Descolonização

Onde agora a flauta e o tambor?
Onde a semente
Do amor sem lucidez
E da paixão
Sem serventia

Sem servidão, e
Desguarnecida?

Onde agora as praças sem dono?
Onde as danças?
Onde os beijos de
Cansaço, de saudade, ou
De agonia?

Foi mesmo tudo nivelado na cidade?

Foi toda essa civilidade
Luminosa e aliterante
Que ordenou as retas
E maquinou os planos
Dos nossos feriados, e
Das nossas feridas?

Então foi esse o sonho
Que se plantou no nosso sangue
De ferro e rodas e fogo
E outras efemeridades
Que de outra forma
Derreteriam?

Foi essa então a jaula
Que nos cederam
Tão aberta e morta e
Tão bem construída?

Foi nesse pináculo
Simétrico e
Proparoxítono
Que te fizeram cativa
De vírgulas, monólitos
Aeroportos e
Linhas-guia?

É essa mesmo a medida da nossa vida?

É realmente esse o ritmo das nossas mãos
Das nossas virilhas
Das nossas, talvez, mandíbulas?

Qual é o preço, então
De despovoar tua alma
E esvaziar tuas veias
E te fazer sumir
Por, quem sabe, um dia?

E será que eu posso
Será que eu devo
Podendo me abrir inteiro
Arrancar dos olhos
Arrancar da língua
Esta metonímia
Esta métrica, sei lá
Esta poesia?

Esta “esta”
Teia maldita
De alófonos prosopopeicos
E submissão subdividida

Em gozar como Shakespeare
Ou sofrer como Lúcifer
No pó regurgitado
De Ozymandias

E sem esse sonho, sem as sedas
Da memória marcada e moída
Das neves de outras vidas

O que sobra na tua garganta
Na tua saliva?

Em cada pobre tentativa
De se rasgar a História
E se rasgar
Em rebeldia?

Onde agora o tambor e a flauta?
Onde o suor?
Onde o verso sem rimas, sem
Ciência, sem
Obediência, sem
Referências, ou
Hipocrisia?

A Profana Igreja Neutra de São Ninguém

Como os ateus pecam?
À primeira vista, a pergunta parece absurda. Ateus não pecam, ou pelo menos acreditam que não (o leitor de fé seguramente irá discordar), já que o próprio conceito de “pecado” é religioso em origem. Aliás, livrar-se desse peso na consciência, pela lógica, deve ser um dos maiores benefícios de se abandonar a crença na existência de deus, certo? Pelo menos era isso que eu ia pensando no caminho pra entrevista de hoje.
Por fora, o prédio lembrava uma loja de antiguidades ou um museu: fachada art nouveau adornada com esculturas pseudo-orientais, mas sem inscrições ou qualquer indicação do que poderia existir lá dentro. O business card que nós tínhamos recebido de um membro (que preferiu se manter anônimo) exibia o particularíssimo nome “Prohibitus - Templo Agnóstico e Masmorra S&M”, escrito em fonte elegante, seguido do endereço; mas, como eu logo iria descobrir, os frequentadores preferem usar apelidos “carinhosos” pra se referir ao lugar, como “Igreja de São Ninguém”,  “Catedral Safada” ou (o meu preferido, pela sutileza maravilhosa) “Igreja Flexível”.
Apesar de tudo, o interior me pareceu bem mais comportado do que eu esperava: com a exceção de alguns símbolos claramente não cristãos (por exemplo, no lugar de cenas bíblicas, os afrescos da abside eram cheios de imagens abstratas, rosas, cálices e cabeças de touros e leões), nada ali causaria escândalo em uma igreja tradicional. O proprietário, atendendo pela modesta alcunha de “Arquidiácono”, me recebeu numa salinha à esquerda do transepto; numa conversa franca e surpreendentemente filosófica, ele tentou me explicar, com o perdão da expressão, o que diabos se passa naquele estabelecimento.

Hiper Intrigante - Em primeiro lugar, quem foi o maluco que teve essa ideia?

Arquidiácono - [risos] Eu, junto com um grupo de amigos. Uma das nossas intenções era causar exatamente esse tipo de reação.

HC - Então é uma brincadeira? Uma provocação aos religiosos?

A - No início era, eu acho. Não uma “provocação”; só um deboche, uma coisa bem sadia. [risos]

HC - Ok, mas realmente existe uma masmorra sadomasô no porão?

A - Existe. Essa era a parte séria do plano, na verdade. A igreja era pra ser só um atrativo a mais, uma “fantasia”, entende? Foi ficando mais sério depois.

HC - “Mais sério” em que sentido? A religião de mentirinha virou realidade?

A - Não, não; o nosso templo é agnóstico, e nunca vai deixar de ser. Deus aqui não entra. Só o aspecto ritual, ritualístico da coisa que passou a ser mais importante pra nós; os próprios clientes começaram a exigir isso.

HC - Por que você acha que isso aconteceu?

- Não sei; eu acho que de repente as pessoas gostam desse “incentivo”. Quer dizer, geralmente quem vem aqui é gente que cresceu dentro de alguma religião, e só há pouco tempo teve a coragem de abandonar. Pode parecer ridículo, mas talvez elas sintam falta da opressão, do medo do castigo, entende?

