Ser escritor
é a profissão mais difícil que existe; exceto pros maus escritores, é claro. Se
você pretende que o seu trabalho seja minimamente realista, que as pessoas
leiam e não pensem “isso nunca aconteceria de verdade”, ou, enfim, que alguém leia o que você faz, é bom ter paciência,
muita dedicação e uma boa dose de criatividade. Do contrário, o que acontece
com muita frequência, o seu texto vai começar a se escrever sozinho. Quer
dizer, você não vai ter escolha senão permitir que o seu personagem faça o que ele quer fazer, o que ele vai fazer de
qualquer jeito, naturalmente. Foi pra isso que você deu a ele uma
personalidade, não foi? Gostos, manias,
perversões... É claro que ele pode mudar; todo mundo pode. Mas as mudanças têm
de vir de forma gradual, precisa haver um motivo e precisa haver conflito... E
isso nem sempre se encaixa no plot que você tinha em mente no começo. Aliás,
raramente se encaixa. E aí só existem duas soluções: ou você muda o cara no braço (ou na caneta, ou no teclado...)
e se prepara pra chuva de críticas que vai receber, ou deleta todo o seu
trabalho e começa tudo do zero. É triste, mas é a vida.
Bom, eu
tentei um terceiro caminho.
O livro que
eu tinha começado a escrever era basicamente sobre um diretor de cinema deprimido
e paranoico. Steve. Não consegui pensar num nome mais neutro que esse. Steve O’Neil. Nova-iorquino, descendente
de imigrantes irlandeses, você sabe. Obcecado em “fazer a diferença” numa
cidade em que ninguém é igual a ninguém e todo mundo é ocupado demais pra dar
atenção a qualquer um afora si próprio. Pobre Steve.
Meia história
adentro (de acordo com a minha projeção inicial), quando o enredo já tava
ficando mais que monótono e a vida do cara parecia não sair do lugar, ele faz
uma visita à casa do seu falecido avô (que havia sido, evidentemente, cineasta
amador; só precisei reescrever alguns parágrafos dos primeiros capítulos pra
inserir essa informação, pra que não parecesse muito um deus ex machina) e descobre um roteiro, uma câmera e vários
rolos de filme escondidos no fundo falso de um baú. As Mil e Uma Noites, conforme a visão do velho Patrick O’Neil,
pretendia reproduzir em sua totalidade a versão Habicht do clássico árabe, a
primeira a incluir (fidelidade histórica e estilística às favas) de fato mil e uma noites. Infelizmente,
os anos que restavam ao avô do Steve não tinham permitido que ele completasse a
empreitada a que se dispusera, e seu filme permanecia incompleto, sua ruiva
Xerazade eternamente presa na teia de contos entrelaçados que ela própria
tecera e sem saber se seu sultão a pouparia no fim.
O que deveria
acontecer desse ponto em diante é bastante óbvio: Steve acha o filme, decide
completá-lo (não sem antes se envolver em longas considerações filosóficas
sobre a legitimidade artística de terminar o trabalho começado por outra
pessoa) e, dependendo de como o meu humor estivesse nessa altura, acaba famoso,
mais ou menos famoso, trabalhando em algum grande estúdio, sei lá. Um final
razoavelmente feliz, de qualquer forma.
E é bastante
óbvio, até pelo fato de eu estar escrevendo isto agora, que não foi isso que aconteceu. Meu Steve
era um cara complicado, veja você. Eu sabia, ou deveria ter sabido, que ele
nunca se decidiria entre completar o filme ou buscar inspiração pra fazer
alguma coisa “sua”, autoral. A chance era realmente muito boa, e com um
pouquinho de esforço ele poderia simplesmente mentir a respeito do papel do avô
na história; mas de qualquer forma o filme seria uma adaptação de um livro que,
ele próprio, era como que uma reformulação de outro livro composto por uma série de contos reunidos ao longo do
tempo por um bocado de gente (os quais, por sua vez, foram inspirados por narrativas
hindus e mesopotâmicas... Enfim), dificilmente algo passível de ser considerado
original. Eu não tinha como alterar isso, ele era assim... E só um estímulo
externo poderia fazer com que ele mudasse de ideia.
E esse foi o
tal “terceiro caminho” a que eu me referi no segundo parágrafo. Uma ideia não
muito comum, é verdade; e que me levou... Ou, talvez seja melhor eu dizer, nos levou a conclusões imprevistas. Exatamente
por isso que eu resolvi escrever este texto, como um epílogo pro meu livro, pra
justificar, ou ao menos tentar explicar, o meu fracasso.
