo vicioso fechado), que aqui tá muito simplificada; mas, de um ponto de vista individual, a definição da arte é realmente feita de forma passiva. Numa analogia de volta ao sexo, é como se um cara aleatório chegasse pra nós com um sashimi pendurado na jeba e a reação socialmente aceita fosse ficar excitado sem discutir.
De repente é só mais um tabu a ser quebrado. Longe de mim querer reviver o Freud, mas talvez o impulso criativo seja mesmo libidinoso na origem. Quem sabe ele próprio não tenha sentido um certo tesão em escrever o que escreveu, na época coisas tão escandalosas? Ninguém tem hoje como saber. A pretensa “sacralidade” das diversas formas de expressão humana é o que faz com que sejam regulamentadas, hierarquizadas; ainda que simule em detalhes gráficos o coito propriamente dito, a arte mantém a aura de “arte”: distante, self-fulfilling, “oficial”. Impenetrável, com o perdão do trocadilho. A expressão sexual, em comparação, só se tornou livre (ignorando-se, é claro, os eventuais Bolsonaros da vida) a partir do momento em que as pessoas pararam de pensar em como o sexo “deveria” ser feito e passaram a simplesmente fazer: assim, na prática, sem pretensão, tomaram pra si o direito de estabelecer a sua definição pessoal de sexualidade. Talvez falte na arte, na nossa acepção mesmo do que é arte, um contato mais íntimo entre os “praticantes”: uma relação menos de reverência e mais de cumplicidade, de troca mútua; de promiscuidade, até.
Ou seja, um pouquinho mais de sacanagem. Obrigado, boa noite, não esqueçam da camisinha.

Saudades Futuras

Ela era estranha, pra dizer o mínimo. Eu lembro bem do vestido azul escuro, fluido como uma túnica, contrastando com a pele branca daquele corpo quase anoréxico; o cabelo vermelho, na luz baixa da festa, parecendo uma pintura fauvista de tão antinatural; e aqueles olhos verde-limão, desbotados e grandes, muito grandes praquele rosto tão… Frágil, acho que é a palavra. Mas naquela noite mesmo eu fiquei sabendo que ela era ruiva natural: foram dois “ois” meio bêbados, um instante curto de silêncio e quando eu vi ela já tava me puxando pelo braço; não sei pra onde eu fui, como eu fui, mas eu fui. Eram aqueles olhos. Em cima da cama, em cima dela, era só pra eles que eu conseguia olhar.
A nossa relação foi se construindo com base nisso: esses silêncios desajeitados que se resolviam sempre com dois segundos de olhar. Evidente que nós dois tínhamos cada um ideias completamente diferentes do que aquilo significava na hora, mas eu me tranquilizava na serenidade dela e não fazia perguntas. Enquanto a paixão durou, os detalhes mais bizarros e sem motivo só me deixavam mais interessado; tudo o que ela não dizia soava super eloquente na minha cabeça. Não sei o que eu esperava, mesmo.
Ela era húngara; isso esclarecia muita coisa, já. Claro. Todas as húngaras têm cabelo vermelho-sangue e olhos gigantes. Eu até hoje nem imagino como ela veio parar no Brasil…
Uma época eu tive certeza de que ela não era humana. Esqueci de dizer antes: ela adorava ler sobre extraterrestres e Atlântida e essas coisas. Fazia todo sentido, oras. Ela podia ser uma princesa atlante que sobreviveu ao apocalipse, viveu numa espaçonave por milênios orbitando a Terra (porque, viajando-se próximo da velocidade da luz, o tempo passa mais devagar), e desceu no século XXI porque… Sei lá, pra ficar comigo ou pra estudar a sociedade atual ou nem sei. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra; ela não falava da família nem da Hungria, mal falava do trabalho…
Na real, ela quase não falava. O nosso amor era uma coisa prática, de momento; cada segundo que passava vinha com uma saudade do anterior, dum toque ou dum sorriso ou dum olhar, e assim ia. Mas eu sou um cara romântico, porra. O que a gente fazia junto era só as coisas cotidianas, o mais básico de um relacionamento (tenho que desenhar?); e eu ficava sempre na expectativa de mais. Eu lia poesias pra ela, cantava músicas sobre olhos de esmeralda e cabelos de fogo (tem várias), fazia surpresas… Ela, quando muito, ria um riso meio envergonhado e sem som. Com o tempo isso foi começando a me preocupar, e eu não conseguia saber nem por quê. Sempre achando que um dia ela ia se render, se desatar em choro, me contar alguma história de vida horrível e dormir encolhida nos meus braços. Eu inventava mil cenários de como isso iria acontecer, fazia planos e tudo; uma hora tinha que acontecer.
Mas, né?, nunca aconteceu. Um belo dia, quando eu escrevia o segundo capítulo de um romance que eventualmente teria sido dedicado a ela (sobre dragões, viagens no tempo e aliens que falavam proto-urálico), ela sumiu. Assim, tipo, desapareceu. Não deixou um bilhete, não se despediu, nada; simplesmente não tava mais na cama quando eu acordei. E nunca mais nos vimos.
Foi curto, no fim das contas. Alguns amigos meus, os que não tiveram muito contato comigo nesses meses, até nem acreditam que ela existiu; o que é tão engraçado quanto assustador. Outros, felizmente, chegaram a nos ver juntos; mas os conselhos e comentários desses às vezes são ainda piores. Um certo cidadão, por exemplo, uma vez me perguntou se a guria era mesmo tão estranha ou se na verdade eu que não conseguia me conectar com ela. Essa pergunta me tirou umas boas noites de sono.
Mas o que me dói mais hoje não é pensar no que a gente viveu junto; porque, pra ser sincero, não teve lá muita coisa. A lembrança daqueles dois poços enormes (será que eram tão grandes, mesmo?), daquele silêncio da cor do mar, hoje não me diz mais nada. Isso de sentimento, sei lá, ou se acabou ou nunca existiu… O que me incomoda é o “nosso” futuro: todas as projeções que eu fiz, sozinho, enquanto planejava uma serenata ou coisa assim. Tanto que eu construí pra preencher os vazios que isso agora é parte de mim. Na minha cabeça, enquanto não cai a ficha, é como se o que ia acontecer (ou o que eu queria que acontecesse) ainda fosse; como se eu vivesse duas vidas paralelas, sabendo que uma hora, algum dia, cada uma vai dobrar pra um lado e terminar me rasgando ao meio.
Quem sabe um dia ela volta…

