Dissonância Cultural

O estrangeiro caminhava descuidadamente pelas vielas íngremes da cidadezinha. Seus olhos nunca miravam o pavimento matemática e delicadamente disposto sob seus pés: sua atenção se movia de forma fluida e desordenada entre cada prédio, cada árvore, cada pessoa que o pusesse e mantivesse sob o efeito de exotismo que buscava. Cada sorriso, independentemente da força vital que o manifestasse, era-lhe meramente uma peça do panorama ali disposto apenas para sua contemplação. Como se jogasse um videogame, continuava a avançar pelos velhos contornos de pedra, procurando extaticamente por qualquer coisa que lhe parecesse digna de uma quest.
Foi numa esquina pouco iluminada, quando a noite já caía despercebida, que seus olhos vorazes, em um raro momento de ócio, encontraram uma resposta inesperada; e ele notou que estava sendo seguido. Sua reação se deu em uma onda de pânico crescente surgida de uma seqüência de emoções não claramente distintas, conforme a figura desconhecida se acercava: da surpresa à curiosidade, da curiosidade ao desconforto, do desconforto ao pavor. Quis fugir daquela nódoa, daquela coisa que invadia o conforto de sua neutralidade contemplativa; mas, como as figuras nos vitrais das pequeninas igrejas góticas que o rodeavam e observavam, quedou-se inevitavelmente imóvel. Conseguiu apenas esperar, incapaz de escolher entre todas as possibilidades demoníacas que lhe voavam pela mente, até o vulto invadir completamente sua visão. Erguendo discreta mas firmemente uma faca enferrujada, os dentes semicerrados no que o estrangeiro interpretou como fúria ou mágoa ou tédio reprimidos, o homem limitou-se a lançar uma simples pergunta:
- Coj toochats, ee'aph čul chom?
A princípio, na mente do turista, nem mesmo a própria inteligibilidade daquela frase se mostrou inteligível; e ela trabalhou em vão tentando atribuir-lhe um significado.
- Não compreendo. - respondeu, enfim; seu sorriso trêmulo pretendia transmitir confiança. Talvez, só talvez, houvesse uma explicação racional para tal situação.
- Toochats, laa! - o nativo insistiu, parecendo não se importar com a resposta que recebera. - Ee'aph čul chom?
E com o passo à frente de seu enérgico interlocutor, o estrangeiro foi atingido por uma rajada fria e penetrante de realidade. Desconectado definitivamente de seu transe exploratório, virou-se e correu mais rápido do que poderia pensar em correr: não tinha nenhum destino em mente, nenhuma intenção que não fosse se afastar o máximo possível daquela esquina. Em sua pressa, nem notou os dois outros homens que o cercavam por trás; não teve tempo de computar o fato na fração de segundo antes ser nocauteado por um bastão de metal.
Acordou, mas não o percebeu de imediato: no escuro absoluto daquela sala, nem ao menos tinha certeza de que estava de olhos abertos. Sentia apenas o chão frio e úmido sob seu corpo nu, os odores combinados de sangue seco e urina e a orquestra de goteiras que parecia soar em sincronia com o latejar de sua cabeça; tudo misturado em uma única sensação difusa a atacar incessantemente seu cérebro. Conforme recobrava a lucidez, em um período de tempo que lhe pareceu indefinido entre minutos e dias, pensamentos depressivos o dominaram: intercalavam-se aleatoriamente flashes de seus passos pela cidade, de sua filha lhe esperando no hotel, do reflexo embasbacado de seu rosto no metal daquela faca...
De repente, interrompendo seu sombrio stream of consciousness, o som de passos suaves e regulares, vindos de sabe-se lá onde, surgiu e foi se aproximando; e um breve diálogo se fez ouvir:
- Chee si’aph chom, Ootsa. - ele reconheceu a voz como a do homem que o havia interpelado na rua. Ela falava de forma mais branda do que antes, entretanto; parecia quase respeitosa.
- Laa. - respondeu uma voz grave e ligeiramente irônica. - Cojva naarecha, toochatsiis palan umee onculeňa?
- Naarecoranaj. - a primeira voz gaguejou.- Suts... Suts uphee...
- Laa. - o tom da voz agora soava dúbio: seria aquilo desapontamento? Raiva? Indiferença?
Um feixe de luz vertical então apareceu em uma das paredes de escuridão, revelando o interior da sala úmida conforme se expandia em um retângulo branco. Da porta veio uma forma, a princípio um contorno vago contra a luminosidade ofuscante, daí se transmutando na figura de um homem. Calvo, baixo, de porte atarracado; os olhos sagazes observando atentamente aquela criatura ferida e assustada, sem no entanto transmitir-lhe qualquer emoção. Trazia na mão esquerda uma garrafa d'água; na direita, um revólver.
Pela primeira vez desde que acordara, o estrangeiro tentou se mover; e imediatamente percebeu que estava amarrado, e que o menor dos movimentos lhe causava extremo desconforto. Paralisado pelo medo e pela impotência, permitiu que o homem de passos leves se ajoelhasse a seu lado e lhe desse de beber. Sorveu o líquido com voracidade, subitamente consciente de sua sede; enquanto bebia, surgiu-lhe à mente a perturbadora idéia de que poderia ter estado ali por muito mais tempo do que imaginara.
- Čuru saj chetsul, ootsa Americaphon - disse-lhe o homem, novamente o interrompendo, ao se levantar; falava de maneira calma, quase afável, e sorria como se conversasse com uma criança. -; suts cojva chunetuula phee, te'uru palaliis pheen.
- Não compreendo. - foi tudo que conseguiu responder, sem pensar, mal conseguindo virar de lado sobre a superfície fétida e gelada. O tom compassivo do outro talvez o tivesse tranqüilizado por um momento, se as dores e a tontura não lhe impedissem qualquer raciocínio.
O homem de fala macia suspirou, sua expressão ainda completamente vazia, e permaneceu imóvel por um instante; então, em um só milésimo de segundo, sua face se contorceu em uma visão de pura fúria, e ele desferiu uma coronhada violenta contra o rosto do infeliz a seus pés.
- Coň toochatsen, čulen pheer ‘aatsitaa! - gritou; e ao primeiro golpe seguiram-se mais e mais, cobrindo a arma de sangue fresco e enchendo o recinto com urros e apelos desesperados. - Si'aph čul chom! - ele se limitava a repetir. - Cojva latiisca, si'aph toochats chom! Čulen pheer ‘aatsitaa!
Por fim, o turista não suportou; morreu, seu crânio transformado em uma massa indistinta de carne e sangue, enquanto murmurava entre lágrimas um último por quê?. No instante em que se apercebeu disso, o homem baixo e calvo, sua expressão restituída à vacuidade que lhe era normal, chamou seus subordinados para dentro da sala. Estes procederam então a estilhaçar minuciosamente o cadáver, abrindo suas vísceras, serrando ossos, perfurando os olhos. Terminado o serviço, tornaram com olhares preocupados para seu chefe, esperaram em vão por uma reação deste, e então um a um deixaram o local. O homem permaneceu ali, de pé, os braços cruzados; então suspirou, virou-se e também se foi.
- Coj toochats, ‘oon si’aph čul chomanaj… - ainda murmurou, ao fechar a porta, em um tom que poderia ser de desapontamento, raiva ou tédio.