HC - A proposta então é manter uma aparência de sagrado pros clientes poderem ter o “prazer” de pecar?

A - Isso. É isso que eu escuto lá embaixo, todos os dias. E tá no nosso nome, também: “prohibitus”, em latim, não significa só “proibido”, mas também “protegido”, “preservado” e “restrito”. Eu acredito que o que nós fazemos aqui seja isso: preservar essa sensação de “fazer coisa errada”, sem que os membros precisem aceitar nenhuma doutrina imbecil sobre a origem do universo e essas coisas.

HC - E, apesar disso, a nave da igreja é decorada com símbolos religiosos, e o líder se denomina “arquidiácono”. Isso não confunde um pouco as intenções? Como funciona a “pregação” aqui?

A - Não, os símbolos são parte da atmosfera, só. São coisas bem vagas, não têm significado nenhum; nós não esperamos que ninguém preste atenção neles. A mesma coisa o meu título. Nós criamos toda uma hierarquia, caso alguém queira se tornar sacerdote. Mas no fim das contas, como você disse, é só aparência. O que eu falo nas missas são discursos genéricos sobre moralidade, castidade etc.; não tem doutrinação, ninguém tem que acreditar em nada.

HC - Você mencionou uma hierarquia; alguém além de você desempenha alguma função, digamos, “eclesiástica”?

A - Não, aqui na parte da igreja, não; pra te falar a verdade eu não acredito que alguém vá se interessar. Mas a hierarquia existe, caso isso aconteça. Ou caso alguém pergunte.

HC - Antes desta nossa conversa, alguém já tinha perguntado?

A - Não. Mas eu acho que as pessoas também não se preocupam muito com hierarquias em igrejas “normais”, né? Tendo um cara lá no altar falando o que elas querem ouvir, elas nem questionam.

HC - Essa atenção toda ao detalhe não é um pouco desnecessária, então? Você, como mentor dessa loucura toda, não se sente às vezes um pouco...

A - Ridículo? [risos]

HC - [risos] Eu ia dizer “entediado”, mas acho que “ridículo” serve. Sério, o roleplay não enche o saco? Não dá uma sensação tipo “nossa, chega de preliminares!”?

A - Não, não; eu gosto. Isso de “entrar no personagem” faz parte da cultura BDSM. O meu papel, como você falou, é o de mentor; então eu garantir que tudo funcione perfeito, que não aconteça nenhum imprevisto, tá atrelado até ao meu próprio prazer, entende? É tudo um jogo de poder.

HC - Bom, eu até já imagino a resposta pra esta pergunta, mas... Pessoalmente, você segue alguma religião?

A - Se eu seguisse, a esta altura já tinha sido excomungado. [risos] Não; eu fui criado como católico, mas hoje sou ateu.

HC - E por que o “agnóstico” do nome, então? Por que não “ateu”?

A - Porque o culto é aberto pra qualquer um; não cabe a nós dizer pros clientes que deus não existe. Até teístas, ou pessoas que seguem outras religiões, podem participar. Como os clientes comentam, nós somos uma igreja flexível.

HC - Pra terminar, qual seria a sua reação se algum dos seus “fiéis” passasse a seguir você como um líder espiritual de verdade?

A - Eu duvido muito que isso vá acontecer, mas acho que eu seguiria fazendo o mesmo que eu já faço: usar minha influência pra obter favores sexuais. [risos] Ou, não sei, talvez aí eu me sentisse culpado.

Crônicas do Fim do Mundo XIV - Entregável

Todo dia eu enxergo um homem do outro lado da janela do meu escritório. Todo dia, no mesmo horário, ele aparece na rua; tira uma foto do muro, sempre do mesmo ângulo (sempre do mesmo muro), e vai embora. Meus colegas não veem o homem, porque o meu cubículo é o único com visão para a janela; mas todo dia, quando os computadores me dizem que são 18:47, ele aparece. É estranho, porque às vezes já é escuro quando isso acontece; mas eu não acho que os computadores mintam. O homem vem com uma lâmpada grande, tira uma foto do muro e vai embora.
Às vezes, quando eu tenho tempo, eu me pergunto o que ele faz com as fotos. Meus colegas me dizem que é bobagem. Quando eu falei um dia que queria seguir o homem depois do serviço, o Bob me respondeu que poderia ser perigoso. “Ele pode trabalhar pro Supervisor”, o Bob disse. Faz sentido. Talvez o homem seja o Supervisor; talvez ele nem tire foto nenhuma.
Ou talvez existam outros homens tirando fotos de outros muros; quem sabe até em horários diferentes. Talvez eles estejam fazendo um Relatório de Muros; ou um Relatório de Dias. Sempre as mesmas fotos, sempre dos mesmos ângulos (sempre dos mesmos homens), anexadas em um email para outra seção.
Eu tenho medo do que pode acontecer quando eles terminarem.