Brasis

O deputado Jean Wyllys escreveu, algum tempo atrás, que a “divisão” de nosso país aparentemente exposta durante e após as eleições é na verdade muito mais antiga e profunda do que o horário eleitoral nos quis fazer crer: falou do abismo, típico de regimes capitalistas, que existe entre ricos e pobres, brancos e não-brancos, héteros e LGBTs etc.; em certo ponto, usou literalmente a expressão “esses dois ‘brasis’”. Evidente que, por mais bem-intencionado que tenha sido, seu posicionamento político acabou impresso no texto, na medida em que buscou demonstrar que essa “linha” tem se diluído nos últimos tempos. Sem discordar inteiramente da opinião do deputado, e no entanto sem querer impor qualquer pendor partidário (ainda que admitindo a possibilidade de que isso ocorra de forma inadvertida), eu gostaria de ir um pouco além nessa análise.
Comecemos pelo começo. Os únicos Brasis tangíveis, definíveis e inevitáveis, são dois: o Brasil espaço geográfico, este que começa no Chuí e termina no Oiapoque, cujas fronteiras são (para fins oficiais) muito bem delimitadas; e o Brasil entidade política, a máquina estatal propriamente dita, legitimado (ao menos entre seus pares) como responsável pela administração daquele e ao qual, tendo aqui nascido, somos submetidos. Quaisquer outros Brasis não passam de projeções abstratas, subjetivas e superpostas umas às outras: a cultura “brasileira”, por exemplo, é apenas um conjunto extremamente heterogêneo de movimentos que, por este ou aquele percalço da história, calharam de acontecer por estas bandas; à exceção das poucas instâncias de intercomunicação do governo com os que aqui habitam (as variadas formas de manifestação popular, independentemente de seu pretenso efeito prático), não há relação direta entre o Brasil e os brasileiros.
E ainda assim temos orgulho; isso, ou algo de subconsciente que em efeito prático o simula. Patriotismo ou patriotada, levamos um “Brasil” uníssono na mente, um amálgama dessa confusão toda, que nos emerge à mente ao olharmos a bandeira ou ouvirmos o hino. Esse reino etéreo nós o construímos durante a vida, moldamo-lo de acordo com nossas opiniões e preconceitos particulares (comerciais de cerveja à parte) e o rotulamos de “único”. Instintivamente acreditamos que o Brasil do vizinho é o mesmo nosso, talvez por convicção, talvez por comodidade.
Poder-se-ia replicar, é claro, que esse é o mesmo esquema intelectual pelo qual compreendemos a identidade de qualquer coisa identificável; o ponto aqui é como, nesse caso específico, a compreensão de cada indivíduo acaba influenciando a toda a população.
É redundante falar em “divisão” do Brasil, sob qualquer perspectiva; se o momento político dos últimos meses nos afetou em algo, foi exatamente em coagular opiniões consideravelmente diferentes em dois blocos vagos. A tendência a um raciocínio simplista e inflamado por amores irracionais (quase sempre agradável aos titereiros do status quo e portanto alimentado pela mídia de massa) é, mais do que uma efeméride do processo eleitoral, uma falha profunda da comunicação humana que talvez mereça um outro ensaio algum dia; o caso é que, dos que votaram no candidato A no segundo turno, há uma percentagem que verdadeiramente o apoiava, uma outra que simplesmente era contra o candidato B, outra que confiou na dica do candidato C em que votou no primeiro turno… E uma vasta gama de projetos e ideias, talvez muito mais afins às dos votantes, foram descartadas na base da especulação eleitoreira: candidatos ditos “pequenos” não foram eleitos apenas porque se presumiu, antecipadamente, que não o seriam.
No fim das contas restam duas metades tortas, talvez mais desiguais internamente do que entre si; que o diga essa aberração neo-fascista que explodiu após o fim das eleições e propôs tornar a “linha” transbrasileira (do modo como a enxergam) em um limite físico, essa que nem o pitoresco Olavo de Carvalho sonha em adotar. Essas pessoas já existiam e já pensavam assim, apenas não haviam tido ainda uma oportunidade de extravasar suas psicoses; seu levante surgiu como uma excrecência (talvez) imprevista do atrito entre os dois lados, dessa dicotomia ainda não desconstruída do nosso paradigma cultural. Não pertencem oficialmente a nenhum dos dois, mas ambos culpam um ao outro por sua criação.
Enfim, como frequentemente ocorre, o fato é que o próprio ato de procurar por linhas as torna verdadeiras. Os abismos existem, mais profundos e complexos do que o velho par-ou-ímpar, uns dentro dos outros e impassíveis a categorizações rígidas; por consequência, assim também devem ser as tentativas de união, do contrário não farão senão nos segregar ainda mais.

Crônicas do Fim do Mundo XI - Verbum pro Verbo

Áno ppuset fóla djor/O vóla kháno tor pjuset, escreveu Emýra, maior poeta do temól clássico. “O vento leva as folhas de outono/E o vento leva as folhas de outono”, é a tradução literal; as sutis e melancólicas conotações de cada arranjo sintático, entretanto, passam despercebidas a quaisquer ouvidos leigos. O que, hoje, equivale a dizer qualquer ouvido que não seja o meu.
As conotações passam despercebidas; despercebidas as conotações passam; passam as conotações despercebidas: o português é uma linguagem insípida, enfadonha. Cada unidade semântica é fechada em si própria; os joguinhos inócuos dos nossos escritores, buscando abrir novos caminhos de significância, redundam contudo em ampla saturação. Tal limitação é inerente à organização (essencialmente linguística) de nossos pensamentos.
É por isso que eu dediquei meus melhores anos (meus únicos anos, diria) à pesquisa do temól. Um idioma que não possui nenhuma unidade básica fixa; os signos, fluidos, se distribuem em um equilíbrio tanto livre quanto rítmico, como os átomos de um cristal. Um idioma extinto, cujas características eu precisei mendigar em diversos e esquecidos livros escritos em outros diversos e esquecidos idiomas; o conteúdo acessível online a respeito não passava de um punhado de comentários superficiais e notas de rodapé. Todo o corpo ainda existente da língua eu passei compilando, por quinze longos anos; mesmo que algumas lacunas eu tenha que ter preenchido por conta própria, tudo se encaixava cabalisticamente e sem qualquer contrariedade.
E então veio a Guerra. Veio e passou. Eu me havia trancado em um escritório da universidade; dali fugi às pressas para o bunker subterrâneo quando os clarões começaram, e dali de volta para o escritório quando eles cessaram novamente. O esforço foi só o de carregar os velhos papéis de um lugar para o outro; em momento algum meu trabalho foi interrompido. A Guerra, então, veio.
Eu deveria ter previsto que isso aconteceria, por conta da dificuldade que tive em encontrar cada gota de informação; meu empenho não me permitiria jamais parar, mas acho que eu sempre soube. Os escassos especialistas que eu consegui contatar, mesmo antes das bombas começarem a cair, estavam todos muito concentrados em projetos “mais importantes”; logo estavam todos muito mortos para qualquer projeto. Não havia ninguém; ninguém mais no planeta possuía um nível de conhecimento suficientemente avançado para ler sequer uma frase em temól.
E o que é um livro, por mais denso e minucioso que seja, se ninguém pode lê-lo? O que são os símbolos de nosso alfabeto latino, tão adoravelmente organizados e práticos, sem uma mente humana para lhes atribuir significado? E eu, isolado em pensamentos quase extintos, o que sou? Isolado em quase extintos pensamentos, o que sou eu? O que sou, em pensamentos quase extintos isolado, eu?
Eco.

