Crônicas do Fim do Mundo XV - Atalhos

CAMILLA: You sir, should unmask.
STRANGER: Indeed?
CASSILDA: Indeed it’s time. We all have laid aside disguise but you.
STRANGER: I wear no mask.
CAMILLA: (Terrified, aside to Cassilda.) No mask? No mask!
(Robert W. Chambers, The King in Yellow: Ato 1 - Cena 2d)

O meu primeiro contato com a Guilda dos Incendiários aconteceu em decorrência de uma coincidência boba: eu tinha acabado de ler uma nota sobre a turbulenta disputa de sucessão de alguma insignificante monarquia europeia (esses eram então os meus divertimentos); o termo que me chamara a atenção era o adjetivo “talossano”: ainda que o site garantisse que o pretendente a carregá-lo era um farsante, de uma “dinastia” que não era mais do que uma ficção elaborada, o gentílico havia me soado estranhamente familiar. Levando a questão à minha inspirada amiga Tessália, tão bem-informada e lúcida quanto a paranoia permitia, as minhas suspeitas foram confirmadas: parece que os membros de uma casa ainda menor tinham contratado a Guilda pra eliminar todo indício da existência palpável do Reino de Talossa, suas Histórias e Gramáticas e diferentes registros legais, no intuito de o fazer passar por invencionice (e assim, claro, deslegitimar qualquer ligação genealógica afirmada pelo governante). Os talossanos continuam a viver como sempre viveram, dissera a Tessália, entre uma carreira e outra de pó mágico, mas, no que diz respeito ao resto do mundo, o país não existe.
Em outra ocasião, eu bem poderia ter gasto alguns minutos de retórica e saliva debatendo o que exatamente faz com que uma nação exista ou não; mas o mistério daquele grupo, aparentemente tão influente, havia despertado definitivamente a minha curiosidade. Além disso, como eu viria a descobrir mediante auxílio de outras amigas “conectadas”, os propósitos e métodos dos Incendiários convinham perfeitamente com as minhas ideias na época. O lema deles, “tudo eventualmente é esquecido”, orbitando tão graciosamente entre sutileza e cinismo, dava a entender uma espécie de niilismo trans-humanista: daqui um milhão de anos, praticamente todo traço da nossa passagem pela Terra vai ter sumido; de um ponto de vista cósmico, tudo que nós consideramos memorável é só questão de convenção. Hitmen de abstrações e estruturas em vez de homens; seria possível? Seria assim tão fácil pôr fogo no mundo?
Evidentemente, as minhas utopias foram murchando conforme eu pesquisava mais a respeito. Era lógico que os homens da Guilda deveriam ser, ao menos alguns deles, os próprios porcos que eu sonhava abater; ou seus titereiros, o que fosse. Como todo parasita, eles necessitavam de um sistema pra ir destruindo aos poucos, e morreriam quando (ou se) este morresse. Quem haveria de dizer que os conspiradores por trás dos ridículos conflitos dinásticos ao redor do globo não eram ministros das mesmas casas que derrubavam? Pecunia non olet, escrevera algum dramaturgo romano, e nunca tinham provado o contrário.
Só havia um serviço, enfim, que os meus escassos cobres poderiam me adquirir, e que (pensava eu) não voltaria depois pra me morder a bunda.
Estava então morando na pequena chácara que eu herdara dos meus avós, cá neste esquecido canto meridional do que um dia foi o Brasil; um inexplicável surto de idealismo me fizera crer que passar o resto da vida subsistindo daquilo que eu conseguisse tirar da terra (o que, aliás, não era muito) e chapinhando nas poças de um inverno quase incessante seria tanto a minha opção mais digna como a mais viável. Era a minha vida. Minha aversão aos fiapos de autoridade que ainda teimavam em agoniar o mundo não era, como nunca havia sido, gratuita: vinha da ânsia por liberdade da minha alma, tão intransigentemente anarquista, e de um ou outro percalços do meu passado que não convêm comentar. Eu agora só queria sumir; desaparecer de tudo aquilo que se rotula oficial, das leis dos homens que ainda me acorrentavam, e construir a minha própria Talossa de geada e suor.
Pagara o que eu imaginava ser minha última dívida; agora seria uma náufraga, isolada (literalmente, se a chuva não sossegasse logo) em um país inexistente, sem lenço nem documento. Um fantasma.
A Tessália tinha rido como um chimpanzé alucinado, a imbecil, quando eu contei meu segredo. Fora durante um sarau na casa dela; a noite inteira a mulher vinha engolindo umas pílulas roxas como se fossem balas de goma, e tudo então soava “maravilhoso”. As outras meninas falavam uma língua que eu não entendia, e em alguns momentos ela me parecia uma pessoa desconhecida. Se tinha algum senso naquela cacofonia de guinchos e gemidos, nunca fiquei sabendo; também nunca mais a vi.
Lembrei dela certa manhã, e da pantomima toda, enquanto levava a chaleira ao fogo e preparava o chimarrão. Cheguei a pensar que tudo, a Guilda e a História, o dinheiro e os países da Europa, tudo não passara de uma practical joke de péssimo gosto engendrada por minhas amiguinhas psiconautas. Consegui rir por um instante, e respirei sem pressa. Quando a água começou a ferver, eu ouvi o som das sirenes em frente ao portão.

