Breve Compêndio de Pseudeisegeses - Prefácio

Um conselho popular aos jovens escritores, às vezes atribuído a Mark Twain ou Ernest Hemingway, é “escreva o que você sabe”. Ainda que um Salgari, por exemplo, fosse discordar, é bastante óbvio que a imensa maioria prefere compor suas obras a partir das próprias experiências. Faz sentido; garante-se uma maior fidelidade ao assunto abordado, e ao mesmo tempo se evita qualquer potencial erro de pesquisa.
Um problema, contudo, se dá quando tal raciocínio é aplicado à ficção especulativa: qualquer ideia evocada acaba invariavelmente refletindo a opinião de quem a professa; e, como fosse sempre imprescindível convencer os leitores da plausibilidade do texto, os conceitos expostos tendem a ser podados pela navalha de Occam, atendo-se apenas ao mínimo de inventividade necessário.
A fim de que se supere essa barreira à fertilidade literária, então, recomendar-se-ia que os escritores se livrassem da obrigatoriedade de acreditar, eles próprios, no que escrevem. Esta não é, afinal de contas, uma forma de autocensura? Quantas explicações perfeitamente lógicas e coerentes não deixam de ser expressas apenas por não serem verdadeiras? Quantas hipóteses interessantíssimas não são abandonadas unicamente porque incompatíveis com a mentalidade de quem as concebe?
Assim eu defino uma pseudeisegese: uma “falsa opinião” (sendo “eisegese” usada em seu sentido antigo, anterior àquele empregado na hermenêutica bíblica, de “proposição”, “conselho”), uma teoria imaginária, conjecturada tendo-se plena consciência de sua possível inverdade.
A série que eu inicio aqui, portanto, servirá como um exercício de liberdade criativa, tanto minha quanto de eventuais leitores do blog. Além de expandir meus horizontes temáticos e absolver minhas incoerências, tal experimento pode abrir portas imprevistas na elaboração de ensaios mais, digamos, reais. Por sua vez, quem lê, eximido da imposição imediata de concordar ou não, pode sentir-se mais livre em sua interpretação geral do conteúdo; quiçá ache algo de autêntico no abertamente infundado.
E, caso tudo mais dê errado, de qualquer forma este texto se tornará um belo exemplo do tipo de meta-referência engraçadinha que eu costumeiramente posto aqui. A imaginação não tem limites.