Contrato Antissocial

Pensamento do mês: e se toda e cada pessoa no mundo guardar um segredo, o mesmo segredo, e ninguém souber disso porque, né, é segredo? Digamos que seja algo inimaginavelmente terrível, uma prática ou sentimento que envergonharia qualquer um que o assumisse; e que no entanto, seja por pura coincidência ou por alguma consequência subconsciente de nossa organização social, é tão onipresente quanto indetectável. O próprio ato de evocar essa possibilidade denunciaria culpa. Quem teria coragem de se expor sem a segurança de que os outros fariam o mesmo?
Pois é, né. Era só isso. Até mês que vem.

Cookie, ou o Prólogo de um Romance que Eu Nunca Vou Escrever

Todos nós somos sacos de carne recheados com memórias e sentimentos; é só o que somos, e é tudo o que somos. Nossa limitada capacidade de correlacionar esses dois elementos forma a matriz de nossa autoimagem, o fio que tece nossa noção de self. É com base no que lembramos e sentimos que fazemos do caos da experiência humana uma narrativa mais ou menos coesa, da qual nos pomos (tão involuntária quanto inevitavelmente, pelo bem de nossa paz de espírito) como personagens principais.
E é por isso que qualquer “corpo estranho” nessa crônica, qualquer pequena rasura que destoe do todo, se torna um potencial câncer em nossa identidade: um acidente ou evento traumático, algo que destrua planos e crie dúvidas acerca do “significado” da vida, nos força a reestruturar nossos valores e reescrever os capítulos subsequentes em torno de temas (hoje já bem cristalizados em chavões de dramas hollywoodianos) de superação, redenção, “renascimento” etc. Às vezes, contudo, essa mancha é algo de muito mais sutil e menos simbólico; algo que parece desimportante a princípio, e lentamente se desenvolve no fundo da alma como um ciclo vicioso: se repete apenas por não fazer sentido, e faz menos sentido quanto mais se repete. Um único fato, diria Fort, “maldito”, que simplesmente não pode ser assimilado; e que, por insignificante que seja, tem a capacidade de nos fazer perder o sono e questionar nosso protagonismo.
Eu vivi um tal momento alguns anos atrás, numa manhã de verão absolutamente normal em todos os outros aspectos. O dia exato e os detalhes mais particulares, é claro, agora me fogem; não que costumeiramente a minha memória seja muito mais eficiente, mas neste caso a imprecisão só acentua o caráter insólito da situação. Direto ao ponto: eu fazia minha corrida matinal por um parque da cidade, quando decidi parar um pouco para descansar; sentei em um dos bancos e me pus a observar ociosamente os arredores. Era cedo, por volta das 7h; as poucas pessoas que passavam por ali eram em sua maioria outros corredores, e em verdade acho que havia mais cachorros do que gente. Uma menina, entretanto, me chamou a atenção: primeiro, porque àquela hora ela deveria estar na escola (tinha, imagino eu, uns 9 anos); segundo, porque parecia completamente perdida. Trazia pela mão um balão vermelho, e nos olhos lágrimas prontas para cair; lembro que usava um vestido branco e rosa que trazia escrita a palavra “cookie”, e olhava para todos os lados como se procurasse por alguma coisa ou alguém. Assim que me viu, se aproximou timidamente e pediu para sentar ao meu lado; consenti, um pouco surpreso, sem saber exatamente como responder.
- Me desculpa. - ela disse, após um longo silêncio, sem tornar o rosto para mim; sua voz e articulação hoje me parecem por demais maduras para sua idade, mas isso pode ser só uma impressão derivada dos anos e anos pensando e repensando esse dia. - Não era pra isso ter acontecido.
- Isso o quê? - foi a coisa mais lógica que eu consegui perguntar.
- Não era pra isso ter acontecido. - agora já chorava abertamente, mas ainda mirava de forma fixa o vazio à sua frente e se mantinha assustadoramente séria. - Ele me disse que ia voltar. Eu acreditei.
Cada palavra que ela disse ficou marcada em minha mente, cada qual acompanhada de um bocado do sentimento crescente de deslocamento e impotência que me atingia naquele momento. Não soube o que dizer; apenas assisti aquela cena passar diante de meus olhos, como se parte de um filme.
- Toma. - ela continuou, afinal virando-se em minha direção; alcançou-me a corda do balão, e então se levantou novamente. - Se ele ligar, diz que eu morri.
E, dito isso, saiu andando pela trilha do parque até desaparecer além da curva, sem em momento algum olhar para trás; e eu não tive motivo ou ânimo (ou coragem?) para segui-la. Nunca mais a vi, e não tenho a menor ideia do que ela quis dizer com tudo o que disse. Só o que sei é que a lembrança dessa manhã tem me atormentado desde então, e a razão desse tormento é a pior parte: nada do que aconteceu deveria ter qualquer influência sobre a minha vida; eu não conhecia a menina, e ela foi tão vaga por escolha própria. Mas o simples ato de pensar no que poderia estar acontecendo, e no que eu deveria ter feito (para impedir, ajudar, entender...?), tem sido suficiente para corroer meus pensamentos e me fazer consumir em uma culpa infundada.
Este livro, portanto, é fruto direto dessa experiência; uma tentativa pessoal e tola de construir um sentido para um fato essencialmente inexplicável, como uma forma de exorcismo, uma sublimação do medo irracional do desconhecido. Começou com rascunhos que eu escrevi em momentos de profunda depressão, versões daquele dia que culminavam sempre em um final trágico; conforme fui aprendendo a conviver com meus demônios, esses rascunhos foram se diversificando e organizando. A ideia de pôr no papel todas as possibilidades de desdobramentos daquele absurdo diálogo se tornou como que uma terapia para mim, além de uma fonte inesgotável de inspiração.
Os resultados, todos aqui compilados (todos os que eu pude produzir), variam amplamente entre si: cômicos, dramáticos, tragicômicos, surreais. Óbvios; inimagináveis. Em um capítulo, a menina me confundiu com seu irmão mais velho, e suas palavras se referiam ao ausente pai de ambos; em outro, ela era uma mulher com problemas mentais e algum atraso de crescimento, e nada do que disse fazia realmente qualquer sentido; ainda outro fez dela um anjo do apocalipse que traz uma nova Revelação em forma de enigma (e não se pode dizer que este João pós-moderno não se tenha dedicado inteiramente a decifrá-lo); algum outro a viu como uma visitante alien ligeiramente desnorteada, cujo peculiar uso do idioma derivava de um domínio superficial da cultura pop terráquea.
Enfim. Por consequência óbvia, esta será uma obra póstuma; ao deitar os olhos sobre o presente texto, o leitor tem a noção já de que eu não mais existo. Meu objetivo é (ou foi) meramente o de escrever o máximo possível, sem a pretensão de descrever o que de fato aconteceu; ao menos assim poderei sentir que a narrativa da minha vida, por patética que tenha sido, teve um sentido. Reconheço, também, que é bem provável que eu morra no processo de escrever um segmento; e, ironicamente, quem quer que assuma a tarefa de completar o livro por mim pode, por pura força do acaso e talvez sem ter nem mesmo me conhecido, chegar mais próximo da verdade do que eu jamais cheguei. A vida real, afinal de contas, é (por mais que nos seja árduo admitir) apenas uma de muitas ficções possíveis.

