Crônicas do Fim do Mundo IX - Vida em Cápsulas

Rio de Janeiro, litoral da América do Sul. Uma das poucas aglomerações urbanas subsistentes na face da Terra, sua sobrevida garantida por um seleto grupo de nativos e estrangeiros que não desistiriam tão facilmente do calor dos trópicos; seus escritórios, cada vez mais distantes do chão, cada vez mais dependentes de lâmpadas fluorescentes e aparelhos de ar condicionado para manter uma aparência de naturalidade do lado de dentro de grossas paredes de chumbo, fervilham organizadamente como gigantescas e verticais fazendas de formigas. O executivo nervoso, contudo, se mantém gloriosamente alheio a tudo isso: poucos minutos antes de deixar sua sala, não consegue tirar os olhos do relógio na tela de seu computador.
 Sua mulher não parava de ligar desde que ele avisara, por mensagem de celular, que se atrasaria. Parece-lhe bem claro que ela pensa estar sendo traída. Melhor assim, ele repete a si próprio, como um mantra quase desprovido de significado, conforme se põe enfim a andar os poucos passos até o elevador. Tenta em vão agir normalmente, tomado de uma ansiedade instintiva; seus colegas, entretanto, não gastam mais que um segundo de seu tempo o observando.
 O guia o espera no estacionamento subterrâneo, já devidamente paramentado; sua expressão varia entre uma cordial desconfiança e uma concentração relaxada, próxima ao tédio. Sem trocar uma palavra, os dois embarcam no carro e partem. O executivo permite que o outro dirija, enquanto ele próprio troca de roupa no banco de trás; sente-se estranhamente mais tranquilo agora (talvez por saber que sua decisão não tem mais volta), mas ainda tem alguma dificuldade em vestir o macacão antirradiação.
 O veículo segue por alguns quilômetros pela avenida à beira-mar, indiscernível de outros modelos luxuosos que agora fazem seu caminho de volta para casa. Diferentemente dos outros, todavia, este logo faz uma curva brusca em direção ao norte, e continua por uma rua um tanto menos iluminada.
 O executivo suspira dentro da máscara; conforme percebe o terreno se elevando e se tornando mais acidentado, e seu destino se aproximando cada vez mais, sua consciência da situação que está vivendo e dos riscos que está tomando se manifesta na forma de um suor frio escorrendo de sua testa. Não era isso que você queria? Pela primeira vez em muito tempo, sente seu coração batendo dentro do peito com vontade, como se realmente tivesse um motivo.
 O guia estaciona ao lado de uma longa escadaria de concreto; os últimos postes de luz ainda em funcionamento foram deixados para trás vários minutos atrás, e o que se vê do caminho até lá em cima se deve aos faróis do carro. Desligados estes, o visitante passa a depender inteiramente da experiência (e da boa vontade) do outro para encontrar seu alvo. A certo ponto da subida, já consegue ouvir a música emanando do lugar, o que apazigua algo de suas preocupações; perto do topo, vários pontos luminosos se revelam à distância.
 Os últimos metros do trajeto se desenrolam como um sonho labiríntico, virando, subindo e descendo sem no entanto parecer mudar de direção; apenas seu ponto final permanece lá, estático, esperando sem pressa por quem quer que o encontre. Quanto mais se aproximam, mais os dois se deparam com locais em seu estado natural, em sua maioria crianças curiosas, andando despreocupadamente pela rua, usando roupas comuns; e os olhares trocados entre os grupos, nativos e alienígenas, são tão amigáveis quanto insólitos.
 - É aqui. - disse o guia, enfim, parando ainda a alguns passos de distância; mas não seria necessário: o local, aberto sob o céu noturno, fervendo na luz de dezenas de velas e música de dezenas de vozes, é inequivocamente aquilo que procuravam. A percepção definitiva atinge o visitante na forma de um aroma que seu cérebro não é capaz de associar nem ao mais exótico armazenado em sua memória.
 Então, quando a perplexidade onírica finalmente se dissipa, ele se vê alvo da atenção de todos ali; a música cessou, e os casais que segundos antes dançavam freneticamente agora o observam com expressões que ele não consegue desvendar. Sente-se desconfortável; tenta, ao se perceber sozinho, lembrar-se das instruções que o guia lhe passara. O tempo passa devagar. A escolha ainda pesa em sua mente, o risco que está prestes a tomar, por mais que já tenha pensado exaustivamente a respeito nos últimos dias; novamente sente o coração explodindo, cada vez mais rápido quanto mais sua indecisão o detém. A tensão só é aliviada quando ele abre o zíper do macacão, em um impulso, para revelar o escudo do Flamengo orgulhosamente adornando seu peito. Na fração de um segundo, a música recomeça; e o visitante, removendo então a máscara do rosto, é recebido como o filho pródigo que retorna a casa.
 Por horas que passam como segundos, todo o medo e toda a hesitação desaparecem de sua mente: tomado de uma euforia, um libertar repentino de impulsos reprimidos, ele dança, canta, batuca na mesa como se soubesse o que está fazendo; bebe mais cerveja do que já bebera a vida inteira, e o aroma da feijoada, depois de três pratos, já não lhe é mais minimamente exótico. Ao seu redor, uma miríade de línguas se entrelaça em uma estranha harmonia: as músicas em português se alternam com cânticos em iorubá, enquanto alguns grupos falam entre si em idiomas escandinavos; todos, contudo, cantarolam em uníssono, conforme suas gargantas permitem. Todos, sem exceção, como irmãos.
 Mas, quando a lua já vai alta no céu, o homem se vê visitante novamente. Em um instante de frio no meio da festa, a visão do guia à janela o recorda do perigo de sua pequena aventura. É, afinal, o executivo de um grande escritório do Rio de Janeiro; tem esposa e filhos, uma casa e um carro; tem uma porção de coisas. Sabe que o que aconteceu ali ele não poderá jamais comentar com ninguém, e muito menos vivenciar outra vez; e forçosamente se convence de que a mera lembrança será suficiente para lhe garantir um bom sono à noite. Tomando a máscara nas mãos, então, dirige-se ao cidadão simpático que empunha um cavaquinho:
 - Tô indo, chefe. A nêga fica puta se eu chego tarde do pagode.
 - Tá sussa, parceiro. - o homem, sorriso largo no rosto, alegremente finge acreditar. - Sexta que vem tamo aí de novo.