Breve Compêndio de Pseudeisegeses III - Ex Chao‏

Dizem os estudiosos que o princípio de nosso Universo possivelmente tenha se dado a partir de um literal nada: flutuações energéticas no vácuo (ou seja, o surgimento espontâneo de partículas e antipartículas, tão minúsculas e efêmeras que não chegam a violar a lei da conservação de energia) teriam ocorrido sem cessar em um período anterior ao próprio tempo; a maioria delas era anulada tão logo quanto brotava, mas eventualmente uma durou o suficiente para causar um ligeiro desequilíbrio negativo e desencadear a expansão gigantesca que originou todo o cosmos. Em termos leigos: onde nada existia, algo apareceu (mediante as mesmas leis que ainda hoje podem ser observadas), e esse algo então fez com que o nada se inflasse em tudo.
Por nossa tão comum e triste falácia patética, poderíamos ver então na gênese cósmica um cinismo indesculpável. Que grande injustiça é essa que tolera que o Universo, nau maior da grande aventura humana, tenha-se originado do mero acaso? Mesmo à luz da ciência, longe dos confins do mito e da religião, parece absurdo que tudo que existe poderia nunca ter existido.
Talvez, contudo, essa seja só uma impressão minha.

*

Eu recordo (com alguma vaguidão, é verdade) haver lido, anos atrás, um artigo sobre determinada palavra que fora incorporada por engano ao preeminente dicionário de língua inglesa Webster’s: tratava-se, caso não me falhe a memória, de certa abreviação que precedia um outro termo (este “verdadeiro”, corrente) a ser incluso na lista; e ocorreu que aquela foi tomada como o vocábulo em si, e este como a sua definição. O erro permaneceu quase uma década sem ser notado.
Uma anedota de pouca importância, sem dúvida, e até me causa estranheza que eu a tenha guardado na mente por tanto tempo. Não obstante, ainda hoje me pego ruminando, nos momentos de ócio contemplativo (que acabam sendo os momentos mais produtivos da vida), sobre a origem de tais fenômenos: somos sempre levados a crer que a linguagem, como toda forma de expressão humana, é fruto de nosso espírito intencional, o Geist que queria Hegel, superior em todos os aspectos ao que é natural e involuntário; exatamente por isso que existem as autoridades que se dedicam a manter essa pretensa “essência” da língua, das artes e da cultura. Eis, porém, que elementos como a palavra-fantasma do Webster’s vêm a se intrometer no sistema, de maneira inexplicável, por mera coalescência arbitrária de eventos desconexos. Mesmo os termos que contam com etimologia universalmente aceita podem, em última instância, derivar de outros erros, negligências e quaisquer demais desencontros ora perdidos na noite dos tempos; e nem mencionamos aí aqueles cuja origem é simplesmente desconhecida.
Redunda que, no grande esquema das coisas, a vontade pouco vale. Poderíamos estabelecer, por capricho ou por insegurança, que o sujeito que causou (ou permitiu) o surgimento dessas entidades foi seu “criador”; mas que diferença isso faria? Restaria ainda o fato de que a ação não foi proposital.
Perguntaria então o cínico: e daí?

*

O motivo da Chaoskampf (“batalha contra o caos”, em alemão) é frequente em relatos mitológicos, particularmente aqueles de origem indo-europeia. Nele, um herói ou deus, representando a ordem, enfrenta um dragão ou serpente que representa o caos. Muitos paralelos já foram traçados entre tais lendas e o estilo de vida de seus respectivos povos; a necessidade de se compreender os mecanismos da natureza, assim como de se dominar os ímpetos selvagens dos membros da sociedade, foi o que lhes moldou o caráter religioso. Nesse ínterim, o caos se referia ao nível mais básico e profundo da psique humana, reprimido através da prática ritual.
Eu não lembro precisamente por que decidi incluir aqui este segmento (exceto que por um nebuloso senso temático), mas tenho certeza de que havia uma boa razão.

*

A fria realidade (e eu me concedo ser patético, por fim) me consome. Eu tentei, juro que tentei; mas não importa o que eu escreva, não há força em mim que possa coordenar todo o fluxo de informação em uma direção somente. Onde quer que tenha havido uma passagem completamente honesta, reflexo de algum efeito real dos assuntos abordados sobre a alma do escritor, o leitor poderá ler apenas um recurso literário; e, é claro, vice-versa (este mesmo parágrafo sendo quiçá o maior exemplo). Tudo se encaixa hermeticamente como aquelas bonecas russas; a única maneira de quebrar o ciclo seria RÚCULA ANDRÔMEDA CARANGUEJOS DE 641641684268486