Desterritorialização

Se há uma coisa que a internet conseguiu provar definitivamente é que o antigo ditado “o lixo de um homem é o tesouro de outro” representa (ao menos nesta nossa época de acesso rápido e fácil a, bem, tudo) uma verdade universal. Uma de suas “regras” dita que, se algo existe, existe também um site dedicado a esse algo, e consequentemente toda uma comunidade de aficionados em torno deste. A especificidade insólita dos assuntos abordados é tanta que pode tornar impenetráveis ao mundo real (enquanto ainda podemos defini-lo) narrativas tão intricadas e intrigantes que, caso contrário, seriam talvez dignas de um best-seller.   
Tal é o caso de uma pequena descoberta feita alguns anos atrás, cuja repercussão se deu apenas entre aqueles cujos interesses incluíam a história e a categorização de videogames piratas, não-licenciados e hacks: um multicart de NES, pitorescamente denominado 150-in-1 Of Bigness Games!, cuja procedência permanece um mistério; sabe-se apenas que foi encontrado em Taiwan, onde produtos do tipo são comumente manufaturados, mas o fato de incluir texto em uma linguagem até hoje não identificada o mantém um caso à parte. Como outros cartuchos similares, OBG não contém realmente os 150 jogos prometidos: os muitos e exóticos títulos do menu, cunhados em um amálgama de corrupções grotescas do inglês e elementos do idioma desconhecido, direcionam o jogador a uma de apenas quatro aventuras; todas, entretanto, originais e (por motivos que serão discutidos em seguida) ainda bastante populares entre seus poucos e fervorosos fãs.  
São elas:

WRATH! Azhdaim Naga Ugukulak! - RPG tradicional, inspirado em clássicos de NES como Final Fantasy e Dragon Quest, ambientado em um mundo de fantasia medieval. O enredo (tanto quanto se pode inferir) conta a história de um reino, Ilinizhia, atormentado por frequentes incursões estrangeiras; nesse ínterim, Lauza, jovem guerreiro da guarda real, é convocado pelo alto-sacerdote Khildagad para uma missão secreta: recuperar uma antiga relíquia mágica, o Uguk, que supostamente teria o poder de repelir os invasores. A primeira parte do jogo, portanto, é focada na jornada de Lauza e seu volúvel conjunto de companheiros em busca do misterioso artefato; no esquema típico dos RPGs da era 8-bit, os heróis devem vagar por um overworld, visitar diferentes localidades, interagir com outros personagens e ganhar experiência vencendo batalhas baseadas em turnos.   
Uma particularidade, contudo, logo se faz sentir: além de os inimigos serem exclusivamente animais ou soldados humanos, aparentemente ninguém (nem mesmo Aulav, identificado de forma explícita como “feiticeiro em treinamento”) é capaz de aprender qualquer forma de magia. Essa questão acaba se tornando um ponto central da narrativa, como um tópico de desavença e dúvida entre o grupo​; até que, já no caminho de volta, uma reviravolta os pega de surpresa: após seu bando ser derrotado por Lauza e seus amigos, um estrangeiro inadvertidamente declara ter sido contratado por Khildagad para armar a emboscada, matá-los e levar o Uguk até suas mãos. Daí em diante, mais e mais revelações são feitas, conforme os heróis cuidadosamente reentram as fronteiras de Ilinizhia: o próprio alto-sacerdote havia financiado as invasões; seu plano era obter a relíquia e “usá-la” para fazer cessar os ataques, sendo então aclamado como líder de uma nova teocracia; o objeto em si não possui poder algum exceto pela crença da população, e a existência mesmo da magia é apenas uma mentira usada para manipulá-la. A seção derradeira do jogo, então, descreve a luta dos protagonistas para instaurar uma insurreição contra o templo e restituir a paz ao reino.
Apesar de oferecer uma experiência razoável quando comparado com os jogos que o influenciaram, incluindo um enredo complexo e uma mecânica bastante decente, WRATH! é, contudo, lembrado hoje primariamente por sua mais notável fraqueza: a tradução. Sendo dos quatro títulos presentes no cartucho aquele que abarca o maior volume de texto, ele é o que melhor evidencia a total falta de proficiência de quem quer que tenha sido o responsável por adaptá-lo ao inglês. É bem óbvio, especialmente àqueles com algum conhecimento em linguística, que o trabalho foi feito de forma amadorística mediante uso de uma gramática, evocando à mente ecos do clássico do humor não-intencional English as She Is Spoke, do português Pedro Carolino. Algumas linhas de diálogo, por exemplo, contêm como que complementos idiossincráticos entre parênteses, possivelmente copiados literalmente de alguma passagem explanatória das (sem dúvida muito profundas) diferenças morfológicas entre os dois idiomas; a macarrônica frase “Of you of dog smelling of usefulness no be! (I firmly believe)” denuncia com clareza esse processo: o segmento final, pode-se deduzir, não fazia parte do script, sendo apenas um esclarecimento sobre as conotações da específica conjugação do verbo “ser” usada na língua original, tendo sido incluído de forma irrefletida pelo “tradutor”.  
Esse atributo particular foi em si o que tornou o jogo popular dentro da comunidade, contribuindo para a criação de numerosos memes (como o onipresente “Of you of completeness bases towards we (exclusive) of belongness be”) e sendo talvez a primeira forma de contato de recém-chegados com os OBG. Sua influência é tão ampla que muitos hoje suspeitam que o uso de tal horrenda tradução tenha sido em verdade intencional.

