Tem momentos
na vida em que a gente toma no cu direitinho. Sim, existem muitas maneiras como
isso pode acontecer, mas a mais comum é: a gente acha que alguma coisa é
imaculadamente certa, até que um belo dia descobre da pior maneira possível que
não é; ou vice-versa. Os psicólogos chamam isso de “dissonância cognitiva”.
Parece que o universo faz dessas só pra ver se a gente deixa de ser trouxa, se
tenta entender as coisas de forma mais profunda e evita simplificações
estúpidas; mas raramente funciona: a gente pode forçar o cérebro a mudar de
opinião, a gente pode ser teimosa e insistir na antiga, mas o que geralmente
acontece é que a gente simplesmente não pensa mais a respeito e faz de
conta que tá tudo bem.
Eu sou
jornalista; ou seja, esse tipo de coisa, em maior ou menor grau, acaba me
acontecendo o tempo todo. Mas o caso é que a gente nunca tá preparada pra isso.
Uma vez, no início da minha carreira, o MASP organizou uma
exposição dum sujeito chamado Günther Katz, e o jornal em que eu trabalhava
na época me arranjou uma entrevista com ele. Fiquei louca, lógico. Eu
sempre fui fã de arte, e o Katz era o pintor do momento. O cara tinha quase
setenta anos e conseguia pintar uns vinte quadros por mês. Ele produzia
tanto (e lucrava tanto com isso) que na época a obra dele era campeã de
falsificações: como o estilo dele era muito “complexo” (segundo os
críticos, claro; eu não tenho a mínima pretensão de julgar), os caras
basicamente espalhavam umas tintas de qualquer jeito sobre uma tela e pronto; o
único jeito que os experts tinham pra descobrir a autenticidade de cada quadro
era pela análise da assinatura, mesmo.
Beleza,
marcamos o encontro. Eu até achei um pouco estranho porque, em vez de
se hospedar num hotel, ele tava ficando numa espécie de cabaninha montada
num canto do Parque do Trianon. Mas enfim, coisa de artista, né? Ele ia me
receber às 15h, mas eu tava tão animada com o trabalho (e preocupada com o
trânsito de Sampa) que resolvi sair de casa com umas boas duas horas e
meia de antecedência. Cheguei no local indicado alguns minutos antes do
esperado, e encontrei uma cena bem interessante: em volta do “acampamento”
do Katz, tinha pelo menos uns seis policiais militares. Nenhum deles em posição
de sentido à la guarda britânica, ok, mas era bem óbvio que eles tavam
vigiando pra garantir que ninguém entrasse.
Nesse
momento, a minha curiosidade me venceu. Claro que eu poderia só ter avisado
os guardas que eu tinha uma entrevista marcada com o cara, mas agora eu
precisava saber o que tava acontecendo. Quer dizer, eu já tinha tido
algum contato com outros artistas, até internacionais, e nenhum tinha sido
tão vedete a ponto de requisitar vigia particular. Por isso que eu
resolvi, muito cuidadosamente, dar uma volta grande pelo mato e me aproximar da
cabana pelos fundos. As frestas entre as tábuas eram largas o suficiente pra
enxergar bem o lado de dentro; e o que eu vi me deixou completamente
perplexa.
O espaço todo
era tipo um galpão, ou um salão aberto; lá dentro, uma meia dúzia de
pessoas, cada um de frente pruma tela. O grande Günther Katz andava no
meio deles, observando, às vezes fazendo algum comentário num português meio
capenga… Eu até já tava achando que aquilo era uma aula que ele tava dando ou
sei lá, até que eu vi ele pegar um carimbinho do bolso e marcar um dos quadros;
do ângulo que eu tava olhando, deu pra ver bem claro o que era: uma cópia da
assinatura dele. Tudo feito com tanta naturalidade, com tanta organização,
que parecia uma linha de montagem.
Eu quis tirar
fotos da brincadeira; mas quando eu ia tirar o celular da bolsa, um
guarda me viu. Argumentei que eu era jornalista, que tinha uma entrevista
marcada mas tinha “me perdido”; não sei se ele acreditou muito,
mas confirmou o compromisso com o agente do Katz e, depois de
alguns minutos, me deixou entrar. Aí os “auxiliares” todos já
tinham sumido, e o pintor não teve o mínimo constrangimento
em apresentar aqueles quadros como obras próprias. Fez questão de me
mostrar cada um individualmente, e gastou uns bons minutos explicando o “processo
criativo” dele. O tempo todo que eu fiquei ali, juro que me deu vontade de
esbofetear aquela cara enrugada umas trinta vezes.
Claro que eu
não cheguei a mencionar nada disso, até porque eu não teria como provar
nada e daria um bafafá gigantesco; só escrevi baseada no que a gente
conversou, na versão dele dos fatos, e me dei por feliz. Só a
vergonha alheia é que não passou. Quer dizer, mesmo depois de tantos anos
parece que a ficha ainda não caiu, e eu ainda não sei como me posicionar sobre
o que vi. Às vezes eu só digo pra mim mesma que fui eu que interpretei errado o
que aconteceu, que foi tudo um imenso mal-entendido e que o papo que eu ouvia
nas aulas de História da Arte ainda faz todo o sentido.
Quanto ao
senhor Katz, acho que os problemas com os falsários acabaram abalando demais a
carreira dele: um tempinho atrás, ele fez o anúncio público de que se
mudaria prum retiro isolado no Caribe, pra “poder trabalhar em paz”. Dizem
que morreu há alguns anos, mas continua na ativa.