Kōan IV

A Epopéia de Gilgamesh, mais conhecido poema épico da antiga Suméria, é amplamente considerado o primeiro grande feito literário da História da humanidade. Seu enredo delineia a jornada ancestral, de influência imensurável, de um herói semi-divino em busca da imortalidade; vários de seus temas e episódios encontram-se replicados em outras renomadas obras, inclusive na Bíblia cristã (o mito do Dilúvio é um exemplo claríssimo). Mais peculiar do que tudo, no entanto, é o fato de que esse poema conta com diversos registros distintos ao longo dos séculos, não havendo uma única versão “oficial” de seu conteúdo.
Atualmente, isso talvez nos soe como um paradoxo: estamos acostumados ao acesso fácil e rápido a muito mais informação do que podemos assimilar, e rastrear as origens exatas de clichês e motivos modernos é tarefa banal; logo, quanto mais influente o elemento em questão, mais fácil lhe precisar a forma primordial. Assim, por mais que os contemporâneos contadores de histórias tenham toda a liberdade e o espaço para se expressar, existe ainda uma linha bastante nítida entre as narrativas canônicas e suas respectivas fan fictions. Um espectro de autoridade, algo inimaginável na aurora da literatura, ainda hoje insiste em permear nossos impulsos criativos.
Foi pensando nisso que eu concebi um pequeno projeto, inicialmente englobando apenas a mim e a alguns amigos próximos, mas que idealmente viria a atingir um largo número de colaboradores; meu intento era o de reacender o princípio primitivo da narração de histórias, e criar algo que escapasse à catalogação implacável dessa Biblioteca de Babel que é a internet. O conceito era bem simples: eu escreveria algo (talvez um romance completo, talvez um conto de umas poucas páginas), enviaria cópias desse algo a um seleto grupo, e então o deletaria completamente; caberia àqueles, então, construir e propagar suas próprias interpretações do trabalho. Como na era pré-escrita, quando as fábulas antediluvianas eram repassadas e reinventadas de forma oral, minha história não possuiria um centro original; como na infância da humanidade, o foco estaria nos sentimentos e reflexões de cada contador, e não em quaisquer questões, por assim dizer, “genealógicas”.
O enredo essencial que eu elaborei, em uma feliz coincidência (posto que se baseava em alguns outros meus escritos mais antigos), apresentava características de mito de criação; nomeei-o provisoriamente Conto da Sacerdotisa Imortal e da Porta da Verdade: nele, a personagem principal, Ashal (a sacerdotisa do título), se vê em um vazio perene, sozinha e amnésica; seu único passatempo em seus infindáveis anos é tentar decifrar os novecentos e noventa e nove segredos que selam a Porta da Verdade, na esperança de que o que há do outro lado a ajude a recuperar sua memória e identidade. Contudo, o último enigma parece-lhe insolúvel, e por milênios ela medita em vão; finalmente, convencida de que lhe falta a inspiração necessária para encontrar a resposta, Ashal decide dar à luz o mundo e tudo que nele habita.
A sacerdotisa passa em seguida mais algumas eras apenas nos observando, acompanhando nossa evolução e nossas explorações e conquistas particulares. A contemplação da existência de outros seres lhe abre novas possibilidades de raciocínio, e ela enfim consegue solucionar o segredo final; a revelação subsequente, entretanto, lhe deixa horrorizada: ocorre que Ashal é em realidade Lasha, divindade maior do Universo e criadora, é claro, da Porta da Verdade. Tomada de um surto de raiva cega, então, a personagem destrói o mundo, restitui os novecentos e noventa e nove enigmas e apaga a própria memória. O conto termina em uma nota pertinente: é impossível (quiçá mesmo à deusa) determinar quantas vezes esses acontecimentos já se sucederam.

*

Esse malogrado esquema, juntamente como as linhas gerais da fantasia que o acompanharia, me surgiu de uma vez só, em uma noite entremeada de delírios de grandeza alimentados por álcool e más recordações. Não me pareceu assim, a princípio; mas as críticas não tardaram a refutar minhas ilusões: a primeira, e mais óbvia, foi direcionada ao egoísmo que eu nem percebia em minhas intenções. Ora, quem havia escrito a maldita história? Que direito teria eu de me crer “neutro”, de pôr minhas pobres ficções no mesmo nível daquelas compostas coletivamente por todo um povo, e esperar que meus amigos aceitassem o papel de meros compiladores? O mundo, talvez, nunca viesse a saber da verdade; mas eles saberiam! Algo há, chegaram a me dizer, de freudiano nessa pretensão.
Daí em diante, todo mínimo pessimismo era já suficiente para humilhar meu idealismo: “como você pode ter certeza de que ninguém vai expor o projeto?”, com certeza não posso; “uma vez publicado na internet, o texto não poderá ser completamente deletado”, de fato, é bem provável que não possa. Enfim, tudo se resumiu em uma sensação terrível de impotência; e, por conseqüência, de tempo terrivelmente desperdiçado.
Hoje, portanto, me abstenho por inteiro de qualquer atividade literária; vez que outra, ainda ouso ensaiar uns rabiscos tortos, mas é só. Passo meus dias, de forma muito mais proveitosa, escutando LPs de jazz suave e entalhando pequenas esculturas de madeira. Aliás, talvez esteja na hora de começar a fumar charutos.