Paup Paup Paungidaimas - jogo de plataforma genérico, elaborado nos moldes da franquia Super Mario Bros., talvez tendo crianças como público alvo. O protagonista, um picolé antropomórfico cor-de-rosa (apelidado “of popness/paupness man” pelos fãs), deve percorrer trinta e cinco níveis distribuídos por cinco mundos, enquanto coleta cubos de gelo, estrelas e (por alguma razão) discos de vinil. A maior parte dos inimigos é composta de animais típicos de regiões árticas, como ursos polares e pinguins, e cada mundo tem como chefe a versão gigante de um desses. O único power-up é um floco de neve escondido em estágios bônus, que faz o of popness man crescer e lhe dá o poder de disparar um raio congelante. 
Substancialmente mais rudimentar do que WRATH! (não contando nem mesmo com uma introdução; o que há de texto se resume a umas poucas palavras ditas pelo personagem principal em balões de fala, como “cool!” e “groovy!”), é difícil conceber que PPP tivesse atingido um grau de celebridade próximo daquele não fosse por um erro de programação: vencer é literalmente impossível; ao se derrotar o quinto chefe, o jogador é apenas levado de volta a uma versão extremamente corrompida do primeiro nível, sujeita a glitches nos gráficos e na música, flashes aleatórios da tela-título e até o travamento completo. Pode-se então (havendo paciência para tal) repetir as mesmas trinta e cinco fases, infinitamente, cada vez mais “bugadas” e menos jogáveis.  
Acontece que o cartucho contém os três mundos finais (vinte e um estágios), mas estes só podem ser acessados mediante hackeamento. Apesar de esse fato hoje já ser bastante conhecido, e existirem patches para que jogadores possam usufruir da experiência completa, a versão original (com todas as suas falhas) aparentemente ainda é mais popular em fóruns de entusiastas e vídeos let’s play no Youtube; nesses casos, PPP é não raro apresentado como uma criação indie de terror.

A Zaum: Vankhirtaülak ARMAGEDDON? - jogo de luta de temática mitológico-fantástica, que se utiliza de uma engine simplória semelhante à de muitos ports do arcade encontrados em outros cartuchos “extra-oficiais” para NES. A backstory aqui é ainda mais obscura do que a de WRATH!, já que, no lugar de diálogos em um inglês sofrível, há todo um prefácio explicado no idioma indecifrável de seus criadores; só o que é inequívoco é que se trata de um torneio marcial, expediente comum do estilo. 
O gameplay é o estritamente habitual: um versus mode que permite ao jogador a escolha de seu combatente e um adversário para uma luta avulsa (sendo o único dos OBG a incluir a opção para dois players), e um story mode em que é preciso desafiar vários inimigos em sequência. Os personagens são esdrúxulas criaturas demoníacas, e os cenários lembram os “infernos” de várias culturas; lava e sangue permeiam todos os duelos, sem muita variedade. Os controles também não trazem nenhuma inovação: duros, se resumem à fórmula “B para chutar e A para socar”, e os comandos de especiais são os mesmos para todos os lutadores; além disso, as hitboxes são ora muito grandes, ora pequenas demais. Enfim, basicamente o mesmo que os consoles viram do gênero até a chegada da era 16-bit. 
Mas o interessante aqui não diz respeito à qualidade do jogo (ou à falta de tal). Diferente dos anteriormente discutidos, este não obteve sua fama à custa de qualquer defeito clamoroso; o detalhe ainda recordado, ao menos ao que parece, foi tão premeditado quanto todo o resto: o desfecho. Ora, para que se termine A Zaum, a princípio deve-se desafiar todos os demônios disponíveis (inclusive um clone do seu escolhido) em ordem aleatória, e em seguida um quadro aparece com o nome de três chefes: DRACULA, ABYSMAL e o epônimo ARMAGEDDON. Então, após derrotar os dois primeiros, quando presumivelmente dar-se-ia a batalha final, vem a surpresa: uma cut-scene semelhante à inicial se desenrola, mostrando uma figura não-identificada a recitar alguns parágrafos de texto ininteligível; um close do rosto do personagem utilizado pelo jogador domina a tela, em uma expressão de terror; os créditos, em branco, rolam sobre essa imagem, e o jogo acaba. 
A identidade da criatura que aparece apenas nos últimos instantes da história, o significado do insondável epílogo e a impossibilidade de se enfrentar o inimigo que se supunha ser o mais importante de todos são mistérios até hoje inexplicados. De certa forma, A Zaum sofre de uma sina oposta àquela que sobreveio a Paup Paup Paungidaimas: enquanto que este contém de fato uma boa quantidade de conteúdo que é amiúde ignorada por ser usualmente inacessível, aquele é vasculhado sem cessar em busca de coisas que, é sabido, não estão lá. A luta contra ARMAGEDDON, assim como o modo de acessá-la e as consequências de vencê-la, é tema frequente de creepypastas e rumores online; e não faltam hacks e fan games desenvolvidos com o objetivo explícito de recriá-la.

Nuk - puzzle exótico, cujo conceito não demonstra conexão óbvia com qualquer outro conhecido. Sua mecânica de jogo, se é que a expressão é válida, permaneceu por muito tempo como que um ritual sem sentido; apesar disso (ou talvez precisamente por esse motivo), o título é possivelmente o mais conhecido dos quatro. 
Uma partida de Nuk se dá sempre contra três adversários, todos controlados pela CPU; cada um começa com cinco cartas, e a cada turno uma é sacada e outra descartada. Essas, entretanto, não são as mesmas de um baralho típico: animais, objetos domésticos e outras visões menos discerníveis as ilustram, e não é claro se houve o intento de que transmitissem algum significado ou relação mútua. O que, no final das contas, não faria muita diferença: tudo o que o há para fazer é seguir comprando e largando cartas, vez após vez, até que um dos participantes “ganhe”; e mesmo isso só é perceptível porque os outros todos somem, uma breve fanfarra é executada e então tudo recomeça. Nunca foi descoberto um padrão entre as combinações vitoriosas; as regras do jogo, especialmente a questão de o que caracteriza uma vitória, foram tema de muitas e calorosas discussões. 
Foi apenas alguns meses atrás, quando a ROM do cartucho foi hackeada pela primeira vez, que as respostas foram obtidas. Ocorre que não existem propriamente “regras”, na acepção habitual da palavra: a cada tantos turnos, o jogo tem 50% de chance de apontar um vencedor de forma totalmente aleatória; ou seja, não há modo legítimo de se influir diretamente no resultado. O intervalo entre cada “decisão”, contudo, depende das ações do jogador, fazendo com que seja possível que uma partida dure (em teoria) para sempre; e, como isso requer que se tenha sempre as cartas certas, conclui-se que ou essa era a exata intenção dos criadores ou uma coincidência inacreditavelmente descomunal tem se feito presente desde que esse método foi descoberto. 
Hoje, portanto, os fãs de Nuk têm sua própria competição, focada no aspecto técnico, na compreensão do complicado esquema que rege o comportamento do jogo: julgando que um empate controlado, nesse contexto específico, é preferível a uma conquista arbitrária, disputam quem consegue se manter jogando uma mesma partida por mais tempo.