Weltanschauung

1 – Crônica – Sob a Soleira da Porta

Eu costumava ter um lugar dentro da minha cabeça; talvez ainda o tenha, só não sei mais como alcançá-lo. Acho que nunca soube, na verdade. Simplesmente às vezes o encontrava, vagamente, repentinamente, sem qualquer motivo; como se observasse da praia a sombra de uma cidade submersa em águas turvas. Que poético. É sintomático: eu não tenho a pretensão de traduzir em palavras o todo de sensações de uma experiência fundamentalmente subjetiva; e, àqueles que buscam na vida precisão, coerência e rigor científico, eu sugiro o suicídio. Ou a leitura de um texto sobre física teórica, o que doer menos.
Era como uma lembrança, ou a lembrança de uma lembrança; a nítida impressão da iminência de uma recordação, um pensamento ou um sentimento. Mas essa impressão nunca se concretizava; nunca passava de um lapso fugaz, um gosto ou cheiro de porvir, de espera, que logo me deixava. Acho que essa era a sensação predominante da coisa toda: a expectativa. Uma esperança persistentemente indefinida, indefinível e interminável; e eu sentia sempre como se, na tentativa de contemplar o que quer que fosse, só conseguisse ficar parada, indecisa, à beira do mar. O meu lugar. 
Eu costumava ter um sonho besta, lá pelos meus cinco, seis anos; desses recorrentes, quando a gente já sabe o que vai acontecer e mesmo assim não consegue evitar. Eu me via correndo por um campo íngreme e acinzentado, como que fugindo, com a grama alta roçando no meu corpo, e ia me sentindo sufocada conforme subia; e, lá em cima, no cume da colina, eu enxergava uma porta. Sem paredes em volta, só o batente, só o contorno da passagem. A fronteira do desconhecido, os portões do Tártaro, a porta do sol; nessa época eu não tinha nem idéia do que semiótica poderia ser. Só via uma porta. Logicamente, eu tentava atravessá-la; e logicamente, também, ela batia na minha cara e eu me acordava de sobressalto.
Pensar sobre essas coisas sempre me deu a sensação de ter vivido minha existência inteira num torpor, numa monotonia incurável; como se eu estivesse presa sempre no processo de fazer ou experimentar qualquer coisa, sem nunca realmente terminar e não lembrar mais onde comecei. É engraçado, mas isso às vezes me conforta, às vezes me assusta: perseguir o horizonte simplesmente por saber que ele não pode ser alcançado. Inspirador e angustiante. É assim comigo mesma: por mais que eu tente me achar debaixo de todas as minhas “camadas”, por mais que eu me desconstrua, me cave carne adentro, eu nunca encontro um “lado de dentro”. Só mais camadas. Mais e mais camadas.
Uma vez na vida, apesar do medo, apesar do apego instintivo à mesmice, eu queria encontrar uma divisão inevitável, uma transição nítida no meu caminho; que eu chorasse, que eu me despedaçasse por tudo que perdi, não importaria. Pelo menos eu poderia dizer, uma vez na vida, que atravessei a porta.