Castelos de Areia

O meu amigo Daniel sempre foi uma pessoa extremamente criativa. Nós nos conhecemos no ensino médio, e já naquela época ele parecia ser um apaixonado pela vida e por todas as oportunidades de ter experiências novas e se expressar e essa coisa toda. Evidentemente, quando eu dei de cara com o corpo dele pendendo de uma forca no meio da sala, foi um choque inexplicável.
Ele era músico. O trabalho dele passava longe de qualquer definição de “tradicional”, e na verdade nem sei se caberia em alguma definição; eu tenho que admitir que demorei a me acostumar com um gosto tão... Especial, vamos dizer. Ele sempre começava criando umas linhas melódicas simples em instrumentos “normais” (por falta de um termo melhor), daí passava uma a uma pro computador e ia distorcendo e mesclando tudo até ficar irreconhecível e completamente surreal. Às vezes, acho que por acaso, isso acabava esbarrando em movimentos e técnicas mais formais, tipo dodecafonismo, microtonalismo etc.; mas eu não acredito que ele tivesse um conhecimento teórico muito extenso, tudo acontecia realmente na base da experimentação e do instinto. O que era importante pra ele era nunca se repetir, nunca se conformar.
Depois do suicídio, como quase sempre acontece, a popularidade da obra dele (que, aliás, nunca tinha sido executada em público; ele mesmo gravava os EPs em casa e distribuía entre uma meia dúzia de conhecidos) explodiu, e ele passou do nível mais profundo do underground ao status de celebridade local; em todo lugar eu encontro gente fofocando sobre a vida dele. Gente que antes nunca tinha ouvido o nome Daniel Janus agora enche a boca pra falar sobre o “artista atormentado” que ele supostamente era; sobre como as composições dele “refletiam uma mente soturna e depressiva” (eu ouvi literalmente isso de uma velha no ônibus uns dias atrás). Sim, no início eu também tinha pensado essas coisas; mas, desde que passei a conviver com o Daniel de perto, eu percebi que ele era muito mais do que um arquétipo. Ele era um ser humano extremamente complexo. Essas pessoas que fingem se importar com o que aconteceu, as rádios e TVs, as gravadoras e todas as empresas tão interessadas em fazer “homenagens” a ele, são só um bando de aproveitadores que só querem lucrar com o luto dos outros.
Agora mesmo, a orquestra da nossa cidade tá se organizando (e se debatendo ridiculamente, é bem provável) pra arranjar algumas músicas dele em estilo mais clássico, pra um concerto-tributo. O nome que eles escolheram não poderia ser mais imbecil: Empty Chambers, título de uma das faixas do último EP, tirado completamente de contexto. Tenho certeza de que o Daniel, se estivesse vivo, iria rolar no chão de tanto rir disso.
Eu sei que, no fim das contas, também não é meu direito criticar a hipocrisia dessa gente; eu era um dos poucos amigos verdadeiros que ele tinha, e nunca notei um sinal de que... Não sei, de que essa tragédia fosse acontecer. Só isso que me incomoda nesse circo todo, na verdade; uma única coisa, que me arranca lágrimas de raiva e não me deixa dormir: se a depressão do Daniel era tão visível pra pessoas que nem sabiam que ele existia; se todo mundo aparentemente se preocupava tanto; enfim, se era tão óbvio que ela ia tirar a própria vida, por que ninguém ofereceu ajuda antes?

The End of the World as We Know it

Onze horas, e até agora nada. A Amanda continua olhando pro céu, sorrindo quieta e pensando em algum mistério profundo que eu com certeza nunca vou entender; os outros já tão todos bêbados, claro. Pra ser sincero, eu tou morto de sono; mas não vou sair do lado dela por nada neste mundo.
Seria ótimo se eu tivesse alguma coisa inteligente ou engraçada pra dizer agora; de repente eu deveria tar bebendo também…