Paranoia a Laser

Já faz um tempo que eu venho cultivando na cabeça um conto aqui pro blog, estocando referências, me esforçando pra construir jogos de palavras que ao menos parecessem ter algum significado profundo, enfim. Mas, é claro, é inútil. Pelo próprio caráter da ideia, só uns poucos leitores poderiam ver nela algo de interessante; os restantes ficariam no máximo coçando a cabeça em dúvida, no mínimo desistiriam no segundo parágrafo. Não é o meu estilo, por mais que eu goste do tema. 
O tema: a natureza da realidade, e suas respectivas imprecisões. Digamos que, por exemplo, eu sugerisse que existe uma conspiração gigantesca que mantém a vasta maioria da população num mundo artificial (por algum motivo), e que tudo aquilo que a gente vê como “real” é na verdade uma ilusão super elaborada. Matrix, alguém? Por clichê que seja, vamos começar por aí. 
Só que sem “pílula vermelha, pílula azul”; a brincadeira é muito mais difusa que isso.  A peça se desenrola quase que perfeitamente. De vez em quando, mas muito de quando em vez, acontece alguma coisa, algum deslize, e bate aquela sensação vaga e gelada de “puta que pariu”. Mas é tudo tão sutil, tão pessoal, que quase o resto todo da humanidade prefere ignorar. Tipo quando uma pessoa que a gente conhece a vida toda fala um negócio totalmente inesperado; e ainda fica com aquela cara de “eu nunca te contei isso?”. E ninguém mais acha estranho. E quem acha é esquizofrênico. 
Isso na verdade acontece o tempo todo. Uma foto que a gente não se lembra de ter tirado, um livro na estante que ninguém comprou. Quer dizer, quem é vai decorar todas as fotos e todos os livros que tem? E mesmo que decore, esquecer ou lembrar errado (ou mesmo inventar completamente uma memória falsa) é comum; pelo menos é o que dizem os neurologistas. Tem sempre uma autoridade pra explicar tudo aquilo que não deveria precisar de explicação. Faz tanto sentido que só pode ser mentira, certo? 
Mas, pensando bem, por que eu iria me dar o trabalho de escrever um texto comentando isso tudo? Por que eu iria querer que os meus leitores desconfiassem da própria sanidade? Tem alguma mensagem escondida aqui? Mas se a gente aceitar que a realidade não é real, qual a referência pra se saber o que é real? Um sonho dentro do outro: eventualmente a gente não tem certeza se acordou mesmo. Se alguma vez na vida acordou.

*

Ou seja, tipo Ubik dissecado aos seus elementos rigorosamente essenciais; eu poderia até rotular como uma desconstrução do gênero, se eu tivesse cara de pau suficiente pra isso (porque o terror existencial e o pós-modernismo andam sempre de mãos dadas). O caso é que seria como um truque barato; quase como socar garganta abaixo do leitor uma reação enlatada, até a ficha cair como a punchline de uma piada ruim. Porque é uma questão de estatística, só. Não importa o quão específico eu fosse, alguém dentre todas as pessoas que viessem a ler o texto iria se identificar (ou não; mas apostar na impopularidade do meu blog me parece um pouquinho contraproducente) e realmente questionar a consistência da realidade por meio instante; as outras, caso existissem, nem isso. Ilusionismo: distrair os observadores do verdadeiro foco; uma tática digna do Ministério da Verdade de 1984
Agora, numa nota diferente mas não completamente desassociada, eu me obrigo, até por uma questão ética, a ressalvar: como escreveu Joseph Heller em Ardil 22, just because you’re paranoid doesn’t mean they aren’t after you.

Moto-Perpétuo

Via, inocente, o filete de luz entrar pela rachadura da velha parede. Não importava que toda a sala fosse embebida em sol por incontáveis janelas e portas, aquela nesga tímida e irregular insistia em aparecer; vinha, dançava seu balé diário pelo chão de madeira e se punha, sonhando imponência, somente quando a noite chegava. A menina, encantada, requeria à mãe um nome para aquele pequeno milagre: “luz”, respondia, distraída; pois de que outra forma se lhe poderia chamar? E, para além dos fótons das aulas de Física, essa foi a definição mais primitiva e íntima da palavra que a menina guardou para si. 
E quando a vida lhe inundava de tudo, procurava sempre uma fresta por onde escoar; buscava antes não se encaixar no que quer que fosse. Como um rio que dá em uma laguna, cavava seu próprio caminho paciente até vazar, ainda que gota a gota, para o oceano; porque o oceano, sabia, não era mais que uma laguna maior agarrada a um maior continente. Se a iluminação dos sábios, do alto de suas torres de mármore, era a união com a infinitude, sua iluminação pessoal era justamente o escape de todos os infinitos: correr incessantemente entre dois pontos, como queria Zeno: a ilusão do movimento sendo-lhe mais reconfortante do que a complacência estagnada do extremo onde o nada toca o tudo. 
Temia, pois, apenas a noite: quando as luzes cessavam sua ação, e a sensação de um desfecho iminente se lhe aproximava. Uma eternidade no Paraíso ou o fim brusco e definitivo de sua existência, ambas as possibilidades lhe eram igualmente assustadoras. Fugia, portanto, ainda nos pensamentos sobre o travesseiro; fugia, enquanto o sono vinha abraçá-la, em planos, palpáveis ou não, para o amanhã. 
E, enquanto houve amanhã, teve a felicidade de acordar sempre com o primeiro fio de luz que viesse dançar sobre seus olhos.

