CAMILLA: You sir, should
unmask.
STRANGER: Indeed?
CASSILDA: Indeed it’s time. We all have laid aside
disguise but you.
STRANGER: I wear no mask.
CAMILLA: (Terrified, aside to Cassilda.) No mask? No
mask!
(Robert W. Chambers, The King in Yellow: Ato 1
- Cena 2d)
O meu primeiro contato com a Guilda dos
Incendiários aconteceu em decorrência de uma coincidência boba: eu tinha
acabado de ler uma nota sobre a turbulenta disputa de sucessão de alguma
insignificante monarquia europeia (esses eram então os meus divertimentos); o
termo que me chamara a atenção era o adjetivo “talossano”: ainda que o
site garantisse que o pretendente a carregá-lo era um farsante, de uma “dinastia”
que não era mais do que uma ficção elaborada, o gentílico havia me soado estranhamente
familiar. Levando a questão à minha inspirada amiga Tessália, tão bem-informada e
lúcida quanto a paranoia permitia, as minhas suspeitas foram confirmadas:
parece que os membros de uma casa ainda menor tinham contratado a Guilda pra eliminar
todo indício da existência palpável do Reino de Talossa, suas Histórias e
Gramáticas e diferentes registros legais, no intuito de o fazer passar por
invencionice (e assim, claro, deslegitimar qualquer ligação genealógica afirmada
pelo governante). Os talossanos continuam a viver como sempre viveram, dissera a Tessália, entre uma carreira e outra de pó mágico, mas, no que
diz respeito ao resto do mundo, o país não existe.
Em outra ocasião, eu bem poderia ter
gasto alguns minutos de retórica e saliva debatendo o que exatamente faz
com que uma nação exista ou não; mas o mistério daquele grupo, aparentemente
tão influente, havia despertado definitivamente a minha curiosidade. Além disso,
como eu viria a descobrir mediante auxílio de outras amigas “conectadas”,
os propósitos e métodos dos Incendiários convinham perfeitamente com as
minhas ideias na época. O lema deles, “tudo eventualmente é esquecido”,
orbitando tão graciosamente entre sutileza e cinismo, dava a entender uma
espécie de niilismo trans-humanista: daqui um milhão de anos, praticamente todo
traço da nossa passagem pela Terra vai ter sumido; de um ponto de vista cósmico,
tudo que nós consideramos memorável é só questão de convenção. Hitmen de
abstrações e estruturas em vez de homens; seria possível? Seria assim tão fácil
pôr fogo no mundo?
Evidentemente, as minhas utopias foram murchando
conforme eu pesquisava mais a respeito. Era lógico que os homens
da Guilda deveriam ser, ao menos alguns deles, os próprios porcos que
eu sonhava abater; ou seus titereiros, o que fosse. Como todo parasita, eles necessitavam
de um sistema pra ir destruindo aos poucos, e morreriam quando (ou se)
este morresse. Quem haveria de dizer que os conspiradores por trás
dos ridículos conflitos dinásticos ao redor do globo não eram ministros
das mesmas casas que derrubavam? Pecunia non olet, escrevera
algum dramaturgo romano, e nunca tinham provado o contrário.
Só havia um serviço, enfim, que os meus
escassos cobres poderiam me adquirir, e que (pensava eu) não voltaria depois pra
me morder a bunda.
Estava então morando na pequena chácara
que eu herdara dos meus avós, cá neste esquecido canto meridional do que um dia
foi o Brasil; um inexplicável surto de idealismo me fizera crer que passar o
resto da vida subsistindo daquilo que eu conseguisse tirar da terra (o que,
aliás, não era muito) e chapinhando nas poças de um inverno quase
incessante seria tanto a minha opção mais digna como a mais viável. Era a minha
vida. Minha aversão aos fiapos de autoridade que ainda teimavam em agoniar
o mundo não era, como nunca havia sido, gratuita: vinha da ânsia por liberdade
da minha alma, tão intransigentemente anarquista, e de um ou outro percalços do
meu passado que não convêm comentar. Eu agora só queria sumir; desaparecer de
tudo aquilo que se rotula oficial, das leis dos homens que ainda me
acorrentavam, e construir a minha própria Talossa de geada e suor.
Pagara o que eu imaginava ser minha
última dívida; agora seria uma náufraga, isolada (literalmente, se a chuva não sossegasse
logo) em um país inexistente, sem lenço nem documento. Um fantasma.
A Tessália tinha rido como um chimpanzé
alucinado, a imbecil, quando eu contei meu segredo. Fora durante um sarau na
casa dela; a noite inteira a mulher vinha engolindo umas pílulas roxas como se
fossem balas de goma, e tudo então soava “maravilhoso”. As outras meninas
falavam uma língua que eu não entendia, e em alguns momentos ela me parecia uma
pessoa desconhecida. Se tinha algum senso naquela cacofonia de guinchos e
gemidos, nunca fiquei sabendo; também nunca mais a vi.
Lembrei dela certa manhã, e da pantomima
toda, enquanto levava a chaleira ao fogo e preparava o chimarrão. Cheguei a
pensar que tudo, a Guilda e a História, o dinheiro e os países da Europa,
tudo não passara de uma practical joke de péssimo gosto engendrada
por minhas amiguinhas psiconautas. Consegui rir por um instante, e respirei sem
pressa. Quando a água começou a ferver, eu ouvi o som das sirenes em frente ao portão.