Eu entrei na história. Literalmente. É até
estranho falar isso agora; mas foi o melhor que consegui pensar. Uma estudante
de teatro, apropriadamente ruiva, com o corpo todo minuciosamente construído
pra atiçar o desejo do protagonista; um encontro casual, uma paixão febril;
quem iria conhecer a mente dele melhor do que eu? Por fim, eu me ofereceria pra
encarnar a Xerazade do filme, somaria a minha vontade à dele, daria um jeito de
fazer a coisa acontecer; e, se tudo mais
desse errado, eu poderia... Né? Contar a verdade pro coitado; tem tanta gente
que faz isso hoje em dia. “Você é um personagem do meu livro”. Que melhor
motivação pra realizar o sonho dele do que saber que tudo daria inevitavelmente certo? Se eu soubesse...
Tudo foi indo
conforme eu previ. Tudo. A forma como nós nos esbarramos na rua (um tanto
clichê, tudo bem, mas plausível o bastante), o olhar confuso e envergonhado na
cara dele, eu tendo que perguntar sobre o roteiro que ele levava debaixo do
braço (porque eu sei que ele nunca
comentaria espontaneamente), e daí em diante. Tudo perfeito demais.
A experiência
de “se inserir” num trabalho de ficção, pôr ideias e sentimentos reais num
enredo imaginário (imaginado pela tua própria cabeça, ainda por cima), é ao
mesmo tempo cativante e traumática. É como escrever num diário que aceita um
pouquinho de licença poética; como reviver memórias, tendo a liberdade de
explorar o e se. Sabe? De repente a
gente se sente tão previsível quanto cada personagem, tão presa a si mesma que
chega a doer.
É claro, eu
me apaixonei por ele. Uma pessoa que só existia na minha cabeça. Meu filho,
fruto dos meus próprios neurônios, das minhas próprias cicatrizes. Ele me
entendia tão bem quanto eu a ele. Claro.
Esta história tá ficando cada vez mais redundante. Ele era eu, fora de mim; a fonte e o reflexo (e o consolo) do meu
narcisismo. Negar a vontade dele em benefício de um maldito plot sem nexo seria
escravizar a mim mesma; não, eu não podia. Só me sobrou uma opção.
- Eu tenho
que te contar uma coisa. - falei pra ele, num belo dia do penúltimo capítulo;
pelo menos eu pude fazer o dia ficar lindo, e a torta de maçã tava exatamente
como a que a avó dele fazia.
- Fala, meu
anjo.
- Eu não sou
quem você pensa que eu sou.
- Ah, é? -
ele riu; aquele sorriso meu, que só eu enxergo, e não adianta eu tentar
descrever. - E quem você é?
Hesitei
exatamente o tempo necessário pra que ele desconfiasse.
- É sério? O
que é que houve? Me conta.
- Não
aconteceu nada, é só que... É difícil explicar.
- Você me
traiu.
- Não.
- Olha pra
mim. - eu já tava olhando antes dele terminar a frase.
- Não. É
outra coisa...
- Me conta.
Parei de
novo, mexendo a colher no café. Agora faltava pouco.
- Você não me
ama mais?
- Amo... Só
que...
- Só que você
deu pra outro.
- Não, porra.
Já falei que não é isso.
- Então o que
é? Você me ama, só que...
- Só que não
do jeito que você pensa.
Aí foi ele
que hesitou. Eu sabia que ele precisava pensar bem antes de dizer qualquer
outra coisa.
- Não do
jeito que eu penso. Ok. Você me ama como?
Suspirei. No
livro e na vida real.
- Você é como
um filho pra mim.
Ele riu; mas
tava nervoso. Ele odeia quando não entende o que tá acontecendo e as coisas não
tão exatamente como ele quer. Quem
não odeia? Eu odeio.
- ‘Cê tá
brincando, porra. Você é, sei lá, dez anos mais nova que eu. Como que eu sou um
filho pra você?
- Eu...
- É um filho?
É isso que você quer, você quer ser mãe? É meio cedo, mas a gente...
- Steve...
- Que é,
caralho? Que é? Fala!
Eu sabia que
ele ia se irritar; mas aí eu já tinha decidido o melhor jeito de mostrar tudo
pra ele, e sabia que ele iria fazer qualquer coisa pra descobrir o que eu tava
querendo dizer. Peguei na mão dele até sentir a raiva passando.
- Vem comigo.
