A Epopéia de
Gilgamesh, mais conhecido poema épico da antiga Suméria, é amplamente
considerado o primeiro grande feito literário da História da humanidade. Seu
enredo delineia a jornada ancestral, de influência imensurável, de um herói
semi-divino em busca da imortalidade; vários de seus temas e episódios
encontram-se replicados em outras renomadas obras, inclusive na Bíblia cristã
(o mito do Dilúvio é um exemplo claríssimo). Mais peculiar do que tudo, no
entanto, é o fato de que esse poema conta com diversos registros distintos ao
longo dos séculos, não havendo uma única versão “oficial” de seu conteúdo.
Atualmente,
isso talvez nos soe como um paradoxo: estamos acostumados ao acesso fácil e
rápido a muito mais informação do que podemos assimilar, e rastrear as origens
exatas de clichês e motivos modernos é tarefa banal; logo, quanto mais
influente o elemento em questão, mais fácil lhe precisar a
forma primordial. Assim, por mais que os contemporâneos contadores de histórias
tenham toda a liberdade e o espaço para se expressar, existe ainda uma linha
bastante nítida entre as narrativas canônicas e suas respectivas fan
fictions. Um espectro de autoridade, algo inimaginável na aurora da
literatura, ainda hoje insiste em permear nossos impulsos criativos.
Foi pensando
nisso que eu concebi um pequeno projeto, inicialmente englobando apenas a mim e
a alguns amigos próximos, mas que idealmente viria a atingir um largo número de
colaboradores; meu intento era o de reacender o princípio primitivo da narração
de histórias, e criar algo que escapasse à catalogação implacável dessa
Biblioteca de Babel que é a internet. O conceito era bem simples: eu escreveria
algo (talvez um romance completo, talvez um conto de umas poucas
páginas), enviaria cópias desse algo a um seleto grupo, e então o
deletaria completamente; caberia àqueles, então, construir e propagar suas
próprias interpretações do trabalho. Como na era pré-escrita, quando as fábulas
antediluvianas eram repassadas e reinventadas de forma oral, minha história não
possuiria um centro original; como na infância da humanidade, o foco
estaria nos sentimentos e reflexões de cada contador, e não em quaisquer
questões, por assim dizer, “genealógicas”.
O enredo
essencial que eu elaborei, em uma feliz coincidência (posto que se
baseava em alguns outros meus escritos mais antigos), apresentava
características de mito de criação; nomeei-o provisoriamente Conto da
Sacerdotisa Imortal e da Porta da Verdade: nele, a personagem principal,
Ashal (a sacerdotisa do título), se vê em um vazio perene, sozinha e amnésica;
seu único passatempo em seus infindáveis anos é tentar decifrar os novecentos e
noventa e nove segredos que selam a Porta da Verdade, na esperança de que o que
há do outro lado a ajude a recuperar sua memória e identidade. Contudo, o último
enigma parece-lhe insolúvel, e por milênios ela medita em vão; finalmente,
convencida de que lhe falta a inspiração necessária para encontrar a resposta,
Ashal decide dar à luz o mundo e tudo que nele habita.
A sacerdotisa
passa em seguida mais algumas eras apenas nos observando, acompanhando nossa
evolução e nossas explorações e conquistas particulares. A contemplação da
existência de outros seres lhe abre novas possibilidades de raciocínio, e ela
enfim consegue solucionar o segredo final; a revelação subsequente, entretanto,
lhe deixa horrorizada: ocorre que Ashal é em realidade Lasha, divindade maior do
Universo e criadora, é claro, da Porta da Verdade. Tomada de um surto
de raiva cega, então, a personagem destrói o mundo, restitui os novecentos e
noventa e nove enigmas e apaga a própria memória. O conto termina em uma nota
pertinente: é impossível (quiçá mesmo à deusa) determinar quantas vezes
esses acontecimentos já se sucederam.
*
Esse
malogrado esquema, juntamente como as linhas gerais da fantasia que o
acompanharia, me surgiu de uma vez só, em uma noite entremeada de delírios de
grandeza alimentados por álcool e más recordações. Não me pareceu assim, a
princípio; mas as críticas não tardaram a refutar minhas ilusões: a primeira, e
mais óbvia, foi direcionada ao egoísmo que eu nem percebia em minhas intenções.
Ora, quem havia escrito a maldita história? Que direito teria eu de me crer
“neutro”, de pôr minhas pobres ficções no mesmo nível daquelas compostas
coletivamente por todo um povo, e esperar que meus amigos aceitassem o papel de
meros compiladores? O mundo, talvez, nunca viesse a saber da verdade; mas eles saberiam! Algo há, chegaram a me
dizer, de freudiano nessa pretensão.
Daí em
diante, todo mínimo pessimismo era já suficiente para humilhar meu idealismo:
“como você pode ter certeza de que ninguém vai expor o projeto?”, com certeza
não posso; “uma vez publicado na internet, o texto não poderá ser completamente
deletado”, de fato, é bem provável que não possa. Enfim, tudo se resumiu em uma
sensação terrível de impotência; e, por conseqüência, de tempo terrivelmente
desperdiçado.
Hoje,
portanto, me abstenho por inteiro de qualquer atividade literária; vez que
outra, ainda ouso ensaiar uns rabiscos tortos, mas é só. Passo meus dias, de
forma muito mais proveitosa, escutando LPs de jazz suave e entalhando pequenas
esculturas de madeira. Aliás, talvez esteja na hora de começar a fumar
charutos.