Arte Falsificada

Tem momentos na vida em que a gente toma no cu direitinho. Sim, existem muitas maneiras como isso pode acontecer, mas a mais comum é: a gente acha que alguma coisa é imaculadamente certa, até que um belo dia descobre da pior maneira possível que não é; ou vice-versa. Os psicólogos chamam isso de “dissonância cognitiva”. Parece que o universo faz dessas só pra ver se a gente deixa de ser trouxa, se tenta entender as coisas de forma mais profunda e evita simplificações estúpidas; mas raramente funciona: a gente pode forçar o cérebro a mudar de opinião, a gente pode ser teimosa e insistir na antiga, mas o que geralmente acontece é que a gente simplesmente não pensa mais a respeito e faz de conta que tá tudo bem.
Eu sou jornalista; ou seja, esse tipo de coisa, em maior ou menor grau, acaba me acontecendo o tempo todo. Mas o caso é que a gente nunca tá preparada pra isso. Uma vez, no início da minha carreira, o MASP organizou uma exposição dum sujeito chamado Günther Katz, e o jornal em que eu trabalhava na época me arranjou uma entrevista com ele. Fiquei louca, lógico. Eu sempre fui fã de arte, e o Katz era o pintor do momento. O cara tinha quase setenta anos e conseguia pintar uns vinte quadros por mês. Ele produzia tanto (e lucrava tanto com isso) que na época a obra dele era campeã de falsificações: como o estilo dele era muito “complexo” (segundo os críticos, claro; eu não tenho a mínima pretensão de julgar), os caras basicamente espalhavam umas tintas de qualquer jeito sobre uma tela e pronto; o único jeito que os experts tinham pra descobrir a autenticidade de cada quadro era pela análise da assinatura, mesmo.
Beleza, marcamos o encontro. Eu até achei um pouco estranho porque, em vez de se hospedar num hotel, ele tava ficando numa espécie de cabaninha montada num canto do Parque do Trianon. Mas enfim, coisa de artista, né? Ele ia me receber às 15h, mas eu tava tão animada com o trabalho (e preocupada com o trânsito de Sampa) que resolvi sair de casa com umas boas duas horas e meia de antecedência. Cheguei no local indicado alguns minutos antes do esperado, e encontrei uma cena bem interessante: em volta do “acampamento” do Katz, tinha pelo menos uns seis policiais militares. Nenhum deles em posição de sentido à la guarda britânica, ok, mas era bem óbvio que eles tavam vigiando pra garantir que ninguém entrasse.
Nesse momento, a minha curiosidade me venceu. Claro que eu poderia só ter avisado os guardas que eu tinha uma entrevista marcada com o cara, mas agora eu precisava saber o que tava acontecendo. Quer dizer, eu já tinha tido algum contato com outros artistas, até internacionais, e nenhum tinha sido tão vedete a ponto de requisitar vigia particular. Por isso que eu resolvi, muito cuidadosamente, dar uma volta grande pelo mato e me aproximar da cabana pelos fundos. As frestas entre as tábuas eram largas o suficiente pra enxergar bem o lado de dentro; e o que eu vi me deixou completamente perplexa. 
O espaço todo era tipo um galpão, ou um salão aberto; lá dentro, uma meia dúzia de pessoas, cada um de frente pruma tela. O grande Günther Katz andava no meio deles, observando, às vezes fazendo algum comentário num português meio capenga… Eu até já tava achando que aquilo era uma aula que ele tava dando ou sei lá, até que eu vi ele pegar um carimbinho do bolso e marcar um dos quadros; do ângulo que eu tava olhando, deu pra ver bem claro o que era: uma cópia da assinatura dele. Tudo feito com tanta naturalidade, com tanta organização, que parecia uma linha de montagem. 
Eu quis tirar fotos da brincadeira; mas quando eu ia tirar o celular da bolsa, um guarda me viu. Argumentei que eu era jornalista, que tinha uma entrevista marcada mas tinha “me perdido”; não sei se ele acreditou muito, mas confirmou o compromisso com o agente do Katz e, depois de alguns minutos, me deixou entrar. Aí os “auxiliares” todos já tinham sumido, e o pintor não teve o mínimo constrangimento em apresentar aqueles quadros como obras próprias. Fez questão de me mostrar cada um individualmente, e gastou uns bons minutos explicando o “processo criativo” dele. O tempo todo que eu fiquei ali, juro que me deu vontade de esbofetear aquela cara enrugada umas trinta vezes.
Claro que eu não cheguei a mencionar nada disso, até porque eu não teria como provar nada e daria um bafafá gigantesco; só escrevi baseada no que a gente conversou, na versão dele dos fatos, e me dei por feliz. Só a vergonha alheia é que não passou. Quer dizer, mesmo depois de tantos anos parece que a ficha ainda não caiu, e eu ainda não sei como me posicionar sobre o que vi. Às vezes eu só digo pra mim mesma que fui eu que interpretei errado o que aconteceu, que foi tudo um imenso mal-entendido e que o papo que eu ouvia nas aulas de História da Arte ainda faz todo o sentido.
Quanto ao senhor Katz, acho que os problemas com os falsários acabaram abalando demais a carreira dele: um tempinho atrás, ele fez o anúncio público de que se mudaria prum retiro isolado no Caribe, pra “poder trabalhar em paz”. Dizem que morreu há alguns anos, mas continua na ativa.