Kōan III

A obra do escritor italiano Vittorio Scalchi, assim como sua singular relação com a mídia, foi alicerçada ao longo de seus curtos anos de existência sobre pequenas e vagamente interdependentes coincidências, a fonte maior de sua inspiração; de forma que é raro entre seus biógrafos aquele que se recusa a utilizar a palavra “aleatória” para classificá-la. Entretanto, como também já foi comentado, sua vida como um todo fez tanto sentido dentro de seu próprio contexto que, talvez paradoxalmente, é como se ele mesmo houvesse lhe escrito o roteiro. 
Nasceu em Turim em 1978, quando o milagre econômico italiano morria e a cidade via sua população cair a cada dia, e imagens de decadência urbana moldaram sua infância. Teve vários empregos antes de finalmente encontrar a literatura: guarda de museu, jornalista esportivo, vendedor de imóveis. Seu primeiro livro veio apenas em 2017, depois da descoberta de um tumor cerebral (oligodendroglioma) que o deixou, nas palavras do próprio, “chocado, mas ao mesmo tempo desejoso de fazer algo real e duradouro de minha vida”.  Quello che mi Piace di Più dell’Ironia (“aquilo de que mais gosto na ironia”) surgiu como um conjunto de crônicas sortidas, baseadas cada uma em uma diferente memória do escritor; entre elas, a história homônima reconta a origem do inusitado título: uma discussão online na qual um anônimo tomou de forma literal um comentário irônico de Scalchi, que então replicou com “quello che mi piace di più dell’ironia è che tutti la capiscono” (“aquilo de que mais gosto na ironia é que todos a compreendem”). Segundo ele, a ideia para o livro veio de sua reflexão sobre a obliquidade da comunicação humana: o modo como uma resposta que superficialmente caracterizaria um non sequitur não obstante é capaz de transmitir significado. 
A simplicidade quase ingênua com que lidara com o tema, tão instigante quanto elusiva, caiu como uma luva na zona cinza entre críticos e leigos. Era possível que houvesse naquelas palavras uma profundidade imprevista, e impossível comprovar que esta fosse acidental. Os anos seguintes, portanto, o italiano os viveria tentando lidar com uma fama tão inesperada quanto repentina; assim como construindo meticulosamente uma persona que se lhe coubesse. Quando leitores lhe pediam a confirmação de tal ou tal teoria (das muitas que foram concebidas) sobre possíveis conexões entre seus escritos, arranjando-os em tramas com camadas e mais camadas de conotações, Vittorio jamais a negava; pelo contrário: oferecia um provérbio, o trecho de um livro (seu ou de outros), uma charada qualquer que seus seguidores pudessem encaixar em labirintos ainda mais bizantinos. Bastava uma sugestão; logo os colunistas de jornal já não hesitavam em chamá-lo “gênio”.
 O escritor, aliás, veio a assumir o hábito de responder sempre de maneira críptica e indireta a toda e qualquer pergunta, por trivial que fosse; em uma entrevista à RAI em 2019, por exemplo, fez questão de se pronunciar apenas mediante versos de canções do músico britânico David Bowie, de algum modo mantendo a seriedade diante dos olhares pasmos da plateia. Passou todo o auge de seu sucesso alimentando essa sua ópera dilatada, o monstro de sua própria criação, e dela subsistindo; teve, evidentemente, de submeter todo seu trabalho subsequente ao rótulo de mero apêndice ao primeiro e principal. Sua obra, tanto quanto se pode deduzir, agora se construía sozinha; e ele já não era mais do que um dos personagens, fadado a cumprir seu papel ou então quebrar a suspensão de descrença do mundo.  
Em algum ponto, todavia, um limite foi ultrapassado. Em algum ponto, a arte do gênio passou de magistral a cotidiana; de cotidiana a enfadonha; de enfadonha a insuportável. Mas já não havia remédio, para nenhuma de suas doenças. Hoje, após sua morte, familiares e amigos já declararam que seu comportamento peculiar não se restringia apenas às suas aparições públicas: ao menos no final da vida, Scalchi tornou-se incapaz de se comunicar de outra maneira; seus fãs já não mais acompanhavam as teias de referências de seu raciocínio, e desconfiavam ter sido ludibriados desde o início. Seus últimos dias foram isolados e improdutivos; talvez, no leito hospitalar de sua mansão, ele ainda jogasse, solitário, seu glasperlenspiel particular, caso fosse ainda capaz de conversar consigo mesmo.
 Muitos boatos e anedotas existem sobre o momento de sua morte, aos quarenta e cinco anos; o que apenas reflete o fato de que sua figura já se havia então transformado em algo próximo de um ser folclórico. Um tal rumor, dos mais repetidos (contando inclusive com várias versões distintas), o põe, os parentes todos a seu redor, capaz apenas de repetir a palavra “tijolo” enquanto uma febre terrível o consome; um sobrinho, andando nervosamente de um lado para o outro, bate o pé contra um móvel e exclama “merda!”; Vittorio então aponta subitamente para o rapaz, grita “alicate!” e cai morto. Por mórbido que seja, inevitável pensar que o homem, se estivesse vivo, teria apreciado a ironia. 
O sobrinho mencionado na piada, por sinal, hoje é, ele também, escritor. Giovanni Scalchi, de vinte sete anos, publicou ano passado seu primeiro livro: La mia Vita nella Vita (“minha vida na vida”), um romance neo-noir em que detalhes autobiográficos se misturam a influências steampunk, foi bem recebido pela crítica e está a um contrato de distância de ser filmado em Hollywood; e, é claro, lhe  rendeu mais do que umas poucas comparações com a obra de seu tio. Quando questionado sobre a validade dessas opiniões, o jovem vinha já com a réplica pronta na língua, em inglês e em tom meticulosamente ensaiado: “here I am, not quite dying, my body left to rot in a hollow tree; its branches throwing shadows on the gallows for me; and the next day, and the next, and another day”.

Fantasmas

Yesterday, upon the stair,
I met a man who wasn't there.
He wasn't there again today,
I wish, I wish he'd go away...
 

(Hughes Mearns, Antigonish) 

Faz três semanas que o meu pai morreu.
Não deveria significar nada; mas significa. Esse é o problema. A minha mãe apanhava dele praticamente todos os dias, eu cresci vendo isso; o covarde, inseguro, bêbado. Batia em mim, também; mas isso não importa. Importa pra mim é a coitada da minha mãe agora andando a esmo pela casa; é ela não poder olhar praquela cadeira, aquela maldita cadeira, a cadeira “dele”. Ninguém senta nela, ninguém questiona por quê.
O silêncio na minha casa agora é ensurdecedor. Cada palavra não dita, cada desviar de olhos, tudo acaba se tornando símbolo da dor que a gente suportou por tanto tempo; e desse jeito ela não vai embora nunca.
Parece que a ausência dele é mais presente do que ele mesmo era, entende? Era pra gente esquecer. Ele já foi, não tem como ele nos atingir. Não deveria ter...
Tipo, no dia em que eu tive coragem de me assumir na frente dele, ele me deu uma surra; uma puta surra, a pior de todas. Por anos, então, eu guardei essa memória como um escudo. Eu sabia que ele nunca poderia me machucar mais do que ele me machucou naquele dia, então eu me lembrar disso me dava forças pra suportar. Só que agora isso é o que eu lembro, o tempo todo. Nem a minha esperança mais infantil e besta de que um dia ele fosse melhorar, fosse ser um pai melhor, que por uma única vez ele me olhasse como filho, como ser humano, nem isso mais eu posso ter!
Eu juro que já pensei um milhão de vezes em tacar fogo naquela merda daquela cadeira, mas eu simplesmente não tenho coragem suficiente pra isso.