*

O jeito como tudo aconteceu foi completamente absurdo, desde o início. Foi uns meses atrás; depois de um dos nossos ensaios, pra relaxar, eu tava derpando num desses chans da vida. Entre um post sobre wendigos e outro sobre leituras de tarô, eu me deparei com um texto parecia ser um pouco mais interessante do que de costume: por cima, eu deduzi que era uma creepypasta sobre o apocalipse, temperada com uns termos científicos e tal e coisa. A Amanda tava afinando o baixo dela ali por perto, e, como eu sei que ela adora esse tipo de coisa, levei o meu laptop pra nós lermos juntos.
A coisa na verdade era bem mais elaborada do que eu tinha achado (ou pelo menos enganava muito bem): o autor, supostamente um professor de Astronomia de Harvard, supostamente tinha encontrado um método pra prever “erupções de raios gama” e, porque desgraça pouca é bobagem, supostamente previu que uma delas ia acontecer dali a alguns meses e atingir a Terra. Desde então, segundo ele, toda a comunidade científica teria iniciado uma campanha pra desacreditar a descoberta, ele perdido o emprego e o FBI instalado escutas e câmeras pela casa dele. E, lógico, a melhor forma de avisar o mundo sobre essa conspiração era com um post num fórum sobre paranormalidade; ao menos os “experts” nos comentários confirmaram que a teoria fazia todo o sentido.
Essas erupções de raios gama, aliás, são explosões de energia gigantescas que acontecem quando estrelas colapsam em buracos negros. Ou seja, em menos de um ano o nosso planetinha ia basicamente fritar em óleo quente, só que numa escala cósmica.
- Se o mundo vai acabar, a gente tem que comemorar antes! - foi a primeira coisa que a Amanda falou quando terminou de ler; e eu fiquei olhando pra cara dela, tentando desvendar se aquilo era brincadeira ou não.
A Amanda é assim. Ela sempre foi a primeira a se jogar na lama, a primeira a querer pegar os insetos e outros bichos nojentos na mão; a primeira a se cortar e ficar toda roxa, e ainda por cima dar risada. Tudo pra ela é lindo e maravilhoso e divertidíssimo. Dá pra contar nos dedos as vezes em que ela chorou na vida (e nunca na frente de muita gente; eu devo ser uma das poucas pessoas que viu isso acontecer): ela sabe sorrir de alegria, pra acabar com o tédio, pra esconder o medo...
Eu, por outro lado, acho que sempre fui o moleque magrelo, pálido e emo que sou hoje. Talvez seja até por isso que eu admiro tanto a personalidade dela. Sempre admirei… Sempre fui apaixonado por ela. E, como todo bom loser, nunca tive coragem de confessar.
- Claro… - eu respondi, tentando acompanhar a animação dela. - “A última festa da Terra”, imagina que foda. - e até hoje eu não sei se isso foi ironia ou não.
De qualquer forma, foi dito e feito: a organização começou naquele mesmo dia. A princípio, o programa era fazer um showzinho pra uns amigos na garagem do Marco (nosso baterista); mas ele ia viajar com a família nas férias (ou então só achou a ideia muito estúpida e usou isso como desculpa), então a gente teve procurar outro lugar e tal. Não que fosse fazer muita diferença: a maior parte das pessoas que a gente convidava ou ignorava ou achava que era zoeira; uns poucos confirmaram presença, mas não contribuíram com nada e só se interessaram porque ia ter bebida. Só a Amanda tava disposta a fazer a festa acontecer; e, por tabela, eu também.
A gente prometeu um pro outro, ainda na primeira semana, agir como se a previsão do cara fosse uma coisa certa; como se não existisse dúvida de que o mundo ia acabar em pouco tempo e tudo tinha que ficar definido pra ontem. Decisão dela, mas eu concordei de cara. 
- Chorar e se desesperar é opcional. - lembro que ela disse.
Tudo que a gente conseguia pensar de louco, idiota e infantil (elefantes treinados, paintball, lasanha de algodão doce) ia pra “lista de atividades”; e 90% das vezes tinha que ser cortado de volta, por “questões orçamentais” ou alguma outra desculpa. Tudo super sistemático, apesar de a gente saber que não tinha dinheiro ou recursos pra quase nada. Esse é o problema das promessas, sabe? Se as pessoas não cumprem com a palavra, não dá pra confiar nelas; mas, se elas cumprem, não dá pra saber se foi por vontade própria ou só por obrigação. Quer dizer, a Amanda tava sempre pronta pra fazer o que fosse preciso, mas como eu vou saber o que ela pensava de verdade?
E eu nunca parei pra pensar no que eu pensava, claro; medo de que um lapso de cinismo acabasse estragando aquela nossa coisa juntos. Medo, medo, medo…

*

Agora são onze horas, e eu não tenho nada melhor pra fazer do que só ficar sentado aqui no telhado de braços cruzados. Pra Amanda, nada do que eu possa dizer neste momento tem como ser mais interessante do que as estrelas; eu não tenho nem coragem nem vontade de interromper a alegria dela.
Devagar, sem fazer nenhum som, ela põe um braço por cima do meu ombro; deita a cabeça no meu peito sem parar de olhar pro céu. Eu tento reagir, fazer alguma coisa, mas meu corpo não obedece. Talvez seja o medo de que o mundo realmente acabe… Ou de que realmente não acabe. Só consigo fechar os olhos. A lua tá tão grande e bonita esta noite… 

Breve Compêndio de Pseudeisegeses II - Cataratas da Alma

Algumas pessoas temem que a existência de um Deus, ser onisciente, implicaria necessariamente na inexistência do livre-arbítrio: ora, se o futuro é de alguma forma cognoscível, então é impossível alterá-lo; nossas vidas já estão definidas antes que as vivamos. Contudo, um pensamento ainda mais inquietante é que esse raciocínio pode se manter mesmo sem a interferência de uma entidade suprema.
Viver é o ato de fazer escolhas: antes de nascermos, já muitas delas foram feitas sem nosso consentimento; as condições sob as quais viemos ao mundo delimitam consideravelmente os caminhos que podemos tomar. Cada escolha nossa afunila ainda mais o leque de opções. É como descer um rio que se desdobra em um largo delta: a princípio, existe uma miríade de fozes pelas quais se pode chegar ao mar; entretanto, quanto mais se navega, menos e menos saídas restam. E não há como se remar de volta contra a corrente.
Em algum ponto ao longo do caminho, o caminho deve-se tornar previsível (mesmo que nós não o prevejamos); em algum momento, o viver se torna um não-viver, mas apenas um deslizar vida abaixo: apenas as consequências de escolhas pretéritas, amontoando-se umas sobre as outras em um ritmo exponencial. Paradoxalmente, quanto mais se vive, menos se vive. ​
E aí se encaixam todos os instantes de dúvida, todas as tentativas de se mudar de rumo ou se portar de forma inesperada: o desconsolo surge simplesmente em função de alguma decisão que foi ou não tomada no passado, e a “mudança” já estava então determinada. A ação mais ilógica e desesperada tem sempre uma motivação, mesmo que essa seja a de se agir desesperada e ilogicamente.
Isso talvez explique por que algumas pessoas dizem que a vida é feita de “ciclos”: vicia-se, arrepende-se, torna-se a recair; a necessidade de se obter mais dinheiro, a qualquer custo, vem da obtenção de muito dinheiro em primeiro lugar, e a eventual caridade é só um desencargo de consciência; o álcool pune o sexo que aquieta os traumas que se embalam em medos mais velhos que nós.
Talvez, também, isso explique por que alguns se encarregam de registrar o óbvio, como se isso de alguma forma os pudesse remover do ciclo; o que, é claro, é ridículo, mas inevitável.
        