2 – Poema – Claramente Intoxicada

E mesmo que seu corpo esteja tossindo de suor
Você tem um coração forte que pulsa
O gancho está aberto, os cavalos fogem pra longe
Por que eu não me tornei mais bonita e sábia?

Como uma pipa no céu
Passe um momento sem amanhã
Chove lá fora


Sobre a autora

Márcia Lindholm nasceu no Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1990. Filha de diplomatas, teve a infância dividida em vários capítulos difusos conforme sua família se mudava de casa em casa, sem tempo ou oportunidade de se apegar a nada. Tendo ainda muito cedo sido confrontada com os medos e a melancolia das megalópoles, viu-se repetidas vezes envolvida em grandes coisas sem jamais, entretanto, sentir-se parte de coisa alguma. Ainda adolescente, começou a escrever crônicas inspiradas em pequenas recordações íntimas em seu blog, A Casa Deserta; daí até a publicação do livro homônimo, uma coletânea de seus melhores textos, foi um pulo.
Inquisitiva, por vezes inquietante, dotada de um olhar que se move por estranhos e instigantes ângulos; e, infelizmente para si própria, inteiramente imaginária: o parágrafo anterior se trata de um breve exercício de ficção, e os textos do início da postagem foram escritos por pessoas diferentes.

Um ou Dois Pensamentos sobre Ciência Política

Era uma vez um reino muito distante no tempo e no espaço, cujos habitantes todos possuíam um grande número de pequenas bolinhas sortidas. Ninguém sabe por que isso acontecia ou que finalidade os objetos poderiam ter; mas as bolinhas eram coloridas em vários tons bonitos, as pessoas as adoravam e ninguém se preocupava em questionar nada. Cada um as usava de acordo com sua própria vontade, sem pudor ou cuidado, e todos eram muito felizes.
Um dia, entretanto, um dos locais resolveu que seus compatriotas estavam se divertindo da maneira errada. “Não pode ser que cada um use suas bolinhas do jeito que bem entender”, pensou ele, “porque assim só haverá caos”. Ele concluiu que havia uma ordem correta e perfeita para se organizar e utilizar os artefatos, a qual, coincidentemente, era a mesma que ele próprio sempre empregara; e então saiu pelo reino a pregar sua idéia.
Por motivos desconhecidos, a imensa maioria do povo decidiu acatar suas decisões: foi então escrito o Grande Livro das Leis de Organização Esférica e, no intuito de propagar e legitimar sua mensagem, estabeleceu-se um Colégio de Mestres incumbido exclusivamente de estudá-lo. Os sábios tidos em mais alta conta eram aqueles capazes de memorizar todas as regras; esses eram considerados Autoridades, e consultados sempre que havia alguma disputa relacionada ao Livro.
Logo os “hereges”, aqueles que continuavam a brincar com suas bolinhas sem respeito a qualquer tipo de organização, passaram a ser perseguidos. Tentar argumentar era inútil: os especialistas na legislação esférica se haviam tornado especialistas, em primeiro lugar, exatamente por seu domínio sobre as leis ancestrais; qualquer mudança nestas, portanto, era evento raro. Mais freqüentemente eram concebidas leis secundárias, dedicadas unicamente a reforçar o cumprimento da ordem oficial: essas geralmente se referiam a medidas sócio-educativas de prevenção à “rebeldia lúdica” e à formalização das penas aplicadas aos rebeldes.
Com o tempo, o abismo cultural entre o conservadorismo dos Mestres e a fluidez do uso popular apenas se aprofundou, e a convivência entre os dois grupos se tornou impossível. Foi somente após a longa e sangrenta Revolta dos Cubos que as bolinhas foram terminantemente abolidas: outras formas geométricas, mais variadas e democráticas, foram então distribuídas pelo reino, para que o povo pudesse voltar a se divertir em paz.
Agora, é evidente, e certamente o leitor concordará, que a maior liberdade de escolha passou a implicar maiores riscos à população usuária de tais serviços; dessa forma, fez-se necessária a implantação de algumas linhas-guia para a utilização dos novos objetos: apenas medidas gerais, cautelares, calcadas nas normas do bom senso. Tudo para que se garantissem as liberdades individuais sem desrespeitar os direitos do todo.