Fomos pro
nosso lugar, no topo de um edifício velho; tava amanhecendo, a gente via toda a
cidade saindo da névoa dali de cima. Ele costumava achar aquilo inspirador, mas
claro que agora tava confuso demais pra prestar atenção em qualquer coisa.
Caminhei até a beirada, e ele foi atrás de mim sem eu ter que dizer nada.
- Escolhe um.
- eu disse, olhando pra baixo; semáforo fechado, uma linha de carros esperando
inocentemente. Sim, eu sabia qual ele escolheria.
- Um carro?
- É.
- Por quê? O
que isso tem...
- Só escolhe.
- O vermelho,
bem na frente.
Claro que eu
precisava fazer alguma coisa, algum gesto, pra ele ter certeza de que era eu
que tava fazendo aquilo; senão, era capaz que ele pensasse que foi
coincidência. Só levantei o braço e apontei pra vítima escolhida, e esperei um
instante pra dar tensão; então o carro explodiu e voou em pedacinhos. Várias
pessoas morreram, muitas ficaram feridas, correndo ensanguentadas pela rua, e
eu não quero nem saber o que os jornais disseram que aconteceu; a única coisa
que me interessava naquele momento era a reação do Steve.
Ele não tinha
ideia do que dizer; não sabia nem o
que perguntar. Peguei o rosto dele nas mãos, mas a expressão nele não mudou. Foi
a minha única opção, eu não podia ter feito aquilo de outro jeito. Juro que
ensopei o meu teclado de lágrimas enquanto digitava essa parte.
- Eu criei
você. - as palavras já haviam sido calculadas muito tempo antes, mas ainda
saíram meio arrastadas. - Eu criei você e todo este mundo. Tudo pra você. Você
é meu protagonista.
Ele ainda não
dizia nada, mas chorou também. Fazia anos
que ele não chorava. Mas os olhos dele continuavam vazios. Encostei a cabeça no
peito dele e esperei; a resposta viria.
- Você sabe o
que eu tô pensando agora? - ele perguntou, enfim; passado o choque, o orgulho
ia renascendo dentro dele.
- Sei.
- Você...
- Também.
- E...
- Aham.
Eu sei que
ele pensou em milhões de coisas naquela hora, nem faria sentido escrever tudo.
Precisava de um tempo pra assimilar toda a informação; eu deixei, ele é
inteligente, acabaria entendendo. E aceitando. Quando ele se virou e foi embora
sozinho, sem dizer mais nada, eu vi que realmente o pior tinha acontecido e já
era tarde pra tentar mudar alguma coisa. Eu tive medo, antes, que essa fosse a
única resolução possível pra situação, mas tava decidida; e, conforme fui
escrevendo o capítulo, mais e mais certa eu fiquei.
Tem que ser uma surpresa, ele me disse,
quando eventualmente me procurou. Não porque achasse que precisava me comunicar
qualquer coisa pessoalmente, mas só pra provar o meu beijo uma última vez; saiu
tranquilo pelas ruas do seu próprio mundo, e eu respeitei a vontade dele de
nunca mais aparecer. Pobre orgulhoso Steve. Seguiu vivendo de pequenos
trabalhos underground, talvez mais satisfeito do que seria em Hollywood; como
que me dizendo “não adianta esperar muito, é aqui que acaba a tua história”.
Então, deixei passar precisamente um ano, porque ele nunca esperaria essa regularidade, e construí o último capítulo
como ele me pediu: um dia normal no trânsito de Nova Iorque; uma mãe muito
ocupada ao telefone que inadvertidamente esquece a filha pequena no meio da
rua; um acidente iminente; e um último, precipitado, estúpido e ridículo ato de
altruísmo. E garanto que nos últimos segundos ele se lembrou de mim, e pensou
que poderia ter enganado o Universo se tivesse sido um segundo mais rápido. Ah,
Steve...
Enfim, meu
personagem principal morreu, e com ele o meu livro. Um final, como eu disse no
início deste texto, totalmente diferente do que eu tinha imaginado a princípio.
A Xerazade ruiva, coitada, não conseguiu se desenredar da indecisão do
esquecimento, e nem metade dos sub-plots; praticamente todas as pontas ficaram
desamarradas. Não quis mexer em mais nada, um pouco por receio de ofuscar o que
já tava escrito e um pouco antecipando uma cagada pior ainda; e tenho certeza
que os meus fãs (se é que eu ainda tenho fãs depois desse fiasco) vão seguir debatendo
por muitos anos sobre o “significado” do livro. Ossos do ofício.
Mas acho que,
no fim das contas, eu bem que escrevi uma bela história...