Pragmatismo Surrealista

A lua vagava alto no céu sobre a branca floresta de Loldoreth naquela fria noite de inverno. A comitiva da princesa Gwendolyn, imbuída do senso de coragem e responsabilidade que é intrínseco aos protagonistas de romances de fantasia, seguia obstinada em sua missão sagrada para salvar o reino; naquela noite, entretanto, uma outra preocupação os acometia: Ulberth, o sábio ancião que vinha até aí servindo como mentor da jovem princesa, fora ferido em batalha e seu fim se acercava. O grupo se apressava em direção à vila mais próxima, na esperança de poder ainda resgatá-lo das garras da morte.
- É inútil, criança. - sussurrou Ulberth, em um sorriso resignado, enquanto o orc Grumb o carregava nas costas. - Minha hora chegou.
- Não! - respondeu a princesa, muito à frente de seus companheiros, andando a passos largos à procura de quaisquer indícios de presença humana na escuridão entre as árvores. - Estamos perto de Lorna, e de Muir-cael... Os camponeses vão nos ajudar...
- Você não pode se desviar demais do caminho para a Passagem. Grumb, me ponha no chão.
O orc aquiesceu, e a comitiva interrompeu sua marcha.
- Ulberth... - murmurou Gwendolyn, relutante em desistir de salvar seu velho mestre.
- Eu preciso partir, minha menina. Minha morte deverá demarcar o fim de sua inocência, e permanecer em seu coração como um incentivo ao seu desenvolvimento como líder...
A princesa sentiu seus olhos encherem-se de lágrimas, certa de que aquele bocado de astúcia narrativa representava em verdade um sinal definitivo de que vida se esvaía do corpo do ancião.
- Ouçam bem, vocês todos. - continuou ele, entre tosses e gemidos de dor. - O guardião da Passagem é uma Esfinge, um ser que se diz onisciente... Ela exigirá que vocês lhe façam uma única pergunta; caso não saiba a resposta, ou responda de forma errada, ela lhes dará passagem.
- E se ela responder certo? - perguntou Myrinox, a adorável abominação híbrida de coelho, pônei e porco-espinho que fornecia o alívio cômico à jornada.
- Ela os devorará, a todos.
Um grande pavor então tomou conta da comitiva, e uma discussão desordenada principiou.
- Escutem, escutem... - insistiu Ulberth, agarrando-se aos últimos fiapos de controle que ainda mantinha sobre sua mente. - Há um detalhe: o monstro pensa saber tudo, e isso em grande medida é verdade...
- Nós vamos morrer! - choramingou Myrinox. - Isso é suicídio!
- ... Mas ela não tem como saber o que não sabe que não sabe.
- Isso nem ao menos faz sentido! Nós vamos morrer!
- Princesa - o velho tornou-se para Gwendolyn, ignorando o tumulto ao seu redor; falou no tom mais formal e nobre que conseguiu conjurar com a garganta transbordando de sangue. -, isto talvez a auxilie na resolução do enigma.
Dito isso, puxou de dentro de sua túnica, com mãos trêmulas, uma correntinha de metal vulgar; e uma pequena haste cilíndrica, também metálica, atrelada àquela por uma argola em uma de suas extremidades e portando dois dentes retangulares na oposta.
- Uma chave? - perguntou a princesa, perplexa. - Eu não entendo como isto pode nos ajudar, meu amigo... O que ela abre?
Os olhos de Ulberth de repente se arregalaram, e ele gargalhou com todas as forças que ainda lhe restavam.
- Nada! - respondeu, simplesmente; e então morreu, em uma onda agonizante de lamúrias guturais e risos insanos, sobre o chão branco de Loldoreth.  

