Rio de Janeiro, litoral da América do Sul. Uma das poucas
aglomerações urbanas subsistentes na face da Terra, sua sobrevida garantida
por um seleto grupo de nativos e estrangeiros que não desistiriam tão
facilmente do calor dos trópicos; seus escritórios, cada vez mais distantes do
chão, cada vez mais dependentes de lâmpadas fluorescentes e aparelhos de ar
condicionado para manter uma aparência de naturalidade do lado de dentro de
grossas paredes de chumbo, fervilham organizadamente como gigantescas e verticais
fazendas de formigas. O executivo nervoso, contudo, se mantém gloriosamente
alheio a tudo isso: poucos minutos antes de deixar sua sala, não consegue tirar
os olhos do relógio na tela de seu computador.
Sua mulher não parava de ligar desde que ele avisara,
por mensagem de celular, que se atrasaria. Parece-lhe bem claro que ela pensa
estar sendo traída. Melhor assim, ele repete a si próprio, como um mantra
quase desprovido de significado, conforme se põe enfim a andar os poucos
passos até o elevador. Tenta em vão agir normalmente, tomado de uma ansiedade
instintiva; seus colegas, entretanto, não gastam mais que um segundo de seu
tempo o observando.
O guia o espera no estacionamento subterrâneo, já
devidamente paramentado; sua expressão varia entre uma cordial desconfiança e
uma concentração relaxada, próxima ao tédio. Sem trocar uma palavra, os
dois embarcam no carro e partem. O executivo permite que o outro dirija,
enquanto ele próprio troca de roupa no banco de trás; sente-se estranhamente
mais tranquilo agora (talvez por saber que sua decisão não tem mais volta), mas
ainda tem alguma dificuldade em vestir o macacão antirradiação.
O veículo segue por alguns quilômetros pela avenida à
beira-mar, indiscernível de outros modelos luxuosos que agora fazem seu
caminho de volta para casa. Diferentemente dos outros, todavia, este logo faz
uma curva brusca em direção ao norte, e continua por uma rua um tanto menos
iluminada.
O executivo suspira dentro da máscara; conforme
percebe o terreno se elevando e se tornando mais acidentado, e seu destino se
aproximando cada vez mais, sua consciência da situação que está vivendo e dos
riscos que está tomando se manifesta na forma de um suor frio escorrendo de sua
testa. Não era isso que você queria? Pela primeira vez em muito tempo,
sente seu coração batendo dentro do peito com vontade, como se realmente
tivesse um motivo.
O guia estaciona ao lado de uma longa escadaria de
concreto; os últimos postes de luz ainda em funcionamento foram deixados para
trás vários minutos atrás, e o que se vê do caminho até lá em cima se deve aos
faróis do carro. Desligados estes, o visitante passa a depender inteiramente da
experiência (e da boa vontade) do outro para encontrar seu alvo. A certo ponto
da subida, já consegue ouvir a música emanando do lugar, o que apazigua algo de
suas preocupações; perto do topo, vários pontos luminosos se revelam à
distância.
Os últimos metros do trajeto se desenrolam como um
sonho labiríntico, virando, subindo e descendo sem no entanto parecer mudar de
direção; apenas seu ponto final permanece lá, estático, esperando sem pressa
por quem quer que o encontre. Quanto mais se aproximam, mais os dois se deparam
com locais em seu estado natural, em sua maioria crianças curiosas, andando
despreocupadamente pela rua, usando roupas comuns; e os olhares trocados entre
os grupos, nativos e alienígenas, são tão amigáveis quanto insólitos.
- É aqui. - disse o guia, enfim, parando ainda a
alguns passos de distância; mas não seria necessário: o local, aberto sob o céu
noturno, fervendo na luz de dezenas de velas e música de dezenas de vozes, é
inequivocamente aquilo que procuravam. A percepção definitiva atinge o
visitante na forma de um aroma que seu cérebro não é capaz de associar nem ao
mais exótico armazenado em sua memória.
Então, quando a perplexidade onírica finalmente se
dissipa, ele se vê alvo da atenção de todos ali; a música cessou, e os casais
que segundos antes dançavam freneticamente agora o observam com expressões que
ele não consegue desvendar. Sente-se desconfortável; tenta, ao se perceber
sozinho, lembrar-se das instruções que o guia lhe passara. O tempo passa
devagar. A escolha ainda pesa em sua mente, o risco que está prestes a
tomar, por mais que já tenha pensado exaustivamente a respeito nos últimos
dias; novamente sente o coração explodindo, cada vez mais rápido quanto mais
sua indecisão o detém. A tensão só é aliviada quando ele abre o zíper do
macacão, em um impulso, para revelar o escudo do Flamengo orgulhosamente
adornando seu peito. Na fração de um segundo, a música recomeça; e o visitante,
removendo então a máscara do rosto, é recebido como o filho
pródigo que retorna a casa.
Por horas que passam como segundos, todo o medo e toda
a hesitação desaparecem de sua mente: tomado de uma euforia, um libertar
repentino de impulsos reprimidos, ele dança, canta, batuca na mesa como se
soubesse o que está fazendo; bebe mais cerveja do que já bebera a vida inteira,
e o aroma da feijoada, depois de três pratos, já não lhe é mais minimamente
exótico. Ao seu redor, uma miríade de línguas se entrelaça em uma estranha
harmonia: as músicas em português se alternam com cânticos em iorubá, enquanto
alguns grupos falam entre si em idiomas escandinavos; todos, contudo,
cantarolam em uníssono, conforme suas gargantas permitem. Todos, sem exceção,
como irmãos.
Mas, quando a lua já vai alta no céu, o homem se vê
visitante novamente. Em um instante de frio no meio da festa, a visão do guia à
janela o recorda do perigo de sua pequena aventura. É, afinal, o executivo de
um grande escritório do Rio de Janeiro; tem esposa e filhos, uma casa e um
carro; tem uma porção de coisas. Sabe que o que aconteceu ali ele não poderá
jamais comentar com ninguém, e muito menos vivenciar outra vez; e
forçosamente se convence de que a mera lembrança será suficiente para lhe
garantir um bom sono à noite. Tomando a máscara nas mãos, então, dirige-se ao
cidadão simpático que empunha um cavaquinho:
- Tô indo, chefe. A nêga fica puta se eu chego tarde
do pagode.
- Tá sussa, parceiro. - o homem, sorriso largo no
rosto, alegremente finge acreditar. - Sexta que vem tamo aí de novo.