Lentilhas Ardentes

Título horroroso. Eu ia pôr On Burning Mirrors, mas não achei o nome original em grego nos longos trinta segundos de pesquisa (não que fosse ficar um microjoule melhor). Porque por algum motivo eu tava lendo sobre o uso de lentes convexas pra convergir os raios do sol e queimar coisas; mas quem resiste a lentilhas ardentes? (lentilles, lógico; eu sou uma pessoa engraçadíssima).
Então. Eu pensava em escrever um meio-que-ensaio sobre como a vida é feita de efemeridades e acabei me perdendo nas meta-referências. Não, sério, é difícil estabelecer alguma significância se antes mesmo de digitar uma idéia, antes de terminar de pensar uma frase, já vem a necessidade de desconstruí-la. AVANT-GARDE. Deixa eu passar pro próximo parágrafo.
Porque essa temática não comporta mesmo muita suspensão de descrença, correto? Ou eu me permito uma hipocrisia desgraçada ou limito o texto a uma sucessão de “cenas” meio-formadas de mérito artístico duvidoso. Uma colagem de haikus paraguaios e sei lá que caralho de metáfora engraçadinha eu poderia usar. Tipo a versão escrita de um clipe dessas bandas hipsters de hoje em dia? Super vanguardista mesmo, pros padrões de 1920. #buñuelchatiado 
Mas afinal, o que é rock n’ roll? 
Falando sério agora. O plural de “haiku” é “haiku”, mesmo. Acabei de olhar no dicionário. E, olha!, descobri que “haiku” significa “sopro de fumaça” em finlandês; além de, claro, haiku. Os poetas fino-nipônicos devem se rasgar diuturnamente pra descobrir formas originais de explorar essa feliz coincidência. Considerando que eles existam, né. 
De qualquer forma, isso me faz pensar se ler a descrição de uma palavra te permite realmente compreender o que ela significa. Filosofia de boteco, ok, mas porra. Daí a pessoa lê “ciclos de rápidas contrações musculares nos músculos pélvicos” (fonte: Wikipédia; “musculares nos músculos”, gente) e goza? Então eu traduzo Sehnsucht como “vício em ansiar” e todas as circunstâncias psico-sócio-histórico-sexuais que levaram o povo alemão a até conceber uma palavra pra isso que se fodam? E, por conseqüência, eu devo assumir que um dia os computadores vão entender piadas de papagaio? 
Não que isso importe muito. O leitor vai se lembrar deste texto amanhã? Olha só. Monges medievais. Os caras tinham só meia dúzia de manuscritos pra ler a vida toda, então claro que eles ficavam presos a cada vírgula simplesmente porque cada vírgula era uma relíquia (e existiam os copistas, que nem ler sabiam). Hoje nós temos a internet. Reverência cega contra pragmatismo indolente? A liberdade de interpretação e adaptação (a desterritorialização, diria Deleuze) é a guilhotina zen da era wiki, a revolução tá engatilhada, mas e aí? Este texto faz algum sentido? Não é uma pergunta retórica. Ou então eu posso escrever qualquer merda, erar a otrogafia a potauçã eu poss at´ nem. 
Pois é. Mas assim é a vida, certo? A guerra, as eleições, tudo é um grande painel de clipes desconexos se contraponteando; os teus amigos são um número no canto da tela. Não adianta eu querer seguir escrevendo ad infinitum, a responsabilidade não é minha, eu não posso catalogar o mundo em um ensaio; e mesmo que eu pudesse (e quisesse), não seria ético. A responsabilidade não é minha.
Eu já usei esse recurso de terminar o texto abruptamente em outra ocasião, mas nesse caso a escolha se justificava pelo tópico em questão; desta vez eu simplesmente não tenho como referenciar essa bagaça toda de forma nem pseudo-inteligente.

O Trabalho de uma Vida

Quando o Boyer me ligou, eu não acreditei. Claro que ele não entendeu o meu silêncio; tava feliz da vida, o filho da puta, só eu e ele sabemos quanto trabalho nós passamos nestes últimos meses. Quanto trabalho...
 - Acabou! - era só o que ele gritava, intercalando com algumas merdas em francês que eu nem entendi. - Até que enfim, acabou!
 Acabou. Esquina da Jackson com a O’Neil, numa casinha geminada de um quarto só, o pessoal do FBI pegou o Poeta literalmente com as calças na mão: o moleque de 28 anos tava tranquilamente socando uma punheta quando eles chegaram; a mamãezinha dele fez um escarcéu na calçada enquanto ele entrava na viatura. O que eu não daria pra ver a cara dele nessa hora... E, sim, ele morava no porão da casa da mãe.
 Eu não fui na festa. Não tinha por quê. O que eu fiz pra ajudar? Sentado aqui no meu escritório, com a quinta ou sexta dose de uísque na mão, eu só fico vendo todas as minhas horas perdidas... Todos os poemas, citações, referências... Todas as pistas que ele deixou pra lugar nenhum, tudo bobagens que ele pegou na internet ou sei lá. A gente se sente como naqueles filmes de Hollywood, sabe?, o assassino quer ser pego, ele quer ser descoberto por alguém tão esperto quanto ele; e eu caí feito um patinho. Me lembra daquele conto do Borges, “A Morte e a Bússola”; só que no meu caso o “mistério” é que não tinha mistério nenhum, e eu podia seguir decifrando pro resto da vida sem nunca chegar um centímetro mais perto da verdade. O Poeta era um vagabundo de 28 anos que morava com a mãe e tinha um maldito computador.
Daí a gente pensa, porra, e se eu tivesse pegado o cara? Por acaso. Porque foi o que aconteceu; ele só foi pego porque cometeu um erro, se não até hoje a gente taria pulando de corpo em corpo tentando achar um padrão que não existia. Ele cometeu um erro. Uma câmera de segurança pegou o rosto dele no horário e local do crime, no dia seguinte o FBI já sabia até o cereal favorito dele. Um erro besta; mas né?, o cara é só humano. Só humano. 
Aquele serial killer que toda semana aparecia no jornal, o “gênio criminoso”... É loucura, eu li uma merda de um livro de psiquiatria só pra tentar entender a cabeça dele! Eu sei, eu sei, que bom que ele tá na cadeia, mas... Não faz sentido! O Poeta, o verdadeiro poeta... Eu já tava tão próximo dele que eu podia quase prever o que ele iria fazer. Eu tava quase pegando o desgraçado... Eu conhecia ele, caralho! Eu poderia... Se eu quisesse, eu poderia até recriar os passos dele, imitar cada pequeno detalhe, ninguém nunca saberia a diferença! Teria que ter sido eu, deveria ter sido eu!

*

GASQUE, ME - o corpo de Nina Elliot, 24 anos, foi encontrado ontem à tarde em um quarto de motel à beira da US 201, depois de um hóspede ter reclamado do mau cheiro; por seu avançado estado de decomposição, os investigadores estimam que o crime deva ter ocorrido há mais de uma semana, apesar de nenhuma denúncia de desaparecimento ter sido relatada à polícia local nos últimos dias.
Nina foi morta por perda de sangue, no que deve ter sido uma lenta e dolorosa tortura: ela foi drogada, amordaçada, e seu corpo estava coberto de múltiplos e profundos cortes. O proprietário do local declarou ter ouvido sons peculiares vindos do quarto, mas disse que julgou se tratarem de “gemidos de caráter sexual”; de fato, a porta não apresenta sinal de arrombamento, indicando que a vítima permitiu a entrada do assassino.
A notícia tem perturbado os habitantes da pacífica Gasque, já que o modus operandi do criminoso bate com o do assim chamado “Poeta”, serial killer responsável por pelo menos uma dezena de homicídios nos últimos meses; Edwin Flavin, principal suspeito, preso há cerca de um mês, ainda não foi a julgamento. A polícia local ainda não sabe dizer se a morte de Nina Elliot é de fato a mais nova ação do Poeta ou simplesmente um “crime de copycat”, mas admite que a frieza e a minúcia com que foi executada denotam tanto habilidade quanto experiência por parte do assassino.
Um detalhe do crime, porém, tem tirado o sono dos locais: na parede do quarto, pintada com o sangue da vítima, estava a frase “vocês realmente acharam que podiam me pegar?”.