*

O grupo agora se aproximava da Passagem entre os picos de Ermenekh e Kerkhumehna, único caminho viável entre os dois lados da cordilheira de Ekh. O enterro de Ulberth fora breve, e nenhum dos viajantes parecia disposto a discutir sentimentos ou debater a validade de arquétipos mitológicos. Gwendolyn decidira que, sem os preciosos conselhos do ancião a guiá-los, mais dedicação e pressa ainda eram necessárias em sua jornada; os outros dois não ousaram ir contra sua vontade, por atemorizados que estivessem.
O desfiladeiro não era vigiado por sentinelas humanas, e o último vilarejo havia sido deixado para trás milhas antes. O ambiente que os circundava era uma simples estrada rochosa, vazia e soturna, que seguia inequivocamente em direção ao monstro que temiam em silêncio. Ninguém se atrevia a dizer palavra.
Foi apenas quando o sol poente lançava sombras longas adiante de seus passos que uma voz trovejante os fez congelar em seu percurso.  
- Bem-vindos, forasteiros. - pronunciou-se a Esfinge, e se arrojou de um penhasco baixo à esquerda, onde se havia ocultado nas trevas, para ir ao encontro da comitiva; sua aparência era a de um portentoso leão, mas seu rosto era de homem. Como nem a princesa nem seu séquito se atrevessem a responder, continuou. - Eu imagino que, havendo gasto seu tempo ao vir aqui, vocês compreendam o destino que lhes aguarda.
- Sim. - Gwendolyn enfim conseguiu falar. - Estamos aqui para vencer seu desafio, e seguir a Passagem até o outro lado da cordilheira.
- Menina tola - a criatura riu-se. -, ninguém jamais me derrotou.
- Eu serei a primeira.
- Pois então pergunte. Pergunte qualquer coisa; eu sei tudo!
Nesse momento, lembranças da morte de Ulberth voltaram à mente da princesa: ela enxergou a corrente, que agora trazia ao pescoço, envolta em uma névoa cor de sépia; ouviu o ancião pronunciar lentamente a enigmática frase “ela não tem como saber o que não sabe que não sabe”, entrelaçada ao ruído obsceno de sua gargalhada final. Aquilo precisava fazer algum sentido.
- Gwen... - balbuciou Myrinox, tomado de pavor, diante do silêncio da jovem. - Pergunta alguma coisa...
Em um movimento súbito, quase um espasmo, Gwendolyn então tomou o objeto de seu pensamento nas mãos, e o ergueu de forma calma e concentrada à frente de si.
- O que é isto? - perguntou, apenas.
Grumb ajoelhou-se ao chão e se entregou ao desespero; Myrinox sentiu um grito lancinante lhe subir à garganta, impedido de fluir por mero horror. A própria Esfinge teve de conter um riso de surpresa, e se permitiu alguns instantes para analisar a pergunta de forma mais profunda.
- É um truque. - respondeu, então. - Você deve definir se a pergunta se refere a esse adereço como um todo, ou apenas ao que está preso à corrente.
A princesa suspirou pesarosamente, e ainda ficou em silêncio por mais um segundo.
- O que está preso... - adicionou, em um sussurro.
O monstro gargalhou, deliciado, em antecipação à refeição generosa que imaginava ter em seguida.
- É uma chave, velha e enferrujada. Agora, quem quer ser devorado...
- Só um segundo. - Gwendolyn o interrompeu, quando os outros dois já se preparavam para fugir de volta tão rápido quanto suas pernas permitissem. - Você tem certeza de sua resposta?
- Claro que sim. É uma chave. O que mais seria?
- Se isto é uma chave, o que é que ela abre?
A Esfinge arregalou os olhos. Vasculhando os confins de sua mente milenar, percebeu que, de fato, nenhum dos incontáveis baús, celas, jaulas ou cadeados contidos em sua memória, nenhum deles era aberto por aquele particular objeto.
- Mas...
- Mas - a princesa replicou, um sorriso confiante em seus lábios. - a definição de uma chave é a de um utensílio cuja finalidade precisa é abrir coisas. Você errou, Esfinge; a resposta correta seria “um objeto metálico confeccionado no formato de uma chave”.
Embasbacada, a criatura emitiu um urro amedrontador, e sentiu seu corpo derreter como a neve sob o sol da primavera.

*

- Gwen esperta! - exclamou Grumb, levando a princesa nas costas pelo caminho descendente na manhã seguinte.
- Obrigada, Grumb. - Gwendolyn sorria, aliviada. - Mas eu acho que isso era o que Ulberth planejava desde o início...
- Porque ele confiava em você, princesa. - adicionou Myrinox, enquanto saltitava bobamente ao redor. - Todos nós confiamos.
- Eu sei, Myri.
Apesar de haverem tido as rochas do desfiladeiro como cama, a noite anterior fora a melhor que dormiram em semanas; e, apesar de o céu estar agora cinzento com sinais de uma tempestade iminente, a comitiva não poderia estar mais entusiasmada.
- Sabe o que é engraçado? - perguntou o pequeno mascote, de repente, após alguns minutos de absoluto silêncio. - Foi essa “pseudo-chave” que nos permitiu passar por aquela coisa; tecnicamente, foi ela que abriu o caminho para nós. Isso não significaria que...
Antes que ele pudesse terminar a frase, um trovão ressoou nos céus com um ruído vagamente semelhante à voz da Esfinge; os três então pararam, se entreolharam por uma fração de segundo e se puseram a descer o restante da estrada o mais rápido que conseguiram.