A obra do
escritor italiano Vittorio Scalchi, assim como sua singular relação com a
mídia, foi alicerçada ao longo de seus curtos anos de existência sobre pequenas
e vagamente interdependentes coincidências, a fonte maior de sua inspiração; de
forma que é raro entre seus biógrafos aquele que se recusa a utilizar a palavra
“aleatória” para classificá-la. Entretanto, como também já foi comentado, sua
vida como um todo fez tanto sentido dentro de seu próprio contexto
que, talvez paradoxalmente, é como se ele mesmo houvesse lhe escrito
o roteiro.
Nasceu em
Turim em 1978, quando o milagre econômico italiano morria e a cidade via sua
população cair a cada dia, e imagens de decadência urbana moldaram sua
infância. Teve vários empregos antes de finalmente encontrar a literatura:
guarda de museu, jornalista esportivo, vendedor de imóveis. Seu primeiro livro
veio apenas em 2017, depois da descoberta de um tumor cerebral
(oligodendroglioma) que o deixou, nas palavras do próprio, “chocado, mas
ao mesmo tempo desejoso de fazer algo real e duradouro de minha vida”.
Quello che mi Piace di Più dell’Ironia (“aquilo de que mais gosto na
ironia”) surgiu como um conjunto de crônicas sortidas, baseadas cada uma em uma
diferente memória do escritor; entre elas, a história homônima reconta a
origem do inusitado título: uma discussão online na qual um anônimo
tomou de forma literal um comentário irônico de Scalchi, que então
replicou com “quello che mi piace di più dell’ironia è che tutti la
capiscono” (“aquilo de que mais gosto na ironia é que todos a compreendem”).
Segundo ele, a ideia para o livro veio de sua reflexão sobre a obliquidade da
comunicação humana: o modo como uma resposta que superficialmente
caracterizaria um non sequitur não obstante é capaz de transmitir
significado.
A
simplicidade quase ingênua com que lidara com o tema, tão instigante quanto
elusiva, caiu como uma luva na zona cinza entre críticos e leigos. Era possível
que houvesse naquelas palavras uma profundidade imprevista, e impossível
comprovar que esta fosse acidental. Os anos seguintes, portanto, o
italiano os viveria tentando lidar com uma fama tão inesperada quanto
repentina; assim como construindo meticulosamente uma persona que se
lhe coubesse. Quando leitores lhe pediam a confirmação de tal ou tal teoria
(das muitas que foram concebidas) sobre possíveis conexões entre seus escritos,
arranjando-os em tramas com camadas e mais camadas de conotações, Vittorio
jamais a negava; pelo contrário: oferecia um provérbio, o trecho de um
livro (seu ou de outros), uma charada qualquer que seus seguidores pudessem
encaixar em labirintos ainda mais bizantinos. Bastava uma sugestão; logo os
colunistas de jornal já não hesitavam em chamá-lo “gênio”.
O escritor,
aliás, veio a assumir o hábito de responder sempre de maneira críptica e
indireta a toda e qualquer pergunta, por trivial que fosse; em uma entrevista à
RAI em 2019, por exemplo, fez questão de se pronunciar apenas mediante versos
de canções do músico britânico David Bowie, de algum modo mantendo a seriedade diante dos
olhares pasmos da plateia. Passou todo o auge de seu sucesso alimentando essa
sua ópera dilatada, o monstro de sua própria criação, e dela subsistindo;
teve, evidentemente, de submeter todo seu trabalho subsequente ao rótulo de
mero apêndice ao primeiro e principal. Sua obra, tanto quanto se pode
deduzir, agora se construía sozinha; e ele já não era mais do que um dos
personagens, fadado a cumprir seu papel ou então quebrar a suspensão de
descrença do mundo.
Em algum
ponto, todavia, um limite foi ultrapassado. Em algum ponto, a arte do gênio
passou de magistral a cotidiana; de cotidiana a enfadonha; de enfadonha a
insuportável. Mas já não havia remédio, para nenhuma de suas
doenças. Hoje, após sua morte, familiares e amigos já declararam que seu
comportamento peculiar não se restringia apenas às suas aparições públicas: ao
menos no final da vida, Scalchi tornou-se incapaz de se comunicar de outra
maneira; seus fãs já não mais acompanhavam as teias de referências de seu
raciocínio, e desconfiavam ter sido ludibriados desde o início. Seus últimos
dias foram isolados e improdutivos; talvez, no leito hospitalar de sua
mansão, ele ainda jogasse, solitário, seu glasperlenspiel
particular, caso fosse ainda capaz de conversar consigo mesmo.
Muitos
boatos e anedotas existem sobre o momento de sua morte, aos quarenta e cinco
anos; o que apenas reflete o fato de que sua figura já se havia então
transformado em algo próximo de um ser folclórico. Um tal rumor, dos mais
repetidos (contando inclusive com várias versões distintas), o põe, os parentes
todos a seu redor, capaz apenas de repetir a palavra “tijolo” enquanto uma
febre terrível o consome; um sobrinho, andando nervosamente de um lado para o
outro, bate o pé contra um móvel e exclama “merda!”; Vittorio então
aponta subitamente para o rapaz, grita “alicate!” e cai morto. Por
mórbido que seja, inevitável pensar que o homem, se estivesse vivo, teria
apreciado a ironia.
O sobrinho
mencionado na piada, por sinal, hoje é, ele também, escritor. Giovanni Scalchi,
de vinte sete anos, publicou ano passado seu primeiro livro: La mia Vita
nella Vita (“minha vida na vida”), um romance neo-noir em
que detalhes autobiográficos se misturam a influências steampunk, foi bem
recebido pela crítica e está a um contrato de distância de ser filmado em
Hollywood; e, é claro, lhe rendeu mais do que umas poucas
comparações com a obra de seu tio. Quando questionado sobre a validade dessas opiniões, o jovem vinha já
com a réplica pronta na língua, em inglês e em tom meticulosamente ensaiado: “here
I am, not quite dying, my body left to rot in a hollow tree; its branches
throwing shadows on the gallows for me; and the next day, and the next, and
another day”.