Irresponsável

I

Atrevo-me a escrever, por um motivo que penso ser digno. Eu e meus pais passamos por uma situação incômoda e incompreensível, e temos medo. Eu tenho medo. 1-16-05, muitas emoções conflitantes me afligem. Deixo isto escrito caso algo me aconteça. 2-24-36.
Alguns dias atrás, uma moça apareceu em nossa casa. Nenhum pai a reclama, mas ela é muito jovem para ser sozinha. Diz que não se lembra de nada, e age de modos que nos constrangem. 1-02-17, ela não me parece digna. Mas... 1-16-09. Tenho medo do que ela me faz sentir. Tentei, com o consentimento de meu pai, tê-la; mas ela se recusa. “1-02-10”, eu Digo a ela, mas é como se não Soubesse. Cada vez mais me convenço disso, por mais que não encontre uma explicação para tal. 1-55-33. Sempre.
Enfim, aqui conto algumas das bizarrices que ela tem causado por sua, 1-55-01!, Ignorância: de certa feita, levei-a ao templo, para tentar Ensiná-la. De frente para as grades, ela teve a ousadia de me perguntar se era ali “que Estava Guardado”. 2-10-52, eu a princípio nem entendi; e acho que vi uma mãe cobrindo os ouvidos de seu filho para que a criança não ouvisse tamanha barbaridade. Tive que fazer um esforço mental para dizer-lhe que Estava em todos os lugares, todo o tempo... Que ali apenas Principiara. Não sei o que ela Absorveu disso. Como é possível alguém ser... Assim?
Em outra ocasião, passeávamos perto da borda, e ela insistia em se aproximar cada vez mais da floresta. 1-02-04, é um demônio que lhe morde o rabo, sem dúvida. Que medo que ela me dá! Foi me arrastando até a guarita do guarda e a placa, que Dizia, naturalmente, “3-01-01”. É razoável que ela tenha tentado desviar-se da barreira e se embrenhar floresta adentro? Pois foi o que ela fez. 2-10-52, o que eu deveria ter dito ao homem? “Ela é ‘de fora’”? “Ela ‘não Entende’”? Como explicar isso? Tive que trazê-la à força para casa, ou o guarda certamente lhe aplicaria alguma punição... Por que eu não permiti? 1-15-64. Ai de mim! 1-55-33, sempre, sempre.
Agora ela cismou em, como diz, “sair”: quer voltar à barreira, entrar na floresta... Não importa que eu Fale. Ela só faz o que quer. 1-70-23, eu sinceramente não sei o que fazer. É louca, mas mais louco sou eu. 1-16-09. Ela vai acabar me persuadindo a acompanhá-la. Vamos morrer juntos. 1-16-05... Não sei o que fazer com este sentimento.
Enfim, deixo isto escrito para meus pais e todos, se de fato eu for nessa viagem insana. “03-01-02”, não sei quantas vezes já Repeti; mas ela me ouve? Só ouve o que quer. 1-02-01. Espero poder ir, Provar a ela e então voltarmos. É a melhor das possibilidades. 1-55-33. 2-24-40.

II

Aqui estamos. Já faz três dias, mas eu não tive tempo ou ânimo de escrever, 1-55-19. 2-24-03. Ela me convenceu. Eu sabia que isso aconteceria. Tem algo em seu ímpeto diabólico que me excita. Não consigo dizer “não” a ela. 2-24-40.
Mas, evidentemente, suas forças estão se esgotando. Sinto algo como um misto de pena, dor e decepção. Não sei bem o que dizer agora. 1-02-22, 1-16-05. Sei que estou errado, e certamente não posso dizer que gostaria de estar certo, 2-23-01. E tenho a consciência limpa por ter sempre tentado dissuadi-la.
Ela fala de um “outro lado”. Não pára de andar. Sua obstinação é impressionante, por insana que seja.  Não quero ficar me repetindo, mas eu de fato sinto pena de seu ser. Onde está a força de minha masculinidade para pegá-la dos cabelos e a arrastar de volta? 1-02-44, creio que meu único pecado seja ser fraco demais.
Eu a vi nua ontem. 1-02-17, posso mesmo jurar que se mostrou a mim de propósito. Tantos são os sentimentos que me vêm ao falar disso, que prefiro não dizer mais nada. 1-16-09.
Não sei se escreverei de novo. 1-55-33, ainda que nos confins do vazio e da loucura.

III

Ela morreu.
O que mais devo dizer? Minhas falhas me surgem, mas são muitas para escrever. Só o que sinto agora já é suficiente para mil anos de dor e punição. 2-20-01.
Mas nem na morte a cadela se rendeu! Que mulher! 1-02-18, nem posso exprimir em palavras o que estou pensando agora. O fato é que ela permaneceu sempre resoluta. Desfazendo-se, disse estar feliz; não admitiu nunca seus erros. E mesmo não tendo achado o tal “outro lado”, garantiu que apenas a busca bastou para lhe acalentar o coração. 1-01-04. Ingrata e mentirosa.
Agora volto para casa. Tentarei esquecer, ainda que saiba ser em vão, o que aconteceu. 2-24-36. Deixo aqui apenas uma memória, um pedaço do que se Conhece; e se por acaso algum viajante igualmente insano acabar passando por aqui, contanto que seja normal e que Saiba (dói-me ter que especificá-lo, mas agora reconheço que é necessário), que isto o Ajude em seu caminho:

3-01-02. 1-01-01. 2-24-36. 2-20-07.
E 1-55-33, sempre, ainda que na morte insana e perdida.

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