Paralipomena

É sempre lamentável que se admita, ao fim de qualquer ato, que a razão deste tenha sido a ausência de outro: um talvez mais relevante e único, talvez menos meditabundo e melancólico. Que se estabeleça desde já, então, que este texto carrega mais em si de apologia do que de apêndice; que foi escrito sob a plena noção de que absolutamente nada mais serviria, e isso é tudo que se pode afirmar em sua defesa.
Um homem muito sábio certa vez disse: nossos pensamentos são as sombras de nossos sentimentos; houve um tempo em que eu discordaria sem pensar. Um tempo em que eu me imaginava perfeitamente transparente, perfeitamente nulo; quase como se a minha câmera fosse uma ponte direta entre dois mundos, e eu não fizesse mais que a carregar aonde ela quisesse (ou devesse) ir. Todo o amor e toda a tristeza, o horror e o êxtase, eu só me permitia crer sentir ao cabo da edição, quando já nada estaria sob meu poder.
Foi acompanhados dessa ingênua inspiração que nós fomos gravar La Plata, como alguns quiçá se lembrem; e, como todos fazem questão de mencionar, foi então que aquela “terrível demonstração da ironia divina” (palavras repetidas, compartilhadas e “noticiadas” à exaustão, na época) nos atingiu. Nós morremos; sobrei eu. Eu e minha câmera, renascidos de um milagre, sobrevivemos para seguir nosso trabalho sagrado.
A princípio, foi realmente essa a forma que tomou meu luto: a de ainda mais ânimo, ainda mais determinação. Por eles, diziam-me; é o que eles teriam querido. Contra a angústia e o choque, eu fui em frente e terminei de contar a história que nós acháramos que precisava ser contada; contra olhares que talvez me julgassem (se é que não fosse já um sinal prematuro do remorso que eu viria a sentir), lutei para que o documentário fosse distribuído e divulgado. Por mais que desde então o tenha jogado fora, o Oscar que costumava se pavonear em minha estante dava-me a sensação de ser um homem bem-sucedido.
Isso, é claro, foi antes da bebida, do eco das vozes que sussurravam (não sei se por pena ou por escárnio) “não é sua culpa”, dos remédios; antes das noites passadas em claro perguntando a deus “por que eu?” aos gritos; antes da necessidade de dizer a mim mesmo que deus não existe e que a vida é feita de acasos vazios, pois do contrário teria perdido completamente o juízo.
Eu fiquei quieto. No início, o silêncio parecia lógico; com o tempo, se tornou inevitável. Nunca chegou o momento certo de me manifestar; eventualmente os jornalistas pararam de perguntar, as esposas e maridos deixaram de me procurar, e eu me escondi em um casulo de escapismo. Nunca mais usei minha câmera; nunca mais fiz a barba; nunca passei do segundo capítulo de Em Busca do Tempo Perdido… E os anos passaram. Nossa história nunca foi contada; no silêncio, em função do silêncio, muitas abomináveis especulações nasceram. Eu acompanhei tudo pela internet, onde os pudores e honrarias da mídia tradicional nem sempre têm efeito.
Aqui, tudo deveria ter um fim: eu poderia pintar a mais bela e sanguinolenta descrição do acidente, em detalhes gráficos e tom hollywoodiano, para saciar as perversões mais infames; ou, quem sabe, simplesmente deixar uma nota de suicídio a quem quer que se importasse, e fazer aquilo que já deveria ter feito há anos. Infelizmente, sou um covarde íntegro: não mancharei a memória de meus amigos com sensacionalismos baratos, e ainda devo viver um punhado de anos envergado sob o peso de minha consciência. A verdade é que eu deixei passar todas as oportunidades cabíveis de redenção: já milhares de vezes pensei em continuar de onde parei, completar La Plata com a real história daqueles que arriscaram (e todos, exceto um, perderam) as vidas para filmá-lo, enfim quebrar o silêncio… Mas não sou mais aquele jovem transparente e ingênuo; a película que roda em loop por minha mente foi por demais contaminada com anos de álcool, desejos secretos e lágrimas para manter sequer um rasgo de legitimidade. Mais mal faria eu a revelando do que continuando a guardá-la para minha própria e patética apreciação.
Não há conclusão; não mais que o selo na tumba de uma memória enterrada viva. O ápice de meu egoísmo, eu bem sei. Nada que eu pudesse relatar, contudo, viria a mudar qualquer coisa (com certeza não para melhor, ao menos). Sigamos todos com as mesmas opiniões, as mesmas raivas e as mesmas culpas. Isto era só, e era tudo, o que